terça-feira, 30 de agosto de 2016

Nilto Maciel (O Menino e o Bacamarte)

Para Airton Monte

De batismo chamava-se João Alves Mendes, nome depois reduzido a Jão. Apelidou-se Carcará, dizendo-se danado.

Virou índio aos cinco anos. Despia-se e corria pelo quintal, espantando galinhas e porcos. Subia às laranjeiras e de cima atirava laranjas podres nos bichos. Deu para fabricar arcos e flechas com que irritava os galos. Queria matar todos os brancos da cidade com as armas nativas amontoadas no canto do muro. Crescia analfabeto e grosseiro, metido nos ca­fundós do quintal, sem reza e sem hora para nada.

   — Vem comer, menino.

    — Já comi.

Devorava bananas quase verdes e chupava as laranjinhas mal brotadas.

Aos doze anos organizou uma tribo e saía pelas ruas a experimentar seu arsenal nos ossos dos cachorros. Os vizinhos reclamavam, o povo todo se maldizia.

— Mataram meu gato.

— Foi o moleque do Pedro Mendes.

— O doidinho?

  Já rapazinho, viu-se só. Nenhum dos companheiros de infância queria mais brincar de índio. Preferiam namorar nas pracinhas. E Jão seminu, armado de arco e flecha, pintado de jenipapo. Correndo o mato atrás de preás, pescando no Potiú. Mal dormia em casa.

Um dia deram-no por perdido. Vasculharam toda a cidade e arredores, e nada de notícia dele. Nos leitos dos rios nem sinal de corpo apodrecido. Nos açudes talvez nada. Nos matos nenhum mau cheiro. A mãe só faltou morrer de chorar. O pai resmungava.

Dias depois a notícia chegou: Carcará havia tentado invadir Parangaba, onde brancos escravizavam Jaguaribaras. Repelido, foi bater na Precabura. E em seu encalço saíram trinta soldados e alguns habitantes da Fortaleza. Acossado, embrenhou-se nos matos.

— Vamos pegar o doido.

Em Parangaba criou fama. Andava armado e voltaria para matar qualquer inocente. Talvez até uma criança. O povo todo do bairro só falava nele e alguns se armavam para caçá-lo.

Foi visto às margens do Choró e correu espantado feito bicho do mato.

— Querem ocupar também aqui?

Depois passaram pelo Pacoti.

Sua fama se espalhou. Todo o Ceará já sabia de um doido fantasiado de índio que andava pelos sertões. A confusão se fez logo. Qualquer rapazote visto de calção no mato era perseguido. Muitos apanhavam até provarem nunca ter ouvido falar de índio. Houve casos de barbaridades. E o estopim se alastrava pelo Rio Grande do Norte. Todo o sertão pegava fogo: Carcará atacava vilarejos com suas flechinhas que mal ofendiam um passarinho, e os homens o perseguiam com revólveres e metralhadoras.

Certo coronel João de Barros, saudoso de seus tempos de chefe de capangas, prometeu caçar e prender o delinquente. Procurou o padre João da Costa e prometeu-lhe entregar o doido. Dito e feito. Com poucos dias de caçada, lá estava Jão acuado numa grota, cercado por mais de vinte homens, seguro e amarrado. Levado à presença do padre, aquietou-se e prometeu viver pacificamente daí em diante.

Na conversa, conseguiu fugir, deixando o padre atarantado. Dessa carreira foi bater no Banabuiú. Vagou pelos sertões à cata de companheiros. Chegava às fazendas e convocava os caboclos para uma guerra.

— Que guerra, seu menino?

 — Para acabar com os brancos.

Aliciou alguns rapazes que já tinham ouvido falar em reforma agrária.

— Vamos expulsar os ricos das terras?

A guerra começaria em Aquiraz. De lá partiriam para outras cidades e as fazendas. E seguiram, ele nu e armado de arco e flecha, os outros vestidos de calça e camisa e armados de foice e facão. No meio do caminho encontraram uns capangas, que dispersaram o regimento, mas Carcará conseguiu escapar e continuar viagem. E entrou em Aquiraz, onde disparou centenas de flechas contra indefesos e pacatos aquiraenses atônitos. Ciente da carnificina causada, fugiu para o rio Choró, onde se defrontou mais uma vez com o coronel João de Barros, saindo ferido.

Em Aquiraz o pânico crescia. Organizou-se uma expedição para caçar o louco, caçada que nunca deu em nada. Carcará então já vagava por Pacatuba, Pacoti, Catu, Cocó, espiando as coisas.

Um dia foi ter numa fazenda de certo Senhor Feitosa, que disputava terras a uns tais Montes e precisava de homens valentes, cabras machos. A partir daí a vida de Carcará mudou. Deram-lhe um bacamarte. E virou capanga, com mais de cem mortes nas costas.

Fonte:
MACIEL, Nilto. As insolentes patas do cão. São Paulo: Scortecci, 1991.

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