terça-feira, 1 de agosto de 2023

Hans Christian Andersen (O Pinheirinho)

Lá fora, na floresta, encontrava-se um pequeno e belo Pinheirinho. Nasceu num lugar agradável, onde havia muita luz e muito ar. Estava rodeado de muitas árvores maiores — pinheiros, e abetos também — mas o Pinheirinho ansiava por crescer mais. Não dava valor ao ar fresco, ou às crianças que vinham tagarelar na floresta e procurar morangos e framboesas. Passavam muitas vezes com um cesto cheio, sentavam-se junto ao Pinheirinho e diziam: “Que bonito que é aquele pequenino!”, mas não era isso que o Pinheirinho queria ouvir.

No ano seguinte, tinha crescido um rebento novo e no ano que se seguiu cresceu ainda mais. Pode-se sempre dizer, pelo número de anéis que tem no tronco, há quantos anos uma árvore está a crescer.

— Oh, se eu ao menos fosse tão grande como os outros! — suspirava o Pinheirinho. — Então, espalharia os meus ramos para bem longe e, do meu topo, estaria atento a todo o mundo. Os pássaros construiriam ninhos nos meus ramos e, quando o vento soprasse, apenas abanaria, tão orgulhoso como as outras árvores.

No Inverno, quando a neve pousa por todo o lado branca e brilhante, uma lebre veio a correr e saltou por cima do Pinheirinho, o que o pôs zangado. Mas, três invernos passados, a pequena árvore tinha crescido tanto que a lebre teve que a contornar.

“Oh, crescer, crescer e envelhecer! É, com certeza, a melhor coisa do mundo”, pensou a árvore.

No Outono, os lenhadores vinham sempre para abater algumas das árvores maiores. O Pinheirinho estremeceu de medo, pois as árvores grandes caíam estrondosamente no chão e os ramos eram cortados para que parecessem bastante despidas. Eram colocadas em caminhões e levadas dali. “Para onde iriam?”, perguntava-se o Pinheirinho.

Na Primavera, quando as andorinhas e as cegonhas chegaram, a árvore perguntou-lhes:

— Sabem para onde vão as árvores? Viram-nas?

As andorinhas responderam que não, mas a cegonha disse:

— Sim, penso que sim. Vi muitos navios novos, quando deixei o Egito. Tinham mastros muito altos, penso que eram as árvores. Cheiravam a abetos. Tudo o que posso dizer é que eram altas e imponentes — muito imponentes.

— Quem me dera ser suficientemente grande para ir para o mar! — suspirou o Pinheirinho. — Que tipo de coisa é o mar e a que se assemelha?

— Levaria muito tempo para explicar tudo isso. — disse a cegonha. E partiu.

— Devias estar feliz por ainda seres jovem e forte. — disseram os raios de Sol. E o vento e a chuva beijaram a árvore, mas o Pinheirinho não queria saber do que eles diziam.

Pela altura do Natal, foram cortadas muitas árvores jovens, árvores que eram mais jovens e mais pequenas do que este Pinheirinho impaciente. A estas belas e jovens árvores não foram cortados os ramos quando foram colocadas nos caminhões e levadas para fora do bosque.

— Para onde vão? — perguntou o Pinheirinho. — Algumas são muito mais pequenas do que eu. Porque é que não lhes cortaram os ramos? Para onde vão ser levadas?

— Nós sabemos! Nós sabemos! — chilrearam os pardais. — Andamos sempre a espreitar pelas janelas na cidade e, por isso, sabemos para onde vão. Vão ser decoradas da maneira mais bonita que possas imaginar. Olhamos pelas janelas e vimos que eram colocadas em vasos, numa sala de estar quente e decoradas com as coisas mais bonitas — maçãs douradas, bolos de mel, brinquedos e centenas de velas. 

— E depois? — perguntou o Pinheirinho, com todos os ramos a tremer. — E depois? O que acontece depois?

— Bem! — disse o pardal — Só vimos isso, mas era maravilhoso.

— Talvez isso me aconteça um dia! — gritou o Pinheirinho. — Isso ainda era melhor do que viajar pelo mar. Se pelo menos agora fosse Natal! Oh, se ao menos me levassem! Se ao menos estivesse numa sala de estar quente, decorado com coisas bonitas! E depois? O que aconteceria? Devia ser ainda mais maravilhoso. Porque me enfeitariam? Oh, quem me dera que isto me acontecesse!

— Sê feliz aqui conosco! — disseram o ar e a luz do Sol. — Sê feliz aqui na floresta.

Mas o Pinheirinho não era nada feliz. Crescia, crescia e continuava ali, verde, verde-escuro. As pessoas que o viam diziam: — É uma árvore muito bonita! E, na altura do Natal, foi cortada antes dos outros. O machado cortou-a bem fundo, no tronco, e a árvore caiu para o chão com um suspiro: sentiu uma dor, e agora estava triste por ter de deixar o lar. Sabia que nunca mais iria ver os amigos, os pequenos arbustos e as flores — talvez até os pássaros.

A árvore só voltou a si quando estava a ser descarregada num quintal, juntamente com outras árvores, e ouviu um homem dizer:

— Esta é a melhor. Só queremos esta!

Depois, vieram dois criados vestidos com uniformes brilhantes e levaram o Pinheirinho para uma sala enorme e bonita. Havia, por todo o lado, quadros pendurados nas paredes e, junto do fogão, estavam enormes jarros chineses com leões.

Havia cadeiras de balanço, sofás de seda, mesas cobertas de livros ilustrados e centenas de brinquedos por todo o lado.

O Pinheirinho foi posto dentro de um vaso grande com areia. A árvore tremeu! O que iria acontecer a seguir? Os criados e as crianças começaram a enfeitá-lo. Nos ramos, penduraram pequenos sacos feitos de papel colorido. Cada saco era enchido com guloseimas, maçãs douradas e nozes pendiam, como se tivessem nascido ali, e centenas de velinhas foram atadas aos galhos. Bonecas que pareciam pessoas de verdade pendiam de outros ramos e, mesmo no topo da árvore, estava fixada uma estrela de latão. Era magnífico, extraordinário!

— Esta noite, — disseram todos — esta noite, a estrela brilhará.

— Oh! — disse o Pinheirinho — Se ao menos já fosse noite! Oh, espero que acendam as velas brevemente. Será que as árvores vêm da floresta para me ver? E será que os pardais vão espreitar pelas janelas? Será que vou ficar aqui ornamentado para sempre?

Todas estas perguntas causaram dores de costas à árvore e as dores de costas são tão más para as árvores como as dores de cabeça para as pessoas. Por fim, as velas foram acesas. Que brilho, que esplendor! O Pinheirinho tremeu tanto que uma das velas pegou fogo a um ramo verde, mas foi rapidamente apagado.

E, naquele momento, as portas foram abertas de par em par e as crianças entraram cheias de pressa. Olharam fixamente e em silêncio para a árvore, mas apenas por um minuto. Começaram a gritar de alegria e a dançar em volta da árvore, puxando os presentes.

“O que estão a fazer?”, pensou o Pinheirinho. “O que se está a passar?”

As velas arderam até ao fim, as crianças tiraram as guloseimas da árvore e dançaram com os brinquedos novos. Já ninguém olhava para a árvore, exceto um homem idoso que se aproximou e espreitou por entre os ramos para ver se todas as nozes e maçãs tinham sido comidas.

— Uma história! Uma história! — gritavam as crianças, e levaram, para junto da árvore, um homem divertido, que se sentou mesmo debaixo dela.

— Vamos fingir que estamos no bosque verde, — disse — e que a árvore consegue ouvir o conto.

E o homem divertido contou o conto de Klumpey-Dumpey, que estava sempre a cair pelas escadas abaixo e, já no fim, casou com uma princesa. O Pinheirinho ficou bastante silencioso e pensativo. Os pássaros do bosque nunca tinham contado uma história como esta. Klumpey-Dumpey sempre a cair pelas escadas abaixo e, mesmo assim, casou com uma princesa.

— Bem! Bem! — disse o Pinheirinho. — Quem sabe? Talvez eu também tenha de cair pelas escadas abaixo e casar com uma princesa! — e estava ansioso por ser de novo decorado com velas, brinquedos e frutos, na noite seguinte.

Mas, de manhã, os criados vieram tirá-lo da sala, levaram-no para o sótão e puseram-no num canto, onde não entrava a luz do dia. “O que significa isto?” pensou a árvore. “O que estou a fazer aqui? O que está a acontecer?”

Encostou-se à parede, pensou e pensou. E teve tempo suficiente, pois passaram-se dias e noites e ninguém voltou lá a subir.

A árvore parecia ter sido totalmente esquecida.

— Agora é Inverno lá fora. — disse o Pinheirinho. — A terra está dura e coberta de neve, e as pessoas não podem plantar-me. Suponho que devo ficar aqui abrigado, até que venha a Primavera. Que atenciosos! Mas que pessoas boas! Se ao menos aqui eu não estivesse tão às escuras e tão sozinho!… Era bonito lá fora, na floresta, quando a neve pousava espessa, e aquela lebre vinha saltar por cima de mim mas, na altura, eu não gostava. Isto aqui em cima é terrivelmente solitário! Mas que pessoas boas!

De repente, dois ratinhos aproximaram-se lentamente. Cheiraram o Pinheirinho e, depois, subiram para os ramos.

— Está muito frio aqui em cima. — disseram os dois ratinhos. — Também achas, árvore velha?

— Não sou velha. — disse o Pinheirinho.

— De onde vens? — perguntaram os ratos. — E o que conheces?

Eram muito inquisitivos.

— Conta-nos sobre o lugar mais bonito do mundo! Já estiveste lá?

— O lugar mais bonito do mundo, — disse a árvore — é a floresta, onde o Sol brilha e os pássaros cantam. E, depois, contou aos ratos tudo sobre a sua juventude. Os ratinhos ouviram e disseram:

— Tantas coisas que já viste! Deves ter sido muito feliz!

— Fui! — disse o Pinheirinho. — Aqueles foram, realmente, tempos de felicidade.

Mas, depois, contou-lhes sobre a Véspera de Natal, quando tinha sido enfeitado com guloseimas e velas.

— Oh! — disseram os ratinhos. — Como foste tão feliz, árvore velha!

— Não sou velha. — disse a árvore. — Só saí da floresta este Inverno.

— Mas que histórias maravilhosas podes contar! — disseram os ratinhos.

E no dia seguinte, vieram com mais quatro ratinhos para ouvir o que a árvore tinha para contar.

Assim, o Pinheirinho contou-lhes a história do Klumpey-Dumpey e os ratinhos correram direitos para o topo da árvore, cheios de satisfação. Na noite seguinte, vieram muito mais ratos, e o Pinheirinho contou outra vez a mesma história. Mas, quando descobriram que a árvore não sabia mais histórias, os ratos ficaram aborrecidos e foram-se embora.

O Pinheirinho ficou triste.

— Era muito agradável, quando os ratinhos divertidos ouviam a minha história, mas em breve vai chegar a Primavera. Vou ficar tão feliz quando me tirarem deste local solitário!…

Quando chegou a Primavera, as pessoas vieram remexer no sótão. Um criado levou a árvore para baixo, onde a luz do dia brilhava.

“Agora, a vida vai começar de novo!”, pensou a árvore.

Sentiu o ar fresco e os raios do Sol no pátio. O pátio estava perto de um jardim, onde as rosas estavam em flor, as árvores cheias de folhas e as andorinhas a cantar.

— Agora, tenho de viver! — disse a árvore, alegremente, e esticou os ramos. Mas, meu Deus! Estavam todos murchos e amarelos. Ficou a um canto, entre as urtigas e as ervas daninhas. A estrela de latão ainda lá estava e brilhava com a luz do Sol.

No pátio, as crianças, que no Natal tinham dançado à volta da árvore, estavam a brincar. Uma delas trepou à árvore e tirou a estrela dourada.

— Vejam o que está agarrado a este velho e feio Pinheirinho. — disse a criança, e começou a pisar-lhe os ramos até partirem debaixo das botas.

E a árvore olhou para todas as flores e para o belo jardim e, depois, para ela própria, e desejou ter ficado no canto escuro do sótão. Pensou na juventude fresca na floresta, na Véspera de Natal feliz e nos ratinhos que ouviram com tanta alegria a história do Klumpey-Dumpey.

— Passado! Passado! — disse a velha árvore. — Acabou tudo. Se ao menos tivesse sido mais feliz naquela época.

E veio um criado e cortou a árvore aos pedacinhos. Estava ali um feixe enorme. Ardia resplandecente no fogão, suspirava profundamente e cada suspiro era uma pequena explosão. As crianças sentaram-se junto da lareira, olharam para ela e gritaram:

— Zás! Trás!

Mas, a cada explosão, que era um suspiro profundo, a árvore pensava num dia de Verão na floresta, ou numa noite de Inverno, quando as estrelas brilhavam. Pensava na Véspera de Natal e no Klumpey-Dumpey, a única história que tinha ouvido ou que sabia contar; e, depois, a árvore foi queimada.

As crianças brincaram no jardim e o mais novo usou a estrela dourada que a árvore tinha usado na sua noite mais feliz.

Agora, tudo acabara. A vida da árvore tinha terminado e o conto também.

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicado originalmente em 1844.

Concurso de Trovas Memorial "Cláudio de Cápua" (Prazo: 31 de outubro de 2023)

 


Realização:
Blog Pavilhão Literário Cultural Singrando Horizontes
https://singrandohorizontes.blogspot.com
Coordenação: J. Feldman (editor do blog)

 
Entidades Parceiras:
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Falando de Trova (https://falandodetrova.com.br) /SP

O Blog Singrando Horizontes, comemorando 16 anos de existência, com quase 18 mil publicações e cerca de 3 milhões de leitores, realiza o Concurso de Trovas homenageando o trovador Cláudio de Cápua.

Cláudio de Cápua, aviador, jornalista profissional. Especialista em jornalismo cultural, nas áreas de Artes Plásticas e Literatura, com publicações em diversos veículos de Comunicação da Pauliceia e Litoral paulista. Lato Sensu em História da Arte (Universidade Mackenzie), graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Santos. Nasceu em 8 de março de 1945, São Paulo/SP. Iniciou na TV Tupi em um grupo que adapta obras literárias para novelas, na década de 70. Produtor e diretor de jornalismo especializado (arte, cultura e lazer) na TV Gazeta, entre 1978 e 1980. Editou a Revista Santos Arte e Cultura, da qual foi editor e articulista. Biógrafo, prosador e poeta, foi um dos fundadores da “União Brasileira de Trovadores”, Seção de São Paulo e, desde 1980, parte do quadro associativo da Seção de Santos. Conquistou vários prêmios em Concursos de Trovas em território nacional. Cláudio de Cápua, que era casado com Carolina Ramos,  faleceu em Santos/SP,  onde se radicou definitivamente, de aneurisma, a 5 de dezembro de 2021, aos 76 anos.

ÂMBITO NACIONAL/INTERNACIONAL

Categoria Veteranos: 
 
Tema: SEGREDO/S (lírica/filosófica)

Em noite alta... madrugada,
contemplo a lua contrito
- Barca de prata aportada
nos segredos do infinito.
Cláudio de Cápua


Categoria Novo Trovador: 
 
Tema: SEMENTE/S (lírica/filosófica)

Com mensagem sempre nova,
transpondo mágoas e dor,
pelos caminhos da trova
planto sementes de amor.
Cláudio de Cápua


Novo Trovador é aquele que não obteve até a divulgação deste regulamento 3 (três) classificações em concursos de trovas oficiais da UBT, a nível nacional, independente de ser associado ou não à UBT.

A palavra tema deve estar na trova.


Máximo de 2 (DUAS) Trovas por concorrente.

Apesar do concurso seguir as normas da UBT, mas por não ser promovido por ela, não se enquadra como concurso oficial da entidade. Este é, como os concursos anteriores, independente.

ENVIO DAS TROVAS POR EMAIL (Prazo: 31 de outubro)

para o Fiel Depositário:
Prof. Giuseppe Paolo Dell’Orso

E-mail:   
 gpdellorso@gmail.com

Como enviar trovas por e-mail (no corpo do e-mail):

Assunto: Concurso de Trovas Memorial “Cláudio de Cápua”

Acima da Trova:
Categoria (Novo Trovador ou Veterano)

Abaixo da trova:
Nome inteiro, cidade/estado (país se não for do Brasil), e-mail para contato (obrigatório).

Caso o trovador use pseudônimo ou abreviatura do nome, favor enviar o nome completo, caso venha a ser premiado, a não ser que opte por manter a abreviatura ou pseudônimo.

Anexos não serão aceitos.
 
Sistema de Envelopes (Prazo: 31 de Outubro de 2023)

Enviar para:
Profa. Alba Krishna Topan Feldman
Av. Mário Clappier Urbinatti, 724
Bloco E ap. 11
Zona 7
CEP. 87020-901   Maringá - PR


Aconselha-se que enviem as trovas por e-mail, em virtude de os correios estarem com atrasos em entregas simples.

Após o encerramento haverá uma espera de mais 5 dias para os envelopes que podem estar atrasados nos correios, e ao final do quinto dia as trovas serão enviadas para julgamento.

Como enviar pelo Sistema de envelopes

As trovas devem ser coladas na face externa de um pequeno envelope. Dentro dele deverá estar o nome do autor completo com seus dados pessoais: cidade/estado/país, e-mail para contato, telefone fixo (e operadora para contato, no caso de celular. Ex: TIM, Vivo, Claro, etc.).

Na face externa do envelopinho a trova (DIGITADA ou DATILOGRAFADA, não serão aceitas manuscritas), o tema no alto da trova. Se Veterano ou Novo Trovador, colocar abaixo da trova esta categoria. Lacrar o envelope. Num envelope maior colocar o nome e endereço a quem deve enviar, e no remetente, o mesmo endereço para quem está enviando, e o nome Cláudio de Cápua.

Observação: A trova deve ser digitada (datilografada), não serão aceitas trovas manuscritas.


§ - Seja por envelopes ou por email, é necessário constar a que categoria (Veteranos ou Novo Trovador) a que concorre.

As Trovas devem ser inéditas, isto é, que não tenham sido premiadas em outros concursos ou divulgadas pela Internet ou outros meios de divulgação até a data da publicação do resultado.

Serão eliminadas as trovas que contenham erros como: não colocar pontuações; não seguir o sistema ABAB (rimar 1. com 3. verso e 2. com o 4. verso); erros gramaticais; não tiver a palavra tema na trova; de conteúdo racista, pornográfico, político, etc.

O Prazo se encerra à meia-noite de 31 DE OUTUBRO DE 2023.

Os resultados serão divulgados em blogs, sites, facebook, emails enviados aos premiados, revistas virtuais, academias e blogs.

As decisões das comissões julgadoras serão definitivas.

A premiação, composta de certificado e ebook com as trovas premiadas, serão enviados diretamente aos premiados via e-mail.

Será premiado também, o trovador veterano melhor colocado em seu estado e que tenha obtido pelo menos a média mínima (e não tenha sido premiado na classificação geral do Nacional/Internacional).


Os membros da comissão julgadora, o coordenador e os fiéis depositários não poderão participar do concurso.

A participação no concurso significa aceitação plena das normas aqui relacionadas.

Maringá ,  08 julho de 2023.
J. Feldman – coordenador geral
Contatos, dúvidas: gralha1954@gmail.com

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Versejando 119

 

A. A. de Assis (Antessala do céu)

Tenho lido aqui, ali e alhures que cerca de 97 por cento da população mundial declara crer em Deus e na continuidade da vida após o repouso do corpo provisório. Significa que 97 em cada 100 pessoas, em alguns momentos, certamente se preocupam com o que lhes acontecerá no lá mais adiante. Eterna felicidade ou sofrimento eterno? 

O ideal seria que todos, desde crianças, tivéssemos condições para trilhar sem desvios o caminho da pureza e do amor. No entanto isso é difícil demais. Somente umas raríssimas pessoas conseguem chegar ao final da peregrinação terrena com a alma prontinha para de imediato ingressar no reino da bem-aventurança.  

É que nossa passagem por este complicado planeta é cheia de atropelos, tentações, transtornos mentais, competições, carências, machucados de todo tipo, de modo que se torna quase impossível concluir a jornada livres de manchas, recalques, ressentimentos, culpas, remorsos – resquícios que precisam ser expurgados.

De minha parte, acredito que o sacrifício de Jesus Cristo já nos redimiu. Todavia penso ser indispensável a gente estar com a alma suficientemente em ordem no momento da transferência para a celestial morada.

A esperança, então, é que a inesgotável bondade de Deus nos conceda a chance de passar por um estágio intermediário de higienização moral e espiritual, durante o qual possamos completar a cura das nossas imperfeições e assim chegar finalmente ao estado de céu. Alguns creem num processo de aperfeiçoamento mediante sucessivas reencarnações; outros, eu inclusive, acreditamos que tal processo ocorra num capítulo único, conhecido como purgatório. 

Em linguagem humana, é difícil, no entanto, definir o que seja purgatório. Não é um tempo, não é um lugar. Como o nome indica, seria uma generosa oportunidade que Deus nos oferece para purgar, depurar, limpar as nossas impurezas. 

Também não se trata de um castigo, mas de uma escola. Um treinamento para a nossa paulatina integração na comunidade dos justos. 

Imagino que tal treinamento inclua muita oração e longos momentos de reflexão sobre os erros e omissões cometidos no relacionamento com os irmãos e irmãs aqui no mundo físico e sobre como cada um fez uso dos seus talentos. Incluiria também, provavelmente, um crescente esforço de domínio sobre os maus impulsos, além de exercícios diversos para o fortalecimento de nossas virtudes. 

Seria, enfim, uma preparação complementar das almas para a convivência amorosa, solidária e eternamente feliz com a população do céu. 
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 27-4-2023)

Nilto Maciel (Joam, o Sedutor)

Eu não morro de amores,
eu vivo de amor.
(Anônimo)

Dom Joam não chegou a conhecer Hugo Capeto nem o imperador Oton. Não lhe interessavam monarcas, fossem francos ou saxões. Muito menos bizantinos. Sua vida toda dedicou-a a amar mulheres.

A primeira delas – uma formosa senhora  – chamou-se Maria. Sua própria mãe. E esta paixão durou alguns anos.

Nasceu Joam pleno de virtudes. Sua beleza física deixava pasmas as mulheres. Cedo aprendeu a falar. E a falar galante­mente. Num minuto convencia a mais empedernida virgem a entregar-se-lhe. No mais das vezes, valendo-se da poesia. Pois também fazia versos. Vilancetes, coplas, cantigas de amor.

Muitas mulheres o amaram. Algumas chegaram a assumir publicamente o adultério. As solteiras acabaram nos prostíbulos. Outras se envenenaram.

Porém, muito ódio andou à volta de Joam. Principalmente por parte dos maridos enganados. Mas também dos invejosos. E dos esposos de mulheres belas.

Logo sua fama de Don Juan chegou aos ouvidos d’El Rei, assim como aos do papa de plantão. Acusado de solapar a família cristã, de criminoso e pecador mortal.

O julgamento trouxe a público cenas escandalosas. Os mais poderosos fidalgos consumiam-se de indignação.

Indefeso, Joam recebeu a pena da eterna prisão.

Adendo: Apesar de preso, Joam continuou o mesmo. Ignorava os sultões de Bizâncio ou os imperadores do Sacro Império. E, livre como sempre, amava cada vez mais as mulheres. E as seduzia – em sonho, nos seus ou nos delas. Ou talvez por teleplastia*.
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* Teleplastia = fenômeno de aparição materializada de alguém em local de onde está ausente.

Fonte:
Enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.

Jacira Fagundes (Por uma pausa na solidão)

Caminho pela casa e me contrai o exagero de espaço que tenho para mim mesma. Na varanda, as plantas florescem e se espalham pelos vasos que disponho aqui e ali; a cama de ferro em meu quarto parece ultrapassar as medidas, assim coberta pela colcha de damasco; faz tempo deixou de ser cúmplice de amores. Hoje é o lastro onde repouso meu corpo solitário e o cubro para aquecê-lo do frio e da solidão, o que nem sempre consigo.

Olho o fogão preparado para a abastança - a velha chaleira com água a chiar, de repente chega alguém para o mate; a panela da sopa cozinhando os legumes da horta; e o bule do café, concentrado e amargo, que é para temperar conforme o gosto.

Mas não espero ninguém, porque hoje é domingo.

Não há entrega de gás. E não vem bater o carteiro, nem a moça da lavanderia, nem a mulher da faxina, ou o homem do bilhete, ou a vizinha a pedir emprestado - "Depois lhe devolvo, dona Eulália, a tesoura de podar, o alicate, a peneira, um saquinho de baunilha que me faltou para a sobremesa, o cravo, a canela, um comprimido, maldita dor nas costas..."

Sob a janela, não vem importunar os moleques, e eu não vou alcançar as balas, as rapadurinhas, ou o trapo velho para limpar os machucados das brincadeiras violentas, ou o copo d água que tantos me pedem e por vezes fazem fila enquanto encho o copo e o primeiro esvazia e eu encho outra vez e vem o seguinte e aí por diante.

Na sala, a mesa se agiganta nesses dias em que os nervos me transbordam e parece desperdício estender a toalha na ponta do móvel, acanhada - o prato, o cálice, o guardanapo, cada utensílio mais unitário que o outro. Mesmo assim, me sirvo o almoço, como requer a etiqueta. Gostosa essa sopa, me anima e conforta. Sorvo o vinho, a garrafa recém-aberta, e me farto do sabor agradável descendo pela garganta. Fecho os olhos e percebo ainda mais agudo o silêncio. E então torno a abri-los, tomada por esse desejo passageiro e fantasioso - vontade que me façam companhia os sons amados, e que pratos e cálices espalhem-se, lado a lado, por toda a extensão da mesa posta.

"A luz entra escandalosa pela janela escancarada. O burburinho e o atropelo enchem a sala de euforia. Detenho meus olhos em cada um e ao mesmo tempo - nos homens da minha vida. É uma refeição intermeada de palavras soltas e despretensiosas, de dentes à mostra e barrigas fartas. Uma vez ou outra uma risada à toa, um derramar de líquido na toalha, um derrubar de talheres e um safanão entre irmãos.

Sirvo agora o homem velho à cabeceira - meu pai. A mão trêmula entornou o molho e já os netos apontam o avô em meio a risadas. Afago as cabeleiras fartas de meus pequenos e a cabeça branquinha de meu pai, rala de fios.

E vão chegando os convivas. Então, à minha frente, celebro a presença do pai de meus filhos, já então crescidos e senhores de suas vontades, não necessitam baixar os olhos quando o pai fala porque a voz do pai passou à branda e há sentimento e verdade naquilo que diz.

Hoje é outra vez domingo, e eu faço de conta?

Ao redor da mesa, o irmão encara o irmão com agrado sem precisar defender-se a cada observação. Os mais velhos perdoam, nos mais novos, a audácia, o ócio, o descaso e a pressa. Os mais jovens se enternecem com a paciência, a conformidade e o desânimo que assaltam os mais velhos. Numa sintonia, todos falam e todos escutam e apreciam as mesmas músicas e riem das mesmas histórias. Nessa mesa em que é servido o Banquete de Platão, todos são doutores e aprendizes. Aqui flui a amizade entre o pai e os filhos, os netos e o avô; a alegria não será perturbada e não surgirá desavença e não haverá quem se afastará com rancor.

A um só tempo reparto o pão e meu sonho de liberdade, deito o vinho nos cálices e abençoo os convivas. Ouço meu pai recitar uma prece e, quando ele termina, acaricio seu rosto. Olho o pai de meus filhos e a cumplicidade que se constrói dispensa palavras. E eu sinto que bom ter chegado até aqui e poder reunir os meus, depois que amassei o pão e amamentei e lavei a roupa suja e depois pendurei no varal e preparei a refeição e deitei na rede e me entreguei ao descanso. E acariciei o amado e velei seu sono, e castiguei o filho e lhe sarei a ferida. Lembro as coisas passadas e vejo o ontem com o olhar de hoje e não peço perdão pelas ações de antes porque sei que há muito foram perdoadas.

Hoje é outra vez domingo e eu alcanço a possibilidade do voo. Porque é assim que reúno o que restou dos meus, e só o faço uma vez ou outra.

Antes que se esvaziem os lugares na mesa, agradeço a cada um pela sensação de conforto que me traz a proximidade assim repentina e manifesto a felicidade que tive com a chegada e que devolvo agora com a partida. Ao se despedirem, saibam todos, que a serenidade sempre me volta nessas horas. E, outra vez, sinto na face o frescor do vento e ando sobre as pedras e sobre a grama com a mesma desenvoltura."

E quando tudo tornar a ficar como antes é porque cada um voltou ao seu lugar e isso é muito bom, eu sempre acabo afirmando.
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("Por uma pausa na solidão" integra a Edição II - 2014 - do Projeto Prosa na Estrada do Instituto Estadual do Livro)

Fonte:

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capitulo 6: Noite fandangueira

Finalmente chegou o momento do grande baile. E a dona Noite, bela e glamorosa, com seu vestido preto, bordado de estrelas, se preparava para dançar até o dia amanhecer, depois, por certo, exausta, adormeceria dando lugar ao sol. 

Tão iluminada quanto à noite, estavam as prendas a se enfeitar em frente aos espelhos.

Dona Ana pôs um vestido rubro com bordados em linho branco. O vestido de Isadora era de um inocente azul celeste, que enaltecia os negros fios dos seus cabelos. E Enila, sempre tão meiga, só poderia vestir-se em um delicado tom de rosa.

- Ana, por que vestiu encarnado? - perguntou o implicante marido ao ver a mulher exuberante.

- Não vejo nada demais, homem.

- Não gosto de “muié” que chama atenção.

- Pai, não cria problemas. Hoje é noite de festa - disse Isadora, ao ajeitar o lenço vermelho no pescoço do velho.

Neste momento chegaram os pais de Enila:

- Mas que barbaridade! As prendas mais lindas deste pago estão aqui - disse o senhor Fiore, ao ver as mulheres tão bem vestidas. A sua esposa, dona Eliana, optou por um vestido lilás e um coque dourado, que enalteciam o seu rosto claro. Cumprimentou gentilmente e elogiou dona Ana pela escolha do vestido.
       
- Tá na hora do baile. “Vamo”! - Chamou o senhor Antônio, sempre trajado com a sua pouca paciência.

O CTG estava lotado. Havia muitas mesas sendo servidas, e gente faceira a dançar por todo o salão. Os jurados do concurso de poesia, estavam a postos, sentados juntos em uma mesa especial. A atração mais esperada da noite já se fazia presente no palco. Tratava-se de Vitor Mateus Teixeira, o famoso Teixeirinha, juntamente com sua parceira, a Mary Teresinha.

Naquela época, eles formavam a dupla mais famosa do Rio Grande do Sul. Brilhavam em seus desafios musicais, onde a trova reinava sem pedir licença. Porém o talento de Mary Teresinha ultrapassava as fronteiras do cantar. Ela tocava gaita como poucos. Até ficou conhecida por muitos como “A Menina da Gaita”.

A família Fiore e a família Machado buscaram acomodar-se para assistirem ao show. 

Os olhos da prenda Isadora cintilavam em direção ao palco.
 
Trecho do desafio musical da dupla ...

(Teixeirinha)
Meus amigos estou chegando,
Venho de cima da Serra
Procurando um trovador 
Aqui na face da Terra
No meu rodeio de trova 
Torito baixo não berra

(Mary Terezinha)
Eu também estou chegando 
Nesta hora encantadora 
Venho vindo da fronteira
Na trova sou professora 
Aceito o teu desafio 
E vou te surrar de vassoura

(Teixeirinha)
Pra me surrar de vassoura
Se eu perder quero uma vaia
Eu procuro um cantador 
Que dê três quadras na raia
Por castigo me aparece 
Pra trovar um rabo de saia

(Mary Terezinha)
Pra trovar um rabo de saia 
Sai daqui petiço manco
Puxa a violinha e vem
Que tu vai no primeiro arranco
Trovador da tua marca
Costumo dar de tamanco 

A noite contou com outras atrações: as ilustres poetas e trovadoras, Doralice Gomes da Rosa e Neoly Oliveira Vargas, que faziam parte da comissão julgadora do concurso “Poeta Revelação’, e que logo mais também fariam suas apresentações poéticas, estavam numa reserva próxima ao palco, rindo e brincando junto de alguns jovens, fãs de seus versos.

- Aqui temos três exemplos femininos de que a mulher pode, sim, se expressar e ser feliz dentro e fora de casa. Mary e essas maravilhosas poetas. - disse a prenda bonita, sentindo-se muito orgulhosa em poder estar ali prestigiando aquelas mulheres que, grandiosamente, conseguiam expressar seus nobres talentos frente a uma sociedade tão machista.

 - “Muié” não tem que andar por aí se exibindo. - afirmou o senhor Antônio, sempre reclamando de tudo.

Após ouvirem o infeliz comentário, todos jantaram, enquanto continuaram assistindo à apresentação da dupla mais querida do pampa rio-grandense.

Logo depois do show, subiu ao palco o jovem poeta, Genuíno Campos, um jovem pouco conhecido no mundo da poesia, mas notoriamente talentoso. Ao recitar seus versos, seus olhos se cruzaram com os olhos de Isadora e ambos se atraíram feito imã...

“Sonhos... 
Eis que a prenda, neste sonhar de olhos abertos, me encontrou. 
Cabelo de sereia, olhos de jabuticaba, 
sorriso de amor faceiro. 
Meu devaneio nunca fora tão real... 
Uma mistura de bem e mal me invade agora. 
Nesse caminho cheio de ilusão, 
encontrei o meu tesouro. 
A lua, de repente, me observou... 
E resplandeceu – se inteira sobre a noite de minha pele. 
Sinto-me flutuar... 
Quero para mim este luar.
E brincar de amar, de amar um amor eterno...
O poeta não precisa adormecer para se achar no mundo dos sonhos.
Porque o sonhar é o despertar do poeta sonhador, é a sua água viva, sua realidade definitiva e amorosa."    

 Essa foi uma apresentação surpresa. Ninguém conhecia o rapaz. 

Após sua declamação, com a licença do Senhor Antônio, ele convidou Isadora para dançar. Ela tão branca, ele negro, eram como a noite e o dia a misturar –se nos compassos de uma nova dança...

O seu jeito de poeta, alegre e sonhador, logo conquistou a simpatia da prenda.

Enila sorria de longe para a amiga, acenando com a mão enquanto dançava com o noivo.

- Obrigado por aceitares essa contradança. Aprecio a crescente participação das mulheres em eventos como este. - disse o jovem rapaz, belo, alto e extrovertido.

- Não és conservador? - indagou Isadora.

- Depende do tipo de conservadorismo que estás a te referir.

- Não és da opinião de que as mulheres não devem se expor, já que nasceram somente para cuidar da família?

- Sim. O primeiro dever das mulheres é para com sua família, mas esse é também o primeiro dever dos homens, minha flor.

- Como te chamas? - perguntou ela. 

- Genuíno.

Isadora sorriu. E eles continuaram a dança.

Enila dançava com o noivo, seu Fiore, com a esposa. E dona Ana permanecia sentada ao lado do marido, que não sabia se estava feliz ou não com a decisão de ir ao baile. 

Mais tarde, para recitar alguns dos seus versos, subiu ao palco a esperada veterana trovadora, Doralice Gomes da Rosa.

- Boa noite, gaúchos e gaúchas de todas as querências. Estou aqui, nesta noite gloriosa, para lhes recitar alguns dos meus versos. Quero o aplauso de todos. Quem não gostar, pode aplaudir do mesmo jeito. - disse, fazendo o público rir com a sua irreverência. 

Queridas prendas, não façam como...
 Aquela coroa enxuta:
mal anoitece, ela sai,
dizendo que vai à luta,
- Só Deus sabe onde ela vai!

“Às mais jovens tenho a dizer:
Meninas, eis um conselho, 
vede bem por onde andais!
A honra é como um espelho,
se quebrar, não cola mais...

“Mas meu caso é diferente. E não tem jeito, não.
Longe de ser fogo brando,
nosso amor, quase heresia,
é uma usina turbinando 
vinte e quatro horas por dia!...

“Não julguem a minha contradição, façam o que digo, não o que faço, e de Deus, Patrão Velho, buenacho, terão toda proteção!

“Se bem que, os amantes, fazem parte da sua melhor criação divina!

“Quer saber? Sejam apenas felizes e nada mais.”  

O público aplaude de pé. E ela encerra a apresentação dizendo: - Estou muito orgulhosa em fazer parte de uma festa tão formosa junto de presenças ilustres.

Doralice passou o microfone para dona Neoly, uma querida confreira. 

- A vida é tão boa! Vamos agradecer?
Pelo sol, pela beleza, 
deste céu, do mar, da flor. 
e por toda a natureza
eu te agradeço, Senhor. 
Mas só agradecer, não basta, precisamos pregar a paz:
Tanto ódio!...Tanta guerra!...
Mandai bons ventos, Senhor,
aos quatro cantos da Terra,
somente espalhando amor!

Sabem porque precisamos ser assim? Porque...
Viver é recomeçar,
olhar em frente, sorrir,
é ter coragem, lutar
acreditar no porvir.”  

O público torna a aplaudir alegremente a doçura com que a poeta Neoly recitou seus versos. 

Teixeirinha cumprimentou aleatoriamente os convidados da festa. E, ao notar a presença de Isadora, admirado, interrompeu a dança do casal. 
 
- Mas bah, estou de “beiço inchado”... Aqui no Rio Grande tem muita moça bonita, mas igual a ti, minha prenda, meus olhos ainda não tinham visto. Não te enciúmes, - disse ele à Mary Terezinha - pois tu és a minha prenda favorita.

- Não me enciúmo, caro companheiro. Sei reconhecer e admito que tua admiração é justa - disse a Mary, com simpatia.

Isadora agradeceu, elogiou o talento da dupla e voltou a dançar com Genuíno.

- Onde moras? - perguntou o trovador.

- Na fazenda “Prenda Bonita”.

- Trabalho naquelas redondezas. Irei te visitar, guria. Posso?

- Sim. Quero te ver mais.

Isadora estava visivelmente feliz. Numa única noite conheceu tradicionalistas famosos de quem sempre foi fã, e um interessantíssimo jovem poeta / peão. 

Sem sombra de dúvidas, aquela fria e ao mesmo tempo calorosa noite de inverno, se fez inesquecível, tanto para Isadora, quanto para outras prendas ali presentes, habituadas ao isolamento doméstico.  

A comissão julgadora do concurso deu o primeiro lugar a Genuíno, a mais jovem revelação no mundo dos versos naquela região de Cachoeira do Sul e interior. Emocionado, ele recebeu os cumprimentos de Neoly, Doralice, da Mary, e um gratificante troféu, vindo das mãos de Teixeirinha.
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continua…

Fonte:
Enviado pela autora.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 9

 

Marques de Carvalho (Um como tantos)

Haviam já passado para Nazareth, de volta do Vero-peso, os derradeiros bondes do espetáculo. A pouco e pouco, os peões tinham rareado no cimento dos largos passeios das avenidas, — o trânsito fizera-se nulo, um ou outro noctívago impenitente andava errante à sombra propícia das folhudas mangueiras, investigando a distância com olhares incendidos de uma ponta de lubricidade contida a contra-gosto. Nos renques da iluminação elétrica manifestavam-se eclipses intermitentes, contra os quais praguejava, sem bem saber porquê, o cocheiro de uma carruagem estacionada em frente ao Club Universal. Poucas mesas restavam no terraço do Café Riche. Entretanto, um criado sonolento, não obstante a ausência de frequentadores, persistia, pelo hábito, em dispô-las em simetria, rodeando-as de cadeiras. O chão estava zebrado de umidades adocicadas, escorrido de Apolinaris transbordante, coalhado de rolhas, aqui e acolá brilhante de pedaços de cápsulas das garrafas de cerveja. Perto, gania um cão. Mas outro cachorro irrompera do centro da enorme praça, viera em linha reta, cabeça baixa e cauda erguida, para junto daquele e, após as rápidas saudações peculiares, foram-se ambos, General Gurjão a baixo. Libérrimos animais!

Silvério, meio voltado para a esquerda, acompanhara-os com a vista, distraidamente; até desaparecerem na silente escuridão da rua. Estava sentado num banco, havia muitas horas, defronte da curva dos bondes. O olhar avistara um cartaz colado à parede da Casa Adolpho: uma parisiense, com a saia batida pelo rijo vento de Montmartre, puxava um carro-anúncio, formoso preconício (propaganda) do estabelecimento. Pareceu-lhe que a sua situação moral estava em analogia com o quadro, afora os matizes garridos. Ele também andava atrelado ao carro da vida, fustigado e zurzido pelo tufão dos dissabores domésticos. As tintas, porém, com que se devera pintar a sua existência tinham de ser amassadas na palheta das desditas, — toda a gama sombria das cores carregadas, desde o roxo dos goivos ao negro da infelicidade.

Desviou a vista do obsidiante cartaz, pois não fora para atiçar tristes lembranças que saíra de casa. Bem ao contrário, necessitava de distrair o espírito, refrescar o cérebro na suave tranquilidade da noite, em plena praça. Tirou o chapéu, conservando-o na mão direita e estendeu os braços pelo espaldar do banco. A cabeça, de largas entradas, pendeu para trás: dir-se-ia um crucificado; e o olhar foi ao alto, cravou-se na insondável amplidão do espaço, ao fundo da qual fosforesciam estrelas, aos milhares. Afundou-se então na tremenda reviviscência dos seus infortúnios.

— Lá vai ela outra vez. - bradou alguém, à direita.

Silvério, com um estremecimento, voltou à vida exterior, buscando descobrir quem falava. Era o cocheiro, — o Cadete ou o Bruzegas, — à porta do Club, encarapitado na boleia, a denunciar em solilóquio cada intermissão na luz do foco elétrico mais próximo.

— Feliz mortal - murmurou Silvério, invejoso da despreocupação daquele homem.

O Riche, a cuja porta cabeceava o proprietário, estava sempre iluminado, e o servente, fatigado ao fim de ordenar mesas e cadeiras que ninguém desarrumava, ia toscanejando (cabeceando com sono), mesmo de pé, escorado à cerca de uma das mangueiras. Cessara todo o movimento de transeuntes. Os demais cafés da avenida haviam fechado. Pelas janelas abertas do Universal, desciam ondas da iluminação dos salões desertos. Nos dois passeios, varredores urbanos passavam sobre o cimento, em largos gestos, longas vassouras de sacaís (gravetos). E bem adiante de si, viu Silvério, ao meio do enorme quadrilongo, com o pedestal rodeado de fulgurantes globos elétricos, ereta no alto da desproporcionada coluna, a estátua da Liberdade, emergindo por sobre a folhagem da arborização.

— Liberdade! Não ser eu também livre! – murmurou suspirando. 

E, malgrado o seu empenho em distrair as ideias, voltou a concentrar-se nas magoadas recordações da própria desgraça. Casado há quatro anos, com uma compatriota, uma italiana, a quem aliás dera lugar em seu leito por um impulso de generosidade, ante a extrema pobreza dos pais dela, a breve prazo começou a verificar que disparidades capitais de gênios e educação os incompatibilizavam para a vida comum. A princípio, insignificantes arrufos chegaram a oferecer-lhe um sabor novo na existência: das pazes que se lhes seguiam vinha um renascimento de ternura, uma inefável delícia para a intimidade dos longos e mudos amplexos. Ilusórios aperitivos, tais amuos. Pouco e pouco avultaram, tomaram corpo, assumiram as proporções de graves pendências barulhentas. A mulher tinha a bossa da loquacidade desenvolvida; e, quando se enfurecia, eram intermináveis gritarias, que o desesperavam na razão direta do natural sossegado e taciturno do infeliz.

Agravou-se depois esta situação, já bem penosa, com a intromissão dos pais de Luíza. A sogra levou-lhe para o lar a contribuição de torturas inéditas. A cada gesto, a cada passo de Silvério, uma recriminação. Debalde buscava o pobre comprar a paz do lar a custa de pequenos presentes para seus três algozes: nada prestava, tudo de ínfima espécie. «Já viram homem com tal falta de gosto?» O Silvério experimentara ao princípio chamar à ordem a mulher, com o auxílio de raciocínios discretos, arriscados a medo, mansamente, meigamente. Entanto, por amor dos dois filhinhos que tinham surgido entre acessos de raiva e curtas calmarias, sacrificou todo o resquício de sua virilidade moral: recolheu-se ao impassível silêncio de quem aceita resignado a brutalidade do destino. Quando rebentavam-lhe no lar os grandes temporais, recolhia-se a um quarto, embrulhava-se na rede, tapava ambos os ouvidos. E mulher e sogra, espicaçadas pela inesperada evasiva, iam levar-lhe a saraivada das injúrias superagudas, esganiçadas em falsete, — enquanto o sogro, impando (ofegando) da farta bona-chira (farta mesa) de malandro obeso, fazia em voz cava os soturnos trovões das ameaças: «Hei de quebrar-te as pernas, cão!»

Todo o seu afeto reverteu para as duas crianças, um pequeno e uma rapariguinha adoráveis, que chegavam a ter graça, tal a sua candidez, mesmo repetindo em tímidos balbucios as caluniosas exclamações da velha: «Papai é mau! Papai é feio!»

Feio, sim, e não era por sua vontade que nascera com uma caraça espalmada, que o sol da América do Sul tostara duramente. Mau, porém, não; e em silêncio protestava contra o qualificativo. Dizia-lhe a consciência não ser merecida a apóstrofe; contudo, sem escorraçar os meninos com a mais leve sombra de censura, tomava-os ternamente pela cinta, sentava-os ao colo, um em cada joelho, acariciava-os de manso, amimava-os, cobrindo-os de beijos e de silenciosas lágrimas.

De tudo isto lembrava-se o desditoso Silvério, inerte no banco da avenida, as pernas entorpecidas pela demorada imobilidade. Ainda há pouco, ao anoitecer, houvera em casa uma terrível cena. Persuadira-se Luíza estar o marido auferindo grandes lucros numa indústria inaugurada meses antes, lucros que desviava às ocultas para a Europa. E deu para exigir-lhe «a sua parte no negócio». Sogro e sogra tinham acudido com argumentos e gritos: «De certo, é preciso pintar já para aqui os cobres!» E, desenvolvendo preceitos jurídicos, explicava o velhote que «a não cohabitação material dos cônjuges recolhidos sob o mesmo teto não impedia a co-participação na pecúnia». Dispensou-se de se desculpar, o Silvério e, para não irem mais longe os brados, que estavam já a incomodar a vizinhança, tomou dissimuladamente o chapéu, fugiu precipitadamente rua adiante, até a avenida. Ali, ao menos, estava fora da confusão alçada. Safa!

A vista da estátua suscitara-lhe a nostalgia da liberdade. Relanceou um olhar pelo passado, desde a sua chegada a Belém e pasmou de ainda sentir dentro de si o que se chama um coração e uma alma, após sofrimentos tão longos e tamanhos. Onde teria ele o bom senso, já revelado desde a adolescência, quando cometeu a leviandade de casar com Luíza? Nada o libertaria agora, porque a sua inteireza de ânimo, a sua correção nativa lhe vedavam o supremo recurso da fuga. Prendiam-no ao cepo abençoadas cadeias: os filhos, que eram os doces elos ligando o seu alvedrio (decisões) á desdita.

As crianças! Ele também fora pequenininho, descuidado e travesso infante, nas amplas veigas lombardas, rescendentes a rosmaninho. Criara-o a inesgotável ternura da velha mãe, e tinha sido ao som dos rudes ósculos bonachões do pai que ele, paparicado à porfia, encetara a soletração do singelo alfabeto das carícias familiares. Em casa, no antigo e pobre lar, tão arejado no verão e tão cheio de tépidos braseiros pelo inverno, quando o norte inclemente bramia ríspido nos olivais e carvalhais, só recebera edificantes exemplos de tolerância mútua entre esposos amantes, de respeito calmo, de intensíssima afeição. E na dupla contemplação do carinho de seus progenitores e da forte paixão com que o gado amava na pradaria, manhã cedo, ao abalar da arribana (choupana), iniciara Silvério, desde jovem, o seu grande sonho de um lar todo meiguices, em férvida ventura conjugal. O sonho fora deveras fugaz. Em pesadelo tornara-se depressa, nestes ardentes países americanos, onde tudo parece crescer, desenvolver-se e passar vertiginosamente. Aqueles saudosos tempos estavam longe, formavam um grupo separado, distinto, na vasta coleção de suas recordações de outrora. Presentemente, nada restava da tranquilidade em que se formara a sua adolescência, na Europa, nem dos esperançosos, dulcíssimos sobressaltos que chegavam a tirar-lhe o sono, retendo-o até alta horas da noite no sombrio tombadilho do vapor, quando fizera a travessia do Atlântico. Tudo fugira, na definitiva liquidação da sua felicidade.

Esta dolorosa introversão foi interrompida por um relinchar de cavalo. Olhou Silvério à direita, como voltando de um sonho. Tinham-se afastado os varredores, andava ainda no ar, peneirada na luz dos focos elétricos, a poeira levantada pelas compridas vassouras. Sempre aberto, o Universal manchava de claro a ramaria das mangueiras com a projeção das salas iluminadas. Em frente à porta, o cocheiro falava manso aos animais impacientados. E o criado do Riche, desperto pelo relincho, obtivera do patrão a ventura de um gesto, ordem muda para fechar.

Entrou Silvério a acompanhar-lhe com a vista os movimentos, as idas e vindas, mesas levadas aos pares, cadeiras conduzidas a duas e duas em cada mão. Feliz homem, esse criado, pensava, se não tinha a inenarrável desdita de possuir um inferno em vez de lar. Ia dormir sossegado, tendo trabalhado materialmente, — reparadoramente. De repente, atravessou-se-lhe uma ideia no cérebro. Erguendo-se num esforço, bateu forte com os pés no lajedo, para os desentorpecer, e chamou o servente:

— Deixe essa mesa, – disse - traga um conhaque.

E sentou-se, com esta sentença espipada (saliente) de sua ironia dolorida:

— O álcool é a mortalha da dor.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
João Marques de Carvalho. Contos do Norte. Belém/PA: Typographia Elzeveriana, 1907.
Atualização do Português por J. Feldman

Mör Jokai (O Catavento infeliz)

Parece que a fortuna se diverte estendendo a mão favoravelmente a alguns indivíduos, enquanto que a outros só os engana e tortura a vida toda. Os seus caprichos fornecem-nos saliente exemplo dos dois modos de proceder. Relatamos os factos como os ouvimos, sem acrescentar uma palavra.

No final do ano de 1840, a guerra era o único assunto em voga. Especialmente em Peste, a palavra "paz" estava fora de moda. Os hotéis viviam plenos de hóspedes, que se encontravam em especial para discutirem o assunto predileto. Ouviam-se músicas marciais de manhã à noite; preparava-se a guerra europeia. 

Estavam sentadas diante de uma pequena mesa do Hotel Nagy Pipa duas personagens a quem se poderia aplicar o ditado alemão: “um cala e o outro o escuta”, porque uma dessas personagens parecia meditar atentamente a causa provável ou possível do silêncio do seu companheiro, deitando-lhe de vez em quando um olhar curioso como se quisesse sondar algum projeto secreto que ele tivesse forjado. 

Este sujeito observador era, nem mais nem menos, do que o compassivo Mestre Janos, cabo da polícia e vice-carcereiro da pobre cidade de Peste; e quando informamos aos nossos leitores de que ele ocupava este posto no tempo de Metternich, e que, apesar da queda deste ministro, ainda conservava o seu lugar, o que não costuma ser a sorte de um ministério caído, com certeza haverão de admitir que o favorecido pela fortuna era este Mestre Janos em pessoa. Da mesma maneira não se pode negar que o indivíduo à sua frente fosse perseguido pela deusa volúvel como era favorecido Mestre Janos, não só porque era alvo dos olhares desconfiados do honrado Mestre Janos, mas muito especialmente porque aprendiz de serralheiro de Viena não podia fazer pior coisa do que vir a Hungria, país onde este ofício é exercido a cada canto das vilas pelos ciganos wallachios. 

Mestre Janos não havia estudado Lavater, mas uma longa experiência levara-o a julgar, depois de um minucioso exame no rosto do homem, que estava ele ruminando algum plano contra-revolucionário. Como consequência disto, aproximou-se mais da cadeira, resolvido a quebrar aquele silêncio. 

- De onde vem o senhor, se me dá licença de perguntar? - indagou ele ao companheiro de mesa, com um olhar astuto. 

- Ah! de Viena - suspirou o outro, olhando o seu copo vazio. 

- E que notícias nos traz da cidade? 

- Hum... nada boas! 

- Nesse caso, quais as más notícias? 

- Receia-se muito que haja uma guerra. 

- Receia-se? Mas que audácia! Como se arriscam a temê-la? 

- Ah, meu senhor, eu também não a temo, desde que esteja a uma distância de trinta léguas; escutei numa adega, uma vez, bombardearem as ruas, e não achei isso nada agradável. 

Mestre Janos ficou mais desconfiado ainda. Resolveu fazê-lo com que bebesse um pouco mais. Seria provável que, assim, acabasse descobrindo algum tipo de conspiração perigosa. Quantos copos um serralheiro demandaria? À segunda caneca, a cabeça descaiu-lhe, e a língua movia-se com dificuldade. "Agora é a hora certa", pensou Mestre Janos, enchendo o copo de novo. 

- Viva a liberdade! - exclamou, esperando que o serralheiro lhe tocasse no copo, para completar a saudação. 

O austríaco não levou muito tempo para atender o convite, e repetiu o "Viva!", tanto quanto sua língua embriagada o permitiu. 

- Agora é a sua vez de levantar um brinde - disse o vice-carcereiro, olhando sua vítima com o canto do olho. 

- Bem, eu não estou acostumado a brindar, senhor: só a acompanhar o brinde dos outros... 

- Vamos lá, não seja egoísta e beba a saúde de quem considera o homem mais notável do mundo, ande. 

- Do mundo inteiro? - perguntou o serralheiro, pensando que o mundo era imenso e ele pouco conhecia dele. 

- Sim, do mundo inteiro, de todo o globo terrestre - continuou Mestre Janos, em tom de confidência. 

O serralheiro hesitou, esfregou o nariz e finalmente gritou: 

- Viva o Mestre Slimak! 

Com esta demonstração, o vice-carcereiro estremeceu. Com certeza este Mestre Slimak era algum chefe eleito, não havia dúvida! E sem aquela, agarrou o serralheiro pela gola do casaco e, conduziu-o até a casa da câmara, onde o arrastou para uma sala estreita e lúgubre, à presença de um sujeito gordo e de rosto rosado. 

- Este homem é um suspeito - exclamou ele. - Em primeiro lugar, teve o atrevimento de temer a guerra; em segundo, esteve sentado das sete às nove e meia, duas horas inteiras sem abrir a boca! E finalmente teve a petulância de brindar publicamente um tal Mestre Slimak, que muito provavelmente é um indivíduo tão suspeito como próprio. 

- Quem é Mestre Slimak? - perguntou, com ar severo, o homem gordo e corado. 

- Ninguém, senhor - respondeu o vienense, tremendo -, a não ser o meu primeiro patrão, um honrado serralheiro como eu a quem servi durante quatro anos e ainda estaria servindo se a mulher dele não tivesse me espancado. 

- Impossível! - replicou o sujeito gordo e corado. - Ninguém faz um brinde em público a um personagem como este! 

- Mas eu não conheço os costumes cá desta terra. 

- Se queria fazer um brinde, porque não brindou à liberdade constitucional, aos exércitos do Danúbio ou à liberdade de imprensa, ou algum brinde semelhante? 

- Mas, meu senhor. Em um mês aqui eu não poderia ter aprendido isso tudo. 

- Mas em três meses espero que possa aprendê-lo muito bem. Mestre Janos, prenda esse homem! O compassivo Mestre Janos agarrou o delinquente pela gola, e levou-o para o lugar reservado aos malfeitores dessa espécie, onde teria tempo para meditar sobre as razões que o tinham ali colocado. 

Os três meses passaram-se com muito vagar para o serralheiro. Eram meados de março. Mestre Janos colocou seu prisioneiro em liberdade. O honrado homem, para provar que tinha modificado seus sentimentos e assim enaltecer-se aos olhos de Mestre Janos, saudou-o com as seguintes palavras: 

- Viva a Liberdade e viva o Exército húngaro! 

Mestre Janos tremeu nas bases, encostou-se à parede, mudo e horrorizado e, ao retomar o equilíbrio, agarrou o serralheiro atônito que, quando deu por si, achava-se mais uma vez na sala estreita e lúgubre. Desta vez, porém, em lugar do homem gordo e corado, encontrava-se diante de um outro, escuro e magro, o qual, ao compreender a acusação contra o prisioneiro, sem permitir explicações, condenou-o a três meses de prisão, informando-se que dali em diante, se não pretendesse pior sorte, deveria de gritar: - Viva o Exército Imperial, viva a grande Constituição e a única e poderosa Áustria! 

E o serralheiro, tendo apenas dado três passos para fora de sua cela, voltou à prisão, refletindo sobre sua pouca sorte. 

Passaram-se mais três meses. Era junho. O compassivo Mestre Janos não deixou de libertar seu prisioneiro. O pobre homem começou logo, ainda na porta da cela, a pronunciar as palavras redentoras: 

- Viva o Príncipe Winischgrätz! Viva a gloriosa Áustria! 

Mestre Janos levou a mão à espada, como se quisesse defender-se daquele homem incorrigível. 

- Como é? Pois não lhe bastaram duas prisões? Ainda não aprendeu o que deve dizer? Tenha a bondade de vir até aqui. 

E pela terceira vez entrava na pequena sala. Em lugar do sujeito escuro e magro estava o outro, gordo e corado, em cuja presença a nossa vítima foi instado a responder pelo seu delito. 

- Traidor teimoso! - exclamou o homem. - Não compreende a gravidade de sua ofensa e que, sob a minha responsabilidade, em vez de tê-lo condenado a três meses de encarceramento eu o tivesse entregue a Justiça, você estaria a esta hora cortado em quatro pedaços, como bem o merecia? 

O pobre serralheiro teve de se consolar, em meio a seu terror, com a suavidade do seu castigo. 

- Mas o que é que eu deveria ter dito? - perguntou ao seu indulgente juiz, em tom de desespero. 

- Como? O que deveria ter dito? Viva a República! Viva a Democracia! Viva a Revolução! 

O pobre homem repetiu as três saudações e, prometendo fielmente atendê-los, resignou-se pacientemente a mais uma pequena jornada em sua escura toca. 

Durante os três seguintes meses, tudo mudara, menos a boa sorte do Mestre Janos. Nem o tempo nem o acaso tinham conseguido despojá-lo do seu lugar, como acontecera a tantos outros. Ele era ainda vice-carcereiro da nobre cidade de Peste, como sempre o fora. Era o mês de setembro. A pena do serralheiro terminara; Mestre Janos chamou por ele. O rosto do prisioneiro traduziu que havia alguma coisa de importante; e logo que o dito carcereiro se aproximou dele, segurando-lhe a mão, exclamou entre soluços: 

- Ó Mestre Janos, diga àquela pessoa que lhe beijo humildemente a mão e que desejo do mais fundo da minha alma as prosperidades da República. 

Como o lobo faminto cai sobre o cordeiro, Mestre Janos mais uma vez agarrou o serralheiro pela sua mal cuidada gola. De fato, o digno carcereiro estava tão ofendido que, tendo conduzido o prisioneiro à sala estreita, levou algum tempo até voltar a si, o suficiente para explicar os acontecimentos ao sujeito negro e magro que mais uma vez ocupava o lugar do outro, grande e corado; e grande foi seu desgosto quando aquele cavalheiro, em vez de condenar o delinquente a ser esmagado na roda, apenas lhe deu mais três meses de detenção. 

No dia três de novembro todas as pessoas detidas por pequenos delitos políticos foram postas em liberdade; o serralheiro, entre elas. Quando Mestre Janos abriu a porta, o infeliz serralheiro tapou a boca com o lenço, dando a entender ao carcereiro que dali em diante guardaria suas íntimas saudações apenas para si mesmo. Poderia ter-lhe servido de consolo o fato de se saber que não fora ele o único a gritar "Viva!" na hora errada.

Fonte:
Mör Jokai. Publicado originalmente em 1854, 
em Hungarian Sketches in Peace and War

terça-feira, 25 de julho de 2023

Varal de Trovas n. 585

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 88

Daquelas manhãs rabugentas de agosto - - umidade, frio e a costumeira neblina no vale do Iguaçu. O professor Werno, o "Wernão", entra na sala de aula com a caixinha de giz e livros de chamada embaixo do braço. Nas quartas-feiras são três aulas com ele - Português, Latim e OSPB. Após o "bom dia" a ordem, "abram-se as janelas para que saiam os ares infectos". 

Com aquele frio! 

Quase uma centena de alunos moravam no internato mais conhecido nas barrancas do Iguaçu e cidades lindeiras, de onde vinham para estudar. 

Tempos gloriosos quando a garotada vivia em ebulição, ativa, esperta, a receber conhecimentos. Internatos são educandários referência em termos de educação, respeito, lazer sadio. E lembrar os "quebras" (futebol) lá no bosco dos eucaliptos, o basquete na cancha, o pingue-pongue na sala de jogos. 

Dias e dias, meses e meses, o ano escolar. O internato esplende vida. Passado já das dez da noite alguns ouvem futebol no rádio quando, de repente, estoura uma guerra de travesseiros no dormitório dos menores. 

Tiroteio de travesseiros. Logo o frei Francisco (botafoguense doente) toma as atitudes. Arranca o cíngulo, cordão usado na barriga pelos franciscanos, e distribui laçaços nos mais bagunceiros. Logo o silêncio. A gurizada dorme o sono necessário. Aulas logo cedo. 

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