domingo, 3 de dezembro de 2023

Machado de Assis (Uma senhora)

Nunca encontro esta senhora que me não lembre a profecia de uma lagartixa ao poeta Heine, subindo os Apeninos: "Dia virá em que as pedras serão plantas, as plantas animais, os animais homens e os homens deuses." E dá-me vontade de dizer-lhe: — A senhora, D. Camila, amou tanto a mocidade e a beleza, que atrasou o seu relógio, a fim de ver se podia fixar esses dois minutos de cristal. Não se desconsole, D. Camila. No dia da lagartixa, a senhora será Hebe, deusa da juventude; a senhora nos dará a beber o néctar da perenidade com as suas mãos eternamente moças.

A primeira vez que a vi, tinha ela trinta e seis anos, posto só parecesse trinta e dois, e não passasse da casa dos vinte e nove. Casa é um modo de dizer. Não há castelo mais vasto do que a vivenda destes bons amigos, nem tratamento mais obsequioso do que o que eles sabem dar às suas hóspedes. Cada vez que D. Camila queria ir-se embora, eles pediam-lhe muito que ficasse, e ela ficava. Vinham então novos folguedos, cavalhadas, música, dança, uma sucessão de coisas belas, inventadas com o único fim de impedir que esta senhora seguisse o seu caminho.

— Mamãe, mamãe, dizia-lhe a filha crescendo, vamos embora, não podemos ficar aqui toda a vida.

D. Camila olhava para ela mortificada, depois sorria, dava-lhe um beijo e mandava-a brincar com as outras crianças. Que outras crianças? Ernestina estava então entre quatorze e quinze anos, era muito espigada, muito quieta, com uns modos naturais de senhora. Provavelmente não se divertiria com as meninas de oito e nove anos; não importa, uma vez que deixasse a mãe tranquila, podia alegrar-se ou enfadar-se. Mas, ai triste! há um limite para tudo, mesmo para os vinte e nove anos.

D. Camila resolveu, enfim, despedir-se desses dignos anfitriões, e fê-lo ralada de saudades. Eles ainda instaram por uns cinco ou seis meses de quebra; a bela dama respondeu-lhes que era impossível e, trepando no alazão do tempo, foi alojar-se na casa dos trinta.

Ela era, porém, daquela casta de mulheres que riem do sol e dos almanaques. Cor de leite, fresca, inalterável, deixava às outras o trabalho de envelhecer. Só queria o de existir. Cabelo negro, olhos castanhos e cálidos. Tinha as espáduas e o colo feitos de encomenda para os vestidos decotados, e assim também os braços, que eu não digo que eram os da Vênus de Milo, para evitar uma vulgaridade, mas provavelmente não eram outros. D. Camila sabia disto; sabia que era bonita, não só porque lho dizia o olhar sorrateiro das outras damas, como por um certo instinto que a beleza possui, como o talento e o gênio. Resta dizer que era casada, que o marido era ruivo, e que os dois amavam-se como noivos; finalmente, que era honesta. Não o era, note-se bem, por temperamento, mas por princípio, por amor ao marido, e creio que um pouco por orgulho.

Nenhum defeito, pois, exceto o de retardar os anos; mas é isso um defeito? Há, não me lembra em que página da Escritura, naturalmente nos Profetas, uma comparação dos dias com as águas de um rio que não voltam mais. D. Camila queria fazer uma represa para seu uso. No tumulto desta marcha contínua entre o nascimento e a morte, ela apegava-se à ilusão da estabilidade. Só se lhe podia exigir que não fosse ridícula, e não o era. Dir-me-á o leitor que a beleza vive de si mesma, e que a preocupação do calendário mostra que esta senhora vivia principalmente com os olhos na opinião. É verdade; mas como quer que vivam as mulheres do nosso tempo?

D. Camila entrou na casa dos trinta e não lhe custou passar adiante. 

Evidentemente o terror era uma superstição. Duas ou três amigas íntimas, nutridas de aritmética, continuavam a dizer que ela perdera a conta dos anos. Não advertiam que a natureza era cúmplice no erro, e que aos quarenta anos (verdadeiros), D. Camila trazia um ar de trinta e poucos. Restava um recurso: espiar-lhe o primeiro cabelo branco, um fiozinho de nada, mas branco. Em vão espiavam; o demônio do cabelo parecia cada vez mais negro.

Nisto enganavam-se. O fio branco estava ali; era a filha de D. Camila que entrava nos dezenove anos, e, por mal de pecados, bonita. D. Camila prolongou, quanto pôde, os vestidos adolescentes da filha, conservou-a no colégio até tarde, fez tudo para proclamá-la criança. A natureza, porém, que não é só imoral, mas também ilógica, enquanto sofreava os anos de uma, afrouxava a rédea aos da outra, e Ernestina, moça feita, entrou radiante no primeiro baile. Foi uma revelação. D. Camila adorava a filha; saboreou-lhe a glória a tragos demorados. No fundo do copo achou a gota amarga e fez uma careta. Chegou a pensar na abdicação; mas um grande pródigo de frases feitas disse-lhe que ela parecia a irmã mais velha da filha, e o projeto desfez-se. Foi dessa noite em diante que D. Camila entrou a dizer a todos que casara muito criança.

Um dia, poucos meses depois, apontou no horizonte o primeiro namorado. D. Camila pensara vagamente nessa calamidade, sem encará-la, sem aparelhar-se para a defesa. Quando menos esperava, achou um pretendente à porta. 

Interrogou a filha; descobriu-lhe um alvoroço indefinível, a inclinação dos vinte anos, e ficou prostrada. Casá-la era o menos; mas, se os seres são como as águas da Escritura, que não voltam mais, é porque atrás deles vêm outros, como atrás das águas outras águas; e, para definir essas ondas sucessivas é que os homens inventaram este nome de netos. D. Camila viu iminente o primeiro neto, e determinou adiá-lo. Está claro que não formulou a resolução, como não formulara a ideia do perigo. A alma entende-se a si mesma; uma sensação vale um raciocínio. As que ela teve foram rápidas, obscuras, no mais íntimo do seu ser, donde não as extraiu para não ser obrigada a encará-las.

— Mas que é que você acha de mau no Ribeiro? perguntou-lhe o marido, uma noite, à janela.

D. Camila levantou os ombros.

— Acho-lhe o nariz torto, disse.

— Mau! Você está nervosa; falemos de outra coisa, respondeu o marido. E, depois de olhar uns dois minutos para a rua, cantarolando na garganta, tornou ao Ribeiro, que achava um genro aceitável, e se lhe pedisse Ernestina, entendia que deviam ceder-lhe. Era inteligente e educado. Era também o herdeiro provável de uma tia de Cantagalo. E depois tinha um coração de ouro. Contavam-se dele coisas muito bonitas. Na academia, por exemplo... D. Camila ouviu o resto, batendo com a ponta do pé no chão e rufando com os dedos a sonata da impaciência; mas, quando o marido lhe disse que o Ribeiro esperava um despacho do ministro de estrangeiros, um lugar para os Estados Unidos, não pôde ter-se e cortou-lhe a palavra:

— O quê? separar-me de minha filha? Não, senhor.

Em que dose entrara neste grito o amor materno e o sentimento pessoal, é um problema difícil de resolver, principalmente agora, longe dos acontecimentos e das pessoas. Suponhamos que em partes iguais. A verdade é que o marido não soube que inventar para defender o ministro de estrangeiros, as necessidades diplomáticas, a fatalidade do matrimônio, e, não achando que inventar, foi dormir.

Dois dias depois veio a nomeação. No terceiro dia, a moça declarou ao namorado que não a pedisse ao pai, porque não queria separar-se da família. Era o mesmo que dizer: prefiro a família ao senhor. É verdade que tinha a voz trêmula e sumida, e um ar de profunda consternação; mas o Ribeiro viu tão-somente a rejeição, e embarcou. Assim acabou a primeira aventura.

D. Camila padeceu com o desgosto da filha; mas consolou-se depressa. Não faltam noivos, refletiu ela. Para consolar a filha, levou-a a passear a toda parte. Eram ambas bonitas, e Ernestina tinha a frescura dos anos; mas a beleza da mãe era mais perfeita, e apesar dos anos, superava a da filha. Não vamos ao ponto de crer que o sentimento da superioridade é que animava D. Camila a prolongar e repetir os passeios. Não: o amor materno, só por si, explica tudo. Mas concedamos que animasse um pouco. Que mal há nisso? Que mal há em que um bravo coronel defenda nobremente a pátria, e as suas dragonas? Nem por isso acaba o amor da pátria e o amor das mães.

Meses depois despontou a orelha de um segundo namorado. Desta vez era um viúvo, advogado, vinte e sete anos. Ernestina não sentiu por ele a mesma emoção que o outro lhe dera; limitou-se a aceitá-lo. D. Camila farejou depressa a nova candidatura. Não podia alegar nada contra ele; tinha o nariz reto como a consciência, e profunda aversão à vida diplomática. Mas haveria outros defeitos, devia haver outros. D. Camila buscou-os com alma; indagou de suas relações, hábitos, passado. Conseguiu achar umas coisinhas miúdas, tão somente a unha da imperfeição humana, alternativas de humor, ausência de graças intelectuais, e finalmente, um grande excesso de amor-próprio. Foi neste ponto que a bela dama o apanhou. Começou a levantar vagarosamente a muralha do silêncio; lançou primeiro a camada das pausas, mais ou menos longas, depois as frases curtas, depois os monossílabos, as distrações, as absorções, os olhares complacentes, os ouvidos resignados, os bocejos fingidos por trás da ventarola. Ele não entendeu logo; mas, quando reparou que os enfados da mãe coincidiam com as ausências da filha, achou que era ali demais e retirou-se. Se fosse homem de luta, tinha saltado a muralha; mas era orgulhoso e fraco. D. Camila deu graças aos deuses.

Houve um trimestre de respiro. Depois apareceram alguns namoricos de uma noite, insetos efêmeros, que não deixaram história. D. Camila compreendeu que eles tinham de multiplicar-se, até vir algum decisivo que a obrigasse a ceder; mas ao menos, dizia ela a si mesma, queria um genro que trouxesse à filha a mesma felicidade que o marido lhe deu. E, uma vez, ou para robustecer este decreto da vontade, ou por outro motivo, repetiu o conceito em voz alta, embora só ela pudesse ouvi-lo. Tu, psicólogo sutil, podes imaginar que ela queria convencer-se a si mesma; eu prefiro contar o que lhe aconteceu em 186...

Era de manhã. D. Camila estava ao espelho, a janela aberta, a chácara verde e sonora de cigarras e passarinhos. Ela sentia em si a harmonia que a ligava às coisas externas. Só a beleza intelectual é independente e superior. A beleza física é irmã da paisagem. D. Camila saboreava essa fraternidade íntima, secreta, um sentimento de identidade, uma recordação da vida anterior no mesmo útero divino. Nenhuma lembrança desagradável, nenhuma ocorrência vinha turvar essa expansão misteriosa. Ao contrário, tudo parecia embebê-la de eternidade, e os quarenta e dois anos em que ia não lhe pesavam mais do que outras tantas folhas de rosa. Olhava para fora, olhava para o espelho. De repente, como se lhe surdisse uma cobra, recuou aterrada. Tinha visto, sobre a fonte esquerda, um cabelinho branco. Ainda cuidou que fosse do marido; mas reconheceu depressa que não, que era dela mesma, um telegrama da velhice, que aí vinha a marchas forçadas. O primeiro sentimento foi de prostração.

D. Camila sentiu faltar-lhe tudo, tudo, viu-se encanecida e acabada no fim de uma semana.

— Mamãe, mamãe, bradou Ernestina entrando na saleta. Está aqui o camarote que papai mandou.

D. Camila teve um sobressalto de pudor, e instintivamente voltou para a filha o lado que não tinha o fio branco. Nunca a achou tão graciosa e lépida. Fitou-a com saudade. Fitou-a também com inveja, e, para abafar este sentimento mau, pegou no bilhete do camarote. Era para aquela mesma noite. Uma idéia expele outra; D. Camila anteviu-se no meio das luzes e das gentes, e depressa levantou o coração. 

Ficando só, tornou a olhar para o espelho, e corajosamente arrancou o cabelinho branco, e deitou-o à chácara. Out, damned spot! Out! (Fora, maldito lugar. Fora!) Mais feliz do que a outra lady Macbeth, viu assim desaparecer a nódoa no ar, porque no ânimo dela, a velhice era um remorso, e a fealdade um crime. Sai, maldita mancha! sai! Mas, se os remorsos voltam, por que não hão de voltar os cabelos brancos? 

Um mês depois, D. Camila descobriu outro, insinuado na bela e farta madeixa negra, e amputou-o sem piedade. Cinco ou seis semanas depois, outro. Este terceiro coincidiu com um terceiro candidato à mão da filha, e ambos acharam D. Camila numa hora de prostração. A beleza, que lhe suprira a mocidade, parecia-lhe prestes a ir também, como uma pomba sai em busca da outra. Os dias precipitavam-se. Crianças que ela vira ao colo, ou de carrinho puxado pelas amas, dançavam agora nos bailes. Os que eram homens fumavam; as mulheres cantavam ao piano. Algumas destas apresentavam-lhe os seus bebês, gorduchos, uma segunda geração que mamava, à espera de ir bailar também, cantar ou fumar, apresentar outros bebês a outras pessoas, e assim por diante.

D. Camila apenas tergiversou um pouco, acabou cedendo. Que remédio, senão aceitar um genro? Mas, como um velho costume não se perde de um dia para outro, D. Camila viu paralelamente, naquela festa do coração, um cenário e grande cenário. Preparou-se galhardamente, e o efeito correspondeu ao esforço.

Na igreja, no meio de outras damas; na sala, sentada no sofá (o estofo que forrava este móvel, assim como o papel da parede foram sempre escuros para fazer sobressair a tez de D. Camila), vestida a capricho, sem o requinte da extrema juventude, mas também sem a rigidez matronal, um meio-termo apenas, destinado a pôr em relevo as suas graças outoniças, risonha, e feliz, enfim, a recente sogra colheu os melhores sufrágios. Era certo que ainda lhe pendia dos ombros um retalho de púrpura.

Púrpura supõe dinastia. Dinastia exige netos. Restava que o Senhor abençoasse a união, e ele abençoou-a, no ano seguinte. D. Camila acostumara-se à ideia; mas era tão penoso abdicar, que ela aguardava o neto com amor e repugnância. Esse importuno embrião, curioso da vida e pretensioso, era necessário na terra?

Evidentemente, não; mas apareceu um dia, com as flores de setembro. Durante a crise, D. Camila só teve de pensar na filha; depois da crise, pensou na filha e no neto. Só dias depois é que pôde pensar em si mesma. Enfim, avó. Não havia duvidar; era avó. Nem as feições que eram ainda concertadas, nem os cabelos, que eram pretos (salvo meia dúzia de fios escondidos), podiam por si sós denunciar a realidade; mas a realidade existia; ela era, enfim, avó.

Quis recolher-se; e para ter o neto mais perto de si, chamou a filha para casa. Mas a casa não era um mosteiro, e as ruas e os jornais com os seus mil rumores acordavam nela os ecos de outro tempo. D. Camila rasgou o ato de abdicação e tornou ao tumulto.

Um dia, encontrei-a ao lado de uma preta, que levava ao colo uma criança de cinco a seis meses. D. Camila segurava na mão o chapelinho de sol aberto para cobrir a criança. Encontrei-a oito dias depois, com a mesma criança, a mesma preta e o mesmo chapéu de sol. Vinte dias depois, e trinta dias mais tarde, tornei a vê-la, entrando para o bonde, com a preta e a criança. 

— Você já deu de mamar? dizia ela à preta. Olhe o sol. Não vá cair. Não aperte muito o menino. Acordou? Não mexa com ele. Cubra a carinha, etc., etc.

Era o neto. Ela, porém ia tão apertadinha, tão cuidadosa da criança, tão a miúdo, tão sem outra senhora, que antes parecia mãe do que avó; e muita gente pensava que era mãe. Que tal fosse a intenção de D. Camila não o juro eu ("Não jurarás", MAT. V, 34). Tão-somente digo que nenhuma outra mãe seria mais desvelada do que D. Camila com o neto; atribuírem-lhe um simples filho era a coisa mais verossímil do mundo.

Fonte: Machado de Assis. Histórias sem data. Publicado originalmente em 1884. Disponível em Domínio Público 

sábado, 2 de dezembro de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 26

 

Mensagem na Garrafa – 45 –

Tati Bernardi
São Paulo/SP

O TEMPO PASSOU

O tempo passou, continuei acordando, indo dormir todos os dias querendo ser mais feliz para ele, mais bonita para ele, mais mulher para ele.

Até que algo aconteceu. Um dia, acordei tão bonita, tão feliz, tão realizada, tão mulher que eu acabei me tornando mulher demais para ele.

Eu não preciso de você nem pra andar e nem pra ser feliz, mas como seria bom andar e ser feliz ao seu lado.

E eu, finalmente, deixei de ter pena de mim por estar sem você e passei a ter pena de você por estar sem mim.

Coitado.

Renato Frata (Nanocontos) – 4 -

Desprezo

A rede velha na varanda balançou vazia à espera dele, mas o haviam enterrado em outra, novinha.
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Inconsciente

Tempo e espaço brigaram confusos por meus sonhos desencontrados querendo-os para si. Então acordei.
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Na roça

À noite, enquanto ele estudava, a fumaça da lamparina fazia os exercícios na lousa.
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Tem dó, patrão!

No saldo do holerite, os números são facas de cortar pulsos. Mensalmente só o salário mínimo.
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Vício

Com copo na mão e garrafa noutra por ferramentas, desmontou a máquina do amor.
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Patife

Não conseguindo vencer a marreta, o martelo, covarde, descontou no prego.
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Destino

O choro dele, bem pobre, não era dor, mas mágoa: a miséria dói.
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Dor

Saudade é pimenta ardida que não se consegue ver, mesmo de olhos fechados.
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Tragédia

Pagou muito caro por uma discussão barata. Esmagou-a no canto.
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Insônia

Na madrugada, acho que meu sono se escondeu nas dobras do lençol. No dia grudou em minhas pálpebras.
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Vida

Lágrima e lesma deixaram rastros brilhantes. Um de sentimento, outro de determinação.
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Professores

Falam bastante, ensinam, guiam, mostram o caminho, mas nunca são ouvidos.
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Vento

Em um namoro de ondas, a maior murmurava azul enquanto a menor se contorcia em seus braços,
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Gerúndio

Céu limpando, sol brilhando, você dormindo, eu sonhando... e contas vencendo chegando.,.
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Superstição

Na vida, a alma nunca pisa duas vezes o mesmo lugar. É que segue de pés levantados.
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Fonte: Renato Benvindo Frata. 308 Nanocontos. Paranavaí/PR: Autografia, 2017. 
Enviado pelo autor. 

Maria Thereza Cavalheiro (Trovas para refletir) – 7 –


Um homem - simples mortal -
nem sempre é forte; porém,
tem fibra se foge ao mal,
quando é o mal que lhe faz bem...
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É uma comédia esta vida,
de que nós somos atores...
Ora é uma vaia comprida,
ora, aplausos e louvores!
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Às vezes, por caridade,
para evitar um tormento,
escondemos a verdade
na concha do pensamento.
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Há quem pense que é o dinheiro
do poder grande aliado:
quem o guarda no celeiro
é apenas um seu criado.
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Quando ocupamos as raias,
uma certeza é sabida:
por entre vivas e vaias,
atravessamos a vida!
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Não se esqueça quem na vida
é intrigante e lesa o alheio:
a maldade, na invertida,
volta para de onde veio!
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Sê superior e perdoa...
Evita qualquer revide...
É pobre quem nos magoa,
infeliz quem nos agride!
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A escola é continuação
do que aprendemos no lar;
porém a maior lição
só o mundo nos pode dar.
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Vendo a cadeira vazia,
cresce a lembrança do ausente,
e a saudade, que angustia,
chora no peito da gente!
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A vida é tênue fumaça.
é uma linha de retrós...
Dizem que é o tempo que passa,
mas quem passa somos nós!
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Quem não aceita a demora,
por um nada se angustia,
vai findar antes da hora,
deitado na lousa fria.
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Diziam que ele era um forte,
mas, forte, assim mesmo, foi-se;
pois forte, somente a morte,
que leva, na mão, a foice.
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Quem fica por derradeiro
vai sempre dizer adeus
aos entes que vão primeiro
para os domínios de Deus.
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A nossa vida é fugaz...
É bom partir sem revolta...
Quem vem ao mundo já traz
uma passagem de volta!
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Viver... morrer... Porque havemos
sempre mais de ambicionar,
se da terra em que vivemos
só terra vamos levar?
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Ainda que um pulso forte
nos ampare no caminho,
quando é o momento da morte
cada qual se vê sozinho!
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Esta vida é água de rio,
pois jamais volta à nascente,
Cada hora é um desafio,
que adestra o valor da gente!
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O sol nasce e morre. A vida
tem os seus raios fatais...
Cada hora é nau perdida,
que ao porto não volta mais!
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A vida um teatro esconde,
cada qual vive a seu jeito;
mas chega um dia e responde
por tudo o que tiver feito.
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No palco, há lágrima e riso;
um drama entre o Mal e o Bem.
Até que a Mão, sem aviso,
desce o pano que retém.

Fonte: CAVALHEIRO, Maria Thereza. Trovas para refletir. SP: Edição do Autor, 2009. 
Enviado pela Trovadora.

Hans Christian Andersen (As flores da pequena Ida)

“Minhas pobres florzinhas estão todas mortas!” disse a pequena Ida. “Elas estavam tão lindas ontem à noite, e agora todas as folhas murcharam. Porque será que isto aconteceu?” perguntou ao colega de escola, que estava sentado com ela no sofá; e de quem ela gostava muito. Ele conhecia as histórias mais lindas, e gostava de recortar as figuras mais engraçadas — corações, com mulheres dançando dentro deles, flores, e enormes castelos onde as portas podiam ser abertas: ele era um aluno feliz. “Mas porque será que as flores estão tão murchas hoje?” ela perguntou novamente, mostrando-lhe um buquê inteiro, que estava todo murcho.

“Você sabe porque isso acontece com elas?” disse o estudante. “É que as flores foram a um baile ontem à noite, e é por isso que elas estão cansadas e pendendo a cabeça.”

“Mas as flores não sabem dançar!” exclamou a pequena Ida.

“Oh, sabem sim,” disse o estudante, “quando anoitece, e nós estamos dormindo, elas dão pulo de felicidade. Quase todas as noites elas vão ao baile.”

“E as crianças também podem ir a esse baile?”

“Sim,” disse o estudante, “as pequenas margaridas, e os lírios do vale.”

“Onde as flores mais lindas ficam dançando?” perguntou a pequena Ida.

“Ora, você não sai sempre dos portões da cidade, perto do grande castelo, onde o rei vem passar o verão, é aí que fica o lindo jardim, com todas as flores? Você já deve ter visto os cisnes, que nadam ao teu encontro quando você oferece a eles migalhas de pão? Há bailes muito importantes lá, pode acreditar em mim.”

“Ontem eu saí até jardim com minha mãe,” disse Ida; “mas todas as folhas haviam caído das árvores, e não havia nenhuma folha nos galhos. Onde estão elas? No verão havia tantas.”

“Elas estão lá dentro do castelo,” respondeu o estudante. “Você devia saber, que assim que o rei e toda a sua corte vão para a cidade, as flores vão correndo do jardim para o castelo, e elas ficam felizes. Você precisava ver isso. As duas rosas mais lindas ficavam sentadas no trono, e então, fazendo de conta que eram o rei e a rainha; todos os galos com cristas vermelhas são colocados um de cada lado, ficam de pé e fazem reverência; eles são os camareiros. E depois, todas as flores belas se aproximam, e começa o grande baile. As violetas azuis representam os pequenos cadetes navais: elas dançam com os jacintos e os açafrões, a quem chamam de jovens donzelas; as tulipas e os grandes lírios de tigre são senhoras dedicadas que ficam olhando se tudo está indo bem na dança, e que tudo ocorra como planejado.”

“Mas,” perguntou a pequena Ida, “ninguém faz nada às flores, por dançarem no castelo do rei?”

“Na verdade, ninguém sabe que isto acontece,” respondeu o estudante. “Algumas vezes, com certeza, o velho administrador do castelo vem algumas noites, para dar uma olhada. Ele costuma trazer um grande molho de chaves; mas assim que as flores ouvem o barulho das chaves, elas ficam bem quietinhas, se escondem atrás de longas cortinas, ficando somente com as cabeças de fora. Então, o velho administrador diz, "Estou sentindo o cheiro de flores aqui," mas ele não consegue vê-las.

“Que legal!” exclamou a pequena Ida, batendo palminhas. Mas será que eu consigo ver as flores?”

“Claro que sim,” disse o estudante; “lembre-se apenas de espiar pela janela, quando você for sair novamente; então, você as verá. Foi o que eu fiz hoje. E lá estava um longo lírio amarelo deitado no sofá se espreguiçando. Ele se imaginava um cavalheiro da corte.”

“Será que as flores do Jardim Botânico também podem sair para ir lá? Elas conseguem percorrer longas distâncias?”

“É claro que podem,” respondeu o estudante; “se quiserem, elas podem até voar. Você já viu as lindas borboletas, vermelhas, amarelas, e brancas? Elas se parecem muito com as flores; e é isso o que elas já foram. Elas voaram de seus caules para o céu lá no alto, batendo no ar com suas folhinhas, como se as folhinhas fossem pequenas asas, e assim voaram. E como elas se comportaram direitinho, elas tiveram permissão para voar durante o dia também, e não tinham que voltar para casa novamente para ficarem sentadinhas em seus caules; e assim finalmente as asas se tornaram asas de verdade. Foi isso que você viu.

No entanto, pode ser que as flores do Jardim Botânico jamais estiveram no castelo do rei, ou jamais ficaram sabendo dos alegres festejos que acontecem por lá a noite. Por isso vou lhe dizer uma coisa: o professor de botânica, que mora perto daqui, ficará muito surpreso. Você já viu ele, não viu? Quando você for ao jardim da casa dele, você deve dizer à uma das flores, que no castelo, todas as noites, há um grande baile. Então, esta flor irá contar para todas as outras, e todas elas irão voar: se o professor então, sair para o jardim, nenhuma flor estará ali, e ele nem conseguirá imaginar para onde elas foram.”

“Mas como uma flor pode contar para a outra? Pois, sabemos que as flores não podem falar.”

“Isso é verdade, elas não podem,” respondeu o estudante; “mas elas conseguem fazer sinais. Você já percebeu que quando o vento sopra levemente, as flores ficam balançando umas para as outras, e mexem suas folhas verdes? Elas entendem esses sinais tão bem como se estivessem conversando.”

“Será que o professor consegue entender esses sinais?” perguntou Ida.

“Sim, com certeza. Um dia de manhã ele veio até o jardim, e viu que havia ali um grande pé de urtiga, que estava fazendo sinais com suas folhas para um lindo cravo vermelho. Ele estava dizendo, "Você é tão linda, e eu te amo muito." Mas o professor não gostava muito dessas coisas, e ele bateu diretamente nas folhas da urtiga, porque as folhas são as mãos das plantas; e ele sentiu que foi picado, e desde então, nunca mais ousou tocar na folha de uma urtiga.”

“Isso foi engraçado,” exclamou a pequena Ida; e ria muito.

“Como é que alguém pode colocar essas coisas na cabeça de uma criança?” disse o chato do conselheiro secreto, que tinha vindo para fazer uma visita, e estava sentado no sofá. Ele não gostava do estudante, e resmungava sempre quando o via recortando as figuras cômicas e engraçadas — que algumas vezes era um homem pendurado numa forca e segurando um coração na mão, para mostrar que ele era um ladrão de corações; outras vezes uma velha bruxa voando numa vassoura, levando o marido no nariz. O conselheiro não conseguia aguentar isso, e então, ele disse, como fez agora, “Como é que alguém pode colocar essas coisas na cabeça de uma criança? São fantasias estúpidas!”

Mas, para a pequena Ida, o que o estudante havia falado sobre as flores parecia muito divertido; e ela ficou pensando muito sobre isso. As flores estavam com as cabeças penduradas, pois elas estavam cansadas, porque elas tinham dançado a noite toda; podiam até estarem doentes. Então, ela as levou até onde estavam todos os seus brinquedos, em cima de uma bonita mesinha, e a gaveta estava toda cheia de coisas lindas. Na cama das bonecas estava a sua boneca Sofia, dormindo; mas, a pequena Ida disse para ela:

“Agora você precisa acordar, Sofia, e tentar dormir na gaveta esta noite. As pobres florzinhas estão doentes, e elas precisam deitar em sua cama; talvez, então, elas fiquem boas novamente.”

E ela, imediatamente, tirou a boneca; mas a boneca parecia estar zangada, e não disse nem uma palavra; ela estava brava, porque não podia deitar na própria cama.

Então, Ida colocou as flores na cama da boneca, cobriu-as com o pequeno cobertor, e disse que elas podiam dormir descansadas para ficarem boas, depois ela iria preparar um pouco de chá, para que elas pudessem sarar, e poderem se levantar no dia seguinte. E ela puxou bem as cortinas em volta da caminha, para que o sol não incomodasse os olhinhos delas. E durante toda a noite ela não conseguia deixar de pensar no que o estudante havia lhe falado. E quando ela mesma estava indo dormir, fez questão de olhar por traz das cortinas penduradas nas janelas onde ficavam as lindas flores da sua mãe — alguns jacintos bem como algumas tulipas; então, ela sussurrou bem baixinho, “Eu sei que vocês vão ao baile hoje a noite!” Mas as flores faziam de conta que não haviam entendido nenhuma palavra, e não moviam sequer uma folha, ainda assim, a pequena Ida sabia que elas haviam entendido.

Quando ela foi para cama, ela ficou durante muito tempo pensando como seria lindo ver as flores felizes dançando no castelo do rei. “Gostaria de saber se as minhas florzinhas já estiveram lá?” E então, adormeceu. Durante a noite ela acordou: ela tinha sonhado com as flores, e com o estudante que o conselheiro havia repreendido. Estava muito tranquilo no quarto em que Ida dormia; a lamparina brilhava em cima da mesa, e a mãe e o pai dela também estavam dormindo.

“Preciso saber se as minhas flores estão ainda deitadas na cama da Sofia?” pensava consigo mesma. “Ah, como eu gostaria de saber!” Então, ela se levantou, e olhou pela porta que ficou entreaberta; e lá estavam as flores e todos os seus brinquedos. Ela ficou escutando, e então, lhe pareceu ter ouvido alguém tocando o piano no quarto ao lado, suave e divinamente, como ela nunca tinha ouvido antes.

“Agora, com certeza, todas as flores estarão dançando lá dentro!” pensou ela. “Oh, como eu gostaria de ver isso!” Mas ela não ousou sair do lugar, pois ela poderia incomodar o seu pai e a sua mãe.

“Ah, se as flores pudessem vir até aqui!” pensou ela. Mas elas não vinham, e a música continuava a tocar maravilhosamente; então, ela não aguentou mais, porque a música era linda demais; e saiu bem devagarzinho da cama, e tranquilamente caminhou até a porta, e deu uma olhada dentro do quarto. Oh, o que ela viu, era tudo tão esplêndido!

A lamparina não estava iluminando, mas tudo estava tão claro: a lua brilhava pela janela e refletia no meio do ambiente; parecia que era dia. Todos os jacintos e tulipas desfilavam em duas longas filas no chão; não havia nenhuma delas na janela. Todos os vasos de flores estavam vazios. No chão, todas as flores dançavam graciosamente umas ao redor das outras, criando uma corrente perfeita, e abraçavam-se umas às outras com as longas folhas verdes fazendo uma roda. Mas no piano tocava um grande lírio amarelo, que a pequena Ida certamente o tinha visto no verão passado, pois ela se lembrava do que o estudante havia lhe falado, “Como ela se parece com a Senhorita Lina.”

Então, todos riram dele; mas agora, para a pequena Ida, parecia mesmo, como se a longa flor amarela fosse, sem dúvida, a jovem dama; com os seus mesmos modos de tocar — algumas vezes inclinando sua longa face amarela para um lado, outras vezes para o outro lado, e balançando a cabeça no ritmo da encantadora música! Ninguém notou a pequena Ida. Então, ela viu um grande açafrão azul pular em cima da mesa, onde estavam os brinquedos, e ir até a cama das bonecas e puxar as cortinas de lado; ali estavam as flores doentes, mas elas se levantaram imediatamente, e balançavam-se umas para as outras, como a dizer que desejavam dançar também. O velho boneco limpador de chaminés, cujo lábio inferior se partira, ficou de pé e fazia reverência para as flores sorridentes: e elas não pareciam estar doentes agora; ela davam pulos no meio das outras, e estavam muito felizes.

Então, pareceu que alguma coisa caiu da mesa. Ida olhou nessa direção. Era a atrevida vara de bétula que havia pulado! Ela parecia acreditar que também fosse uma flor. De qualquer forma, tudo era muito lindo; um pequeno boneco de cera, com um chapéu tão grande na cabeça igual ao que o conselheiro usava, sentou em cima dela. A vara de bétula pulava entre as flores com suas três pernas, e ela batia o pé bem alto, porque estava dançando a mazurca; e as outras flores não conseguiam dançar essa música, porque elas eram leves demais, e não conseguiam bater o pé com força daquele jeito.

O boneco de cera sobre a vara de bétula de repente ficou grande e longo, deu uma volta sobre as flores de papel, e disse, “Como é que alguém pode colocar essas coisas na cabeça de uma criança? São fantasias estúpidas!” ora, o boneco de cera era exatamente o conselheiro com o seu longo chapéu, e era mesmo amarelo e mal humorado como ele. Mas as flores de papel batiam-lhe nas pernas finas, obrigando-o a se encolher, e tornar-se novamente um pequenino boneco de cera. Isso era muito engraçado de ver; e a pequena Ida não conseguia parar de rir. A vara de bétula continuou dançando, e o conselheiro foi obrigado a dançar também; não importava se ele quisesse ficar grande e longo, ou permanecer o pequeno boneco de cera amarelo com o grande chapéu preto. Então, as outras flores decidiram ajudá-lo, principalmente aquelas que haviam se deitado na cama da boneca, e então, a vara de bétula parou de dançar. No mesmo instante, ouviu-se uma batida forte dentro da gaveta, onde Sofia, a boneca de Ida, estava com muitos outros brinquedos. O limpador de chaminés correu até a ponta da mesa, deitou de bruços, e começou a puxar a gaveta. Sofia então, se levantou, e olhava ao redor admirando tudo aquilo.

“Está havendo um baile aqui,” disse ela; “porque ninguém me avisou?”

“Você quer dançar comigo?” perguntou o limpador de chaminés.

“Até parece que você é o tipo ideal para dançar!” ela respondeu, e virou as costas para ele.

Então, ela sentou na gaveta, e achou que uma das flores viria convidá-la para dançar; mas nenhuma apareceu. Então, ela tossiu, “Hum! hum! hum!” mesmo assim ninguém veio. O limpador de chaminés dançou sozinho, e isso não era tão mau.

Como nenhuma das flores parecia notar Sofia, ela então, pulou da gaveta e foi direto para o chão, fazendo um grande barulho. As flores então, vieram todas correndo, e perguntaram se ela tinha se machucado; e foram todas muito educadas com ela, principalmente as flores que haviam se deitado em sua cama. Mas ela não havia se machucado; e todas as flores de Ida lhe agradeceram pela cama deliciosa, e foram muito gentis com ela, e a levaram até o meio do salão, onde a lua brilhava, e dançaram com ela; e todas as outras flores fizeram um círculo em torno dela. Ora, Sofia estava feliz, e disse que elas podiam ficar na sua cama; ela não se importava nem um pouquinho de dormir dentro da gaveta.

Mas as flores disseram, “Nós te agradecemos de todo o coração, mas nós não vivemos por muito tempo. Amanhã já estaremos totalmente mortas. Mas diga à pequena Ida para que ela nos enterre fora do jardim, onde fica o canário; então, nós despertaremos de novo no verão, e seremos muito mais lindas.”

“Não, vocês não podem morrer,” disse Sofia beijando as flores.

Nesse instante a porta se abriu, e um montão de flores maravilhosas entraram dançando. Ida não conseguia imaginar de onde elas tinham vindo; certamente todas elas eram flores que tinham vindo do castelo do rei. Na frente de todas vinham duas rosas gloriosas, usando coroas douradas na cabeça; eram o rei e a rainha. Depois vieram os mais lindos goivos e cravos; e eles faziam reverências em todas as direções. Todos estavam dançando. Grandes papoulas e peônias vinham soprando vagens de ervilha até ficarem com a cara vermelha. Os jacintos azuis e as pequeninas campânulas-brancas vibravam como vibram os sinos. A música era maravilhosa! Depois iam chegando muitas outras flores, e todas dançando juntas; as violetas azuis e as róseas primaveras, as margaridas e os lírios do vale. E todas as flores se beijavam. Era lindo de se ver!

Até que as flores desejaram boa noite umas para as outras; então, a pequena Ida, também foi para a cama, onde ela sonhou com tudo que tinha visto.

Quando ela acordou na manhã seguinte, ela correu rapidamente até a pequena mesa, para ver se as flores ainda estavam lá. Ela puxou de lado as cortinas da pequena caminha; e lá estavam todas elas, mas elas estavam muito murchas, mais do que no dia anterior. Sofia estava deitada na gaveta onde Ida a havia colocado; ela parecia dormir profundamente.

“Você se lembra do que você queria dizer para mim!” perguntou a pequena Ida.

Mas Sofia estava embevecida, e não disse uma única palavra.

“Você não foi boazinha!” disse Ida. “E no entanto todos dançaram com você.”

Então, ela pegou uma pequena caixa de papel, onde lindos pássaros estavam pintados, e a abriu, e colocou as flores mortas dentro dela.

“Este será o lindo ataúde de vocês,” disse ela, “e quando os meus primos da Noruega vierem me visitar de vez em quando, eles me ajudarão a sepultá-las fora do jardim, para que vocês floresçam novamente no verão, e se tornem mais lindas do que nunca.”

Os primos da Noruega eram garotos muito inteligentes. Seus nomes eram Jonas e Adolfo; o pai deles havia dado a eles dois novos arcos, e eles haviam trazido os arcos para mostrar para Ida. Ela contou para eles sobre as pobres florzinhas que haviam morrido, e então, eles tiveram permissão para sepultá-las. Os dois garotos iam na frente, com seus arcos nos ombros, e a pequena Ida ia logo atrás com as flores mortas dentro da linda caixa. Fora do jardim uma linda sepultura foi aberta. Ida primeiro beijou as flores, e depois as colocou na terra dentro da caixa, e Adolfo e Jonas lançaram seus arcos sobre a sepultura, porque eles não tinham armas nem canhões.

Fonte: Hans Christian Andersen. Contos de Andersen. Publicado em 8 de Maio de 1835. Disponível em Domínio Público. 

Nilto Maciel (Tony River)

Mocinho ainda, rósea tez de espinhos, frouxas calças e olhar enigmático, Antonio Siqueira partiu para a capital, não por querer ou tal fazer, porém pela simples necessidade do pai de pôr nos eixos as finanças arruinadas nos secos e molhados. Debalde o sonho, debalde o esforço. Não tanto por ser chegada a hora extrema do velho, dez anos depois, mas por aquilo que só os gênios tentam explicar semanalmente nos tablóides da oposição.

Único varão de uma prole molenga e branca, apesar das barbas crescidas e da voz de locutor da mãe, Toninho se fez senhor herdeiro de uma bodega, que aos poucos transformou em bar. Frequentador de praias e boates, aprendeu noções elementares do viver moderno, em meio às jovens prostitutas da classe-média e aos pueris mocinhos de cabelos compridos e justas calças. Mudou de esquina e aproximou-se da orla marítima, onde pesadas máquinas enegreciam a areia. E, em mudando de esquina, fez do bar uma lanchonete-bar. Um mês depois, “Ocean Boîte”. Oceano que espumou em noite de frio e tenebrosa onda avassalou o red-dancing-saloon de Tony.

Que, em noite de fumaças e vapores, à sua bela amante prometeu fazer renascer das águas, não do mar, mas de um rio, por isso “River Boîte”, I am Tony, girl, sua casa de pastos bastos, gastos castos. Um rio de Palma, que, por certo, existiria ainda, e nele edificaria sua vitória sobre a moral dos ancestrais. Numa folha de papel de carteira de cigarro rabiscou o croquis de uma cidade-mito, tal qual imaginada na infância. Dentro, a arquitetura moderna de uma superboate. Ruas tantas, casas e igrejas, mesquitas, templos pagãos e lojas maçônicas, pois minha cidade é cosmopolita e dada à prática de quantas religiões, seitas e crenças imaginar possa você, minha pequena e doce Pepita.

Porém na geografia palmense rio não havia, nem nunca houve, e disto se espantou a Pepita de busto montanhoso, lábios floridos e olhos marinhos. De que valeram, no entanto, tais espantos pelo não-haver, se maior espanto foi o ver uma cidade mais de igrejas feita que de casebres habitada? E as mesquitas e não sei o quê, onde agora estão? E uma longa história de guerras santas, aprendidas em almanaques de laboratórios e sem “Você sabia que?”, disse da destruição vandálica e da reconstrução arqueológica da antiga cidade, hoje ordeira, modelar e turística.

De tanto inventar e sonhar, depois de tanto precisar, descobriu Tony, quase no longe do conglomerado de igrejas, já nas bordas da antiga floresta, uma igrejola feia, desbotada de cor e abandonada de crença. Embora solitário, escancarou-lhe as podres portas e espantou os morcegos e demônios que lá viviam em festival sem fim, desmatou-lhe os púlpitos, os altares e as colunas de mármore. Derrubou-lhe as torres tão fácies de ruir, a lembrar as ameaças infernais ouvidas em sermões hitlerianos há anos, muitos anos. E deu-lhe aspecto de casal abandonado e placa de posse e propriedade suas, senhor de latifúndios, prédios e indústrias.

Em nome da expansão urbana e do turismo, o secular alcaide autorizou o desmatamento da região, ligando-a à sede da comarca por uma via calçada e iluminada. Assim, a velha igreja foi, pouco a pouco, se fazendo casa de lazer ou prazer, de música e bebida, de danças e beijos. Nascia das ruínas a “River Boîte”, luzes vermelhas, cervejas geladas, músicas estridentes e danças modernas.

Na festa de inauguração ocorreu, porém, coisa esquisita, talvez o marco da brusca mudança por que passou Palma. Quatro casais de jovens chegaram, mãos dadas, a cantar e sorrir. Os filhos felizes do doutor, do juiz, do prefeito, do farmacêutico, do dono do clube e dos vendedores de arroz e feijão pros vendedores de arroz e feijão. Filhos queridos da raça nascida por entre as igrejas, famintos do novo, ansiosos de saber o prazer de beber whisky escocês ou cerveja gelada, de dançar ou pular rock na roça e falar o inglês dos galantes cowboys. Mas por nada disso saberem, sentaram e cantaram cantigas antigas, valsas medidas. E beberam e fumaram, e cantaram e sorriram. Logo porém a vitrola gritou uma música jamais ouvida em Palma. E ouviram e aprenderam a música difícil importada por Tony da grande cidade.

Tanto beberam cerveja gelada e gostosa, que as bexigas se encheram. Com tal desprazer, se olharam perplexos. Onde ir despejar?

Onde o banheiro? Onde o banheiro? Perguntavam-se para não desmanchar o prazer de ouvir a música estrangeira. Remexeram as cadeiras, as pernas tremeram, beberam e beberam, que dançar não podiam ou talvez não sabiam.

Lá pelas tantas, o mais jovem de todos afastou a cadeira e aos fundos do bar dirigiu-se. Duas portas, porém, estamparam-lhe nos olhos a dúvida: ladies, gentlemen. Será esta ou aquela a que devo empurrar? Assustou-se ao ouvir o próprio nome gritado por um seu companheiro.

Entrementes nas mesas as moças cochichavam, sorriam, cantavam e contavam histórias sem fim. Duas delas, porém, deixaram as outras e os outros e saíram, mãos dadas, em busca do bidê confidente. E ao verem os dois bigodinhos abraçados ante a porta do quartinho das ladies, entraram depressa no logo contíguo.

Nessa noite de festa, os jovens farristas de tudo falaram: de boys e de girls, cervejas e whiskys, rock’n roll. Vocês já sabiam que ladies e gentlemen? que nossa cidade é muito avançada, a capital do sertão? Pois aqui tem boate, cerveja, roque, meu bem, graças ao nosso bom Tony River.

Abraçados, felizes, os aprendizes de pândego divisaram no lusco-fusco uma figura de negro que se aproximava, a sorrir e beijar a doce Pepita. E ouviram cânticos, sermões e sinos. Pasmados, se ajoelharam aos pés do fantasma, beijaram-lhe as botas e choraram e caíram aos pés de Antonio Siqueira, que, aos pulos, subiu as escadas de madeira, de volta às antigas torres da velha igreja.

Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Carolina Ramos (Trovando) “07”

 

Mensagem na Garrafa – 44 –


Paulo Coelho
Rio de Janeiro/RJ

TEMPO CERTO

De uma coisa podemos ter certeza:
de nada adianta querer apressar as coisas;
tudo vem ao seu tempo,
dentro do prazo que lhe foi previsto.
Mas a natureza humana não é 
muito paciente.
Temos pressa em tudo e aí acontecem
os atropelos do destino,
aquela situação que você mesmo provoca,
por pura ansiedade de não
aguardar o tempo certo. 
Mas alguém poderia dizer:
Qual é esse tempo certo?

Bom, basta observar os sinais.
Quando alguma coisa está para acontecer
ou chegar até sua vida,
pequenas manifestações do cotidiano
enviarão sinais indicando o caminho certo.
Pode ser a palavra de um amigo,
um texto lido, uma observação qualquer.
Mas, com certeza, o sincronismo se encarregará
de colocar você no lugar certo,
na hora certa, no momento certo,
diante da situação ou da pessoa certa.

Basta você acreditar que nada
acontece por acaso. Talvez seja por
isso que você esteja
agora lendo estas linhas.
Tente observar melhor o que está a sua volta.
Com certeza alguns desses sinais
já estão por perto e você nem os notou ainda.
Lembre-se, que o universo sempre
conspira a seu favor quando você 
possui um objetivo claro e uma disponibilidade 
de crescimento.

Coelho Neto (O Vaqueiro Firmo)

Sentados na soleira da palhoça, em face do verde campo, à hora vesperal em que os rebanhos recolhem, o velho Firmo e eu fumávamos, relembrando passagens alegres da vida de outrora.

Firmo era meu companheiro quando eu ia passar as férias na roça. O que ele sabia de histórias, e como as contava fazendo a voz enternecida e meiga para imitar as princesas que imploravam ou arremetendo com vozeirão terrível para que eu tivesse a impressão exata do bradar horrível dos gigantes antropófagos. E não só história dos livros, outras sabia que eu jamais em letras vira: a que descrevia a iara branca seduzindo o remador do Itapicuru e o conto do Sucupira, com que no bom tempo faziam cessar a minha impertinência. Algumas eram inventadas por ele, diziam; outras o velho Firmo, vaqueano e andejo, aprendera por esses sertões de Deus por onde caminhara.

Andava pelos oitenta anos, mas quem o visse a cavalo, no campo, não lhe daria tanta idade. O diabo era o reumatismo que não lhe deixava as pernas. No seu tempo ninguém levava o melhor ao Firmo do Curral Novo. Raparigas, que uma vez o viam montado no garboso cavalo, o laço em volta da cinta, a aguilhada firme sobre a coxa coberta de couro cru, perdiam-se de amor por ele.

Era um caboclo atirado, musculoso e rijo: grandes olhos negros brilhavam no rosto queimado pelos verões e os cachos do seu cabelo rolavam-lhe pelos ombros largos.

Velho, embora, "ninguém lhe chegava ao pé sem muito jeito", como ele próprio dizia sorrindo som os seus dentes limados, agudos como pontas de flechas. Apesar de alquebrado e enfermo andava com arrogância e notava-se-lhe na voz, áspera e forte, o hábito de comando.

Em tempos de festa, quando vinham para a mesma eira moças do lugar e de longe, Firmo saltava na roda, sapateando, rasgando na viola a tirana dos campeiros, e quem ousava pegar no verso do caboclo?! As tabaroas (mulheres acanhadas do interior) morenas sorriam com os olhos fascinados e unidas desfaziam-se das flores para que o cantador as fosse pisando no sapateado. Por isso Firmo andava sempre de ponta com os companheiros e, mais de uma vez, o descante acabou varrido à faca; mas quem ficasse do lado do caboclo podia estar descansado – nunca fugiu de arrelia fosse com um, fosse com dez ou mais.

Mãezinha, a velha mucama de casa, quando o via passar no caminho, curvado, pitando o seu cachimbo de taquara, dizia maliciosa:

– Isso, ahn! Isso, foi o diabo!

Firmo "vivia encostado no tempo de dantes", a saudade era o seu conforto. "Hoje em dia que é que a gente vê? Má língua e moleza só", dizia e citava os valentes de antanho e mostrava as velhas gabando-lhes a beleza que a idade fanara:

"Serapião, homem que nem o diabo!... Ana Rosa, essa curumba (moça de baixa condição social)... foi mulata de dengue, era um motim aqui em cima por causa dela. Filomena, com essa cara de peixe moqueado, teve o seu luxo e foi gente. Eu também pisei duro, ora!"

Firmo vivia das recordações. Passava os dias caminhando de um para outro lado, visitando as palhoças, ou à beira do rio para ver e ouvir as lavadeiras, quando não se metia a fazer bodoques para as crianças.

À tarde sentava-se em um pilão quebrado, à porta da casa, e deixava-se estar inerte, os olhos ao longe: "Estava vivendo..." dizia quando eu lhe perguntava que fazia ali sozinho. Estávamos, às vezes, sentados juntos, ele a contar-me histórias, quando nos chegava, nítido e agudo, o grito do campeiro. Firmo calava-se, um estremecimento agitava-o, os olhos dilatados recobravam o brilho antigo e punha-se de pé, devassando a paisagem triste, à luz crepuscular.

De repente aparecia a nuvem de poeira anunciando o gado que chegava... uma mancha vermelha, uma mancha negra, outra e logo o magote, os bois juntos, emaranhando os chifres: um mugia, outros imitavam-no levantando os focinhos ou ferravam-se às marradas, sendo, às vezes, necessária a intervenção do vaqueiro que apartava os dois à ponta de vara. E a marcha aproximava-se morosa.

Firmo ficava enlevado acompanhando os movimentos da manada, inclinando-se para um lado, para outro, aspirando sôfrego. De repente batia as palmas e juntava, logo em seguida, as mãos na boca à guisa de porta-voz, bradando:

– Eh! eh! eh cou! ruma! ruma! Eh! lou...

E ficava longo tempo excitado, a olhar. Não perdia uma só das peripécias e, se um touro espirrava, correndo aos galões pela campina, o velho entrava a bramar do outeiro, tão alto, tão alto que as raparigas, que andavam na eira recolhendo a roupa ou socando o arroz, paravam assustadas erguendo os olhos para o lado da palhoça do vaqueiro velho. Mas ninguém o acomodava antes de ser laçado o boi fujão e quando o vaqueiro aparecia, arrastando o animal laçado, Firmo suspirava baixinho:

– Ah! Nossa Senhora! Meu tempo!

Foi pelo Natal que o vi pela última vez. Começavam os preparativos da festa, quando cheguei ao sitio. Nas casas dos escravos, as velhas, à noite, ensaiavam as crianças. Na eira os rapazolas preparavam jiraus; colhia-se o arroz novo para os presepes e de todos os lados, mal o sol fugia, começavam as toadas das cantigas ao Deus Menino e as falas dos infantes que figuravam no Mistério.

Firmo estava doente, mal podia mover-se: passava os dias na rede. Subi a vê-lo, uma noite, justamente na véspera do grande dia. Encontrei-o deitado, fumando, os olhos semicerrados.

– Eh! Vaqueiro velho... Então que é isso?!

– Estou derrubado, patrãozinho.

– Mas que diabo tem você?

– Moléstia má, patrãozinho; parece que desta feita vou mesmo.

– Ora qual...

– Eu é que sei como me sinto, patrãozinho. Se até o pito me faz nojo...

– Pois eu preparei uma surpresa que te vai fazer mais bem do que todas as mezinhas de mãe Tude. Quem está aí fora? Adivinha...

– Ah! patrãozinho, alguma alma boa. Quem há de ser?!

– Raimundinho.

O velho sacudiu-se novamente na rede e, voltando-se para a porta com um sorriso, perguntou:

– E onde está esse negro que não entra?

– Boa noite à gente da casa! – disse da porta o cafuzo.

– Entra, negro!

O cafuzo, um codoense (natural de Codó/MA) de fama, atravessou o limiar da porta:

– Então, tio Firmo, a febre pode mais, hein?!

– Sim porque eu não vi quando ela entrou... quando não! Então, negro, que é que vamos fazendo?...

– Vim fazer a minha festa. Dizem que vão queimar fogaréus no Curral Novo.

– Como vai Noca?

– Boa.

– E Ana? Está na cidade, mais o pai?

– Hen, hen. – afirmou o cafuzo.

– Negro, você não vai daqui hoje. Ah! Patrãozinho, vosmecê vai ver o que é um diabo. Negro, ajunta a madeira ali atrás da arca...

– Está encordoada?

– Ó danado! Onde você viu viola de homem sem corda? E afinada. Ajunta.

O codoense agachou-se, apanhou a viola do vaqueiro e logo correu os dedos ágeis pelas cordas.

– Passa pra luz, cafuzo.

– Lá vou.

Sentou-se no centro da sala, cruzou as pernas e, tombando a cabeça, gemeu a toada sertaneja.

– Anda com Deus.

– Lá vai; pigarreou e desferiu:

No coração de quem ama
Nasce uma flor que envenena"

– Eh! - gritou o Firmo entusiasmado, concluindo a quadra:

"Morena, essa flor que mata
Chama-se paixão, morena."

– Pega, negro, não deixa o verso no chão!

De fora, contínuo e doce, vinha o coro longínquo das crianças em louvor de Jesus e, de vez em vez, reboava o mugido de um touro.

Quando o cafuzo descansou a viola, Firmo disse da rede com esforço, arrastando a voz fraca:

– Canta, canta mais, cafuzo... Quem não tem Nosso Pai ouve a cantiga. Canta.

Era tarde quando desci o outeiro. Raimundinho lá ficou cantando.

No dia seguinte, à hora em que saía o gado, estava eu debruçado à varanda quando vi o cafuzo que preparava o animal viajeiro:

– Raimundinho, como vai ele?...

De longe apontou a palhoça:

– Sim.

O braço caiu-lhe, olhou-me algum tempo comovido; depois saltando para o animal, levou o polegar à boca fazendo estalar a unha nos dentes:

– Às quatro da manhã... Atirei um verso e disse, para bulir com ele: Pega, velho! Não respondeu. Tio Firmo, mesmo velho e doente, não era homem para deixar um verso no chão... Fui ver, coitado!... Estava morto. E deu esporas para que eu não lhe visse as lágrimas.

Subi ao outeiro. Pobre Firmo! Lá estava no fundo da rede, cercado de gente. Guardara o sorriso, morrera feliz, ouvindo os cantos do seu tempo e bem perto de casa o mugido dos rebanhos. E bem que o choraram nessa noite os grandes bois, e diziam, entretanto, que eles estavam louvando o Senhor Menino; chorando o companheiro é que eles estavam, os grandes bois que pressentem todas as desgraças e que veem a morte passar, à noite, com a foice de rastro, através das campinas! Bem que choraram nessa noite os bois: de certo viram a morte entrar na cabana de Firmo.

Fonte: Coelho Neto. Sertão. Publicado em 1926.