sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Newton Sampaio (Delírio do Zé Carijó)

— Deixe de maldade, rapaz! Pra que judiar do animal? Não sabe que isso machuca as pernas do bicho?

Geraldo, repreendido pelo pai, desistiu da proeza que queria praticar — amarrar uma lata de querosene na cauda do cavalo, que era tão manso, para depois gozar a barulheira, quando a corrida desabalada a fizesse sacolejar doidamente.

Desistiu dessa proeza, mas enfiou-se pelo fundo do quintal, à cata de novos motivos de travessura.

Zé Carijó abanou a cabeça.

— Não tem mais jeito, mesmo.

E, empunhando a foice, continuou a fazer ponta em um pedaço de peroba que serviria para ultimar a cerquinha do paiol de milho.

— Precisa ser posto em colégio de padre ou em quartel de polícia. Cruz-credo! Não há quem possa com as suas ruindades...

De dentro de casa, veio uma voz de mulher:

— Nhô Zé! Posso pôr a janta?

— Pode, Rosália. Já ‘tou com a barriga nas costas.

Largou a ferramenta. Foi até o poço tirar água para lavar as mãos. Espiou o céu.

— Quá! Nem sombra de chuva! Nem parece janeiro...

O jantarzinho foi servido no prato de folha.

— Cadê Geraldo? Vá ver se ele tá aí por perto, Rosália. 

O menino chegou com um sorriso velado, cínico, nos lábios.

— Coma depressa e vá à casa do compadre Lucas levar um recado.

Quando o garoto, já nutrido, saiu com destino ao velho Lucas, Zé Carijó puxou uma cadeira até a porta do terreiro. Chamou Ritinha, que andava pelos quatro anos.

— Filha, venha cá sentar no colo do pai.

Fora o último presente de Rita, pois, quando a criança nascera, a mulher partira desta vida para melhor.

Zé Carijó lembrava-se bem. Tinha sido difícil consolar-se com a perda de sua companheira fiel de doze anos. Enfim... Como assim rezava a vontade de Deus... Achava Ritinha (ele somente) infinitamente parecida com a mãe.

Até o mesmo nome lhe botara. E a fizera criar com carinhos requintados. Era o seu “ai Jesus”, como dizia perdidamente o Geraldo — na petulância de seus quinze anos —, que não podia compreender nem justificava a adoração do velho pela caçulinha. Até a “sinhá” Rosália — a irmã mais nova da Rita, e que passara a morar ali desde o nascimento da criança — de vez em quando gracejava com o exagero daquele amor paternal.

— Livra, nhô Zé! ‘Té parece princesa...

Zé Carijó, com a filhinha no colo, relembrava o seu jeito de vida. Não fossem a saudade da companheira e as peraltices do Geraldo (matutava), e o mundo não lhe seria mau.

Com a fuga do sol, o céu ficou todo cheinho de estrelas. E o caboclo, até muito tarde, deixou-se ficar ali, na porta da casinhola, pensando na sua Rita, que devia estar bem pra lá das estrelas, e afagando a menina do seu coração, a Ritinha, que ressonava, alheia à saudade do pai, alheia aos astros longínquos, piscantes, aos urutaus que enchiam a noite de assombrações — alheia à vida. 

Entrava mês, saía mês, e a existência do sertanejo arrasta-se no ritmo de sempre. Há certas pessoas que vivem assim: sem grandes dissabores nem gozos notáveis — o pêndulo da sensibilidade oscilando isocronicamente, suavemente de um lado a outro, na amplitude acanhada de seu movimento, sem jamais se desequilibrar no paradoxismo dos extremos.

Geraldo completara os dezenove anos. E Ritinha andava beirando já a casa dos oito. Foi por esse tempo que a pacatez do Zé Carijó começou a descambar francamente. O rapagote, cujos instintos perversos dia a dia se acentuavam, burlava a vigilância do pai. E, certa vez, sumiu do lugar, depois de praticar um roubo vultuoso contra o próprio padrinho, o velho Lucas.

Para Zé Carijó, o choque foi inimaginável. Seu nome, sempre tão honrado, manchado agora por esse malfeito do filho! 

Por muitos dias ficou abobado, indiferente, com a cara cheia de sulcos, e com uma vergonha tremenda pondo-lhe tremores na alma. Não quis mais aparecer a ninguém. Sentia-se sem o direito de olhar os outros homens. E, um belo dia, arrumou os tarecos, vendeu a moradia, pagou as poucas dívidas, e zarpou para longe, sem dizer a ninguém o destino que tomava.

A Ritinha — coitada! — chorou, chorou como nunca. Tinha amor pela casinhola onde nascera. 

Zé Carijó — mais a filha e a cunhada — tocou-se pros lados de São Jerônimo, lá no fundo sertão paranaense. E começou nova vida. Criando porcos. Plantando milho. Vendendo os presentes que a terra lhe dava.

Ninguém o conhecia ali. Achou até de bom aviso trocar de nome, embora como um eco, soubesse da regeneração do Geraldo. E, para todos os efeitos, passou a atender por “Zé de Minas”. 

Ritinha ia crescendo. Franzina sempre, tomava, no entanto, um arzinho simpático. E para Zé Carijó — pseudo Zé das Minas — que, apesar de não ser muito velho, andava já com a cabeça branqueando cada vez mais — para o Zé Carijó ela era o supremo consolo, na maturidade amarga de sua vida. Fazia-lhe por isso os melhores carinhos, aguardando uma possibilidade para levá-la p’ra perto da cidade.

Um dia, começou a chegar àquelas bandas o eco das façanhas de um tal João dos Corações. Assim o alcunhara o povaréu transido, porque — era voz corrente — quando o bandoleiro assaltava inopinadamente uma vivenda qualquer, depois de levar a efeito uma razia impiedosa, matava uma das moças, se as houvesse, deixando-a de peito aberto, à mostra. Um tipo mórbido, não havia dúvida.

Vencê-lo, e a seu bando, a raquítica polícia do interior não podia. E o já famoso João dos Corações continuava a assustar o bom povo do sertão, pilhando as fazendas desprotegidas e, quando possível, obedecendo ao imperativo de seu sadismo criminoso.

Quando uns vizinhos contaram ao Zé das Minas a história do bandido, ele não demonstrou susto.

— Que adianta esse João dos Corações vir a este rancho? Eu sou um coitado, sem haveres quase...

Numa noite, em que fazia um luar muito bonito, Zé das Minas se viu coagido em ir a um guardamento na casa de um conhecido que morava a menos de meio quilômetro.

Lá se foi, recomendando expressamente a Ritinha e a Rosália que não abrissem a porta a ninguém.

— Não tenham medo. Fico lá só meia hora, pra cumprir a obrigação. Logo ‘tou de volta.

Já de regresso, quando Zé das Minas deixava a casa do amigo enlutado, um grupo de cavaleiros passava pela frente de sua casa.

— Chefe! Luz! (E apontando o ranchinho). Deve ter coisa...

Desceram silenciosamente alguns homens. Examinaram as armas. Tudo no pontinho de bala, se fosse preciso. Forçaram rápida e violentamente a porta. O vento entrou pela casa, brusco, apagando a chama da lamparina.

As duas mulheres nem tiveram forças pra gritar, de tanto susto. Imobilizaram-se, no escuro tenebroso, pois, até lá fora, uma nuvem cúmplice tinha estorvado a luz da lua. Uma logo rolou pelo chão, ensanguentada. A outra, incólume, mas exânime, caiu no fundo da cozinha.

A pilhagem quase não trouxe lucro aos assaltantes. Ainda assim, uma ou outra coisa, apanhada na obscuridade, tinha bastante serventia. Quando os primeiros bandidos se dispunham a vir para o terreiro ensombrado, um deles procurou o corpo da moçoila. Rasgou-lhe, com suma perícia, o lado esquerdo do peito. Arrastou-a depois para fora, no mesmo instante em que o Zé das Minas, de volta, atravessava a porteirinha próxima.

Sentindo a aproximação de alguém, o bandoleiro largou a vítima. Mas, ao virar-se, a lua, desvencilhando-se da nuvem importuna, iluminou-lhe em cheio a feição sinistra.

E o Zé Carijó — pseudo Zé das Minas — teve tempo de reconhecer o fugitivo.

— Geraldo!...

Subiu uma onda incrível... Era piedade. E também ódio.

— Corre danado! Monta! Vai-te, bandido!

E a garganta apertou.

Zé Carijó estacou. Compreendeu tudo, num segundo. E sentiu na cabeça uma tonteira invencível. Reclamou energia extrema para das alguns passos. Chegou-se perto do corpo abandonado no terreiro. E viu o peito da sua Ritinha todo golpeado, exibindo um pedaço de coração, que parecia querer pulsar, ainda, o ritmo instintivo da vida.

Fez intenção de se baixar e levantar nos braços a filhinha de sua alma. Mas não o conseguiu. Sumiram-lhe as forças. O caboclo arregalou os olhos. Esfregou as pálpebras. Mas tudo começou a embaralhar. Pareceu-lhe que, do peito da moça, saía uma coisa pequenina, pequenina, que pouco a pouco aumentava para formar um coração bem da altura da sua Ritinha.

A perobeira, que havia ali perto, se pôs a mudar também de jeito.

O vasto matagal distante saiu do lugar e veio diminuindo, até desaparecer ali a dois passos. A luz, que estava muito clara, arreganhou-se toda em grandes curvas cordiformes, e, despencando do céu, vinha chegando, devagar, pra perto do caboclo.

Zé Carijó, com fisionomia agônica, no supremo esforço de sua vitalidade, traçou no ar, com o dedo longo, o contorno exato de um enorme coração. E caiu de borco, ali mesmo, rente ao corpo inanimado da filha.
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Publicado originalmente no Correio dos Ferroviários. Curitiba, maio de 1934.

Fonte:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.

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