Mocinho ainda, rósea tez de espinhos, frouxas calças e olhar enigmático, Antonio Siqueira partiu para a capital, não por querer ou tal fazer, porém pela simples necessidade do pai de pôr nos eixos as finanças arruinadas nos secos e molhados. Debalde o sonho, debalde o esforço. Não tanto por ser chegada a hora extrema do velho, dez anos depois, mas por aquilo que só os gênios tentam explicar semanalmente nos tablóides da oposição.
Único varão de uma prole molenga e branca, apesar das barbas crescidas e da voz de locutor da mãe, Toninho se fez senhor herdeiro de uma bodega, que aos poucos transformou em bar. Frequentador de praias e boates, aprendeu noções elementares do viver moderno, em meio às jovens prostitutas da classe-média e aos pueris mocinhos de cabelos compridos e justas calças. Mudou de esquina e aproximou-se da orla marítima, onde pesadas máquinas enegreciam a areia. E, em mudando de esquina, fez do bar uma lanchonete-bar. Um mês depois, “Ocean Boîte”. Oceano que espumou em noite de frio e tenebrosa onda avassalou o red-dancing-saloon de Tony.
Que, em noite de fumaças e vapores, à sua bela amante prometeu fazer renascer das águas, não do mar, mas de um rio, por isso “River Boîte”, I am Tony, girl, sua casa de pastos bastos, gastos castos. Um rio de Palma, que, por certo, existiria ainda, e nele edificaria sua vitória sobre a moral dos ancestrais. Numa folha de papel de carteira de cigarro rabiscou o croquis de uma cidade-mito, tal qual imaginada na infância. Dentro, a arquitetura moderna de uma superboate. Ruas tantas, casas e igrejas, mesquitas, templos pagãos e lojas maçônicas, pois minha cidade é cosmopolita e dada à prática de quantas religiões, seitas e crenças imaginar possa você, minha pequena e doce Pepita.
Porém na geografia palmense rio não havia, nem nunca houve, e disto se espantou a Pepita de busto montanhoso, lábios floridos e olhos marinhos. De que valeram, no entanto, tais espantos pelo não-haver, se maior espanto foi o ver uma cidade mais de igrejas feita que de casebres habitada? E as mesquitas e não sei o quê, onde agora estão? E uma longa história de guerras santas, aprendidas em almanaques de laboratórios e sem “Você sabia que?”, disse da destruição vandálica e da reconstrução arqueológica da antiga cidade, hoje ordeira, modelar e turística.
De tanto inventar e sonhar, depois de tanto precisar, descobriu Tony, quase no longe do conglomerado de igrejas, já nas bordas da antiga floresta, uma igrejola feia, desbotada de cor e abandonada de crença. Embora solitário, escancarou-lhe as podres portas e espantou os morcegos e demônios que lá viviam em festival sem fim, desmatou-lhe os púlpitos, os altares e as colunas de mármore. Derrubou-lhe as torres tão fácies de ruir, a lembrar as ameaças infernais ouvidas em sermões hitlerianos há anos, muitos anos. E deu-lhe aspecto de casal abandonado e placa de posse e propriedade suas, senhor de latifúndios, prédios e indústrias.
Em nome da expansão urbana e do turismo, o secular alcaide autorizou o desmatamento da região, ligando-a à sede da comarca por uma via calçada e iluminada. Assim, a velha igreja foi, pouco a pouco, se fazendo casa de lazer ou prazer, de música e bebida, de danças e beijos. Nascia das ruínas a “River Boîte”, luzes vermelhas, cervejas geladas, músicas estridentes e danças modernas.
Na festa de inauguração ocorreu, porém, coisa esquisita, talvez o marco da brusca mudança por que passou Palma. Quatro casais de jovens chegaram, mãos dadas, a cantar e sorrir. Os filhos felizes do doutor, do juiz, do prefeito, do farmacêutico, do dono do clube e dos vendedores de arroz e feijão pros vendedores de arroz e feijão. Filhos queridos da raça nascida por entre as igrejas, famintos do novo, ansiosos de saber o prazer de beber whisky escocês ou cerveja gelada, de dançar ou pular rock na roça e falar o inglês dos galantes cowboys. Mas por nada disso saberem, sentaram e cantaram cantigas antigas, valsas medidas. E beberam e fumaram, e cantaram e sorriram. Logo porém a vitrola gritou uma música jamais ouvida em Palma. E ouviram e aprenderam a música difícil importada por Tony da grande cidade.
Tanto beberam cerveja gelada e gostosa, que as bexigas se encheram. Com tal desprazer, se olharam perplexos. Onde ir despejar?
Onde o banheiro? Onde o banheiro? Perguntavam-se para não desmanchar o prazer de ouvir a música estrangeira. Remexeram as cadeiras, as pernas tremeram, beberam e beberam, que dançar não podiam ou talvez não sabiam.
Lá pelas tantas, o mais jovem de todos afastou a cadeira e aos fundos do bar dirigiu-se. Duas portas, porém, estamparam-lhe nos olhos a dúvida: ladies, gentlemen. Será esta ou aquela a que devo empurrar? Assustou-se ao ouvir o próprio nome gritado por um seu companheiro.
Entrementes nas mesas as moças cochichavam, sorriam, cantavam e contavam histórias sem fim. Duas delas, porém, deixaram as outras e os outros e saíram, mãos dadas, em busca do bidê confidente. E ao verem os dois bigodinhos abraçados ante a porta do quartinho das ladies, entraram depressa no logo contíguo.
Nessa noite de festa, os jovens farristas de tudo falaram: de boys e de girls, cervejas e whiskys, rock’n roll. Vocês já sabiam que ladies e gentlemen? que nossa cidade é muito avançada, a capital do sertão? Pois aqui tem boate, cerveja, roque, meu bem, graças ao nosso bom Tony River.
Abraçados, felizes, os aprendizes de pândego divisaram no lusco-fusco uma figura de negro que se aproximava, a sorrir e beijar a doce Pepita. E ouviram cânticos, sermões e sinos. Pasmados, se ajoelharam aos pés do fantasma, beijaram-lhe as botas e choraram e caíram aos pés de Antonio Siqueira, que, aos pulos, subiu as escadas de madeira, de volta às antigas torres da velha igreja.
Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.
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