domingo, 26 de maio de 2024

Monteiro Lobato (A nuvem de gafanhotos)

Ser empregado público de categoria inferior e por mal de pecados demissível: será isso programa que seduza alguém?

— É.

Para Pedro Venâncio mais que seduzia — sorria. Foi, pois, com enlevo de alma que recebeu a notícia de sua nomeação para fiscal da Câmara Municipal de Itaoca.

— Vou sossegar — disse consigo, esfregando as mãos de contentamento. — Cavei o meu osso e agora é roê-lo pela vida afora na santa paz do Senhor.

E ferrou o dente no ossinho.

Mas acontece que há osso e osso. Osso de bom tutano e osso pedra-pomes. No andar dos tempos verificou Venâncio que o tal ossinho era desses que embotam os dentes sem dar o mínimo de suco.

Gastar a vida inteira naquilo? É ser tolo, cochichou-lhe a humana ambição de melhoria, engenhosa fada a quem se devem todos os progressos do mundo. Assim espicaçado, entrou Venâncio a fariscar tutanos. Recorreu antes de mais nada à loteria, pois que é a Sorte Grande o supremo engodo dos pés-rapados. Venham gasparinhos! Todas as semanas adquiria um — e sonhava. O mesmo vendeiro que lhe fornecia aos sábados a semanal quarta de feijão, os semanais oito litros de arroz e o semanal cento de cigarros, juntava na conta mil-réis de sonhos. E Venâncio, comido o feijão, fumado o cigarro, sonhava. Sonhava o doce beijo da Fortuna, boa deusa que o despegaria do atoleiro com um simples toque de sua asa potente.

Em matéria de cultura não era Venâncio de todo cru. Lia suas coisas e tinha lá suas ideias. Revelara desde cedo grande aptidão para a lavoura e documentava o pendor assinando quanta publicação oficial existe. Publicações gratuitas...

Assim, nas palestras da farmácia ninguém piava sobre lavoura sem que ele pulasse no meio com a sua colher torta. E era de ver o calor da sua argumentação e a riqueza das suas citações estatísticas.

Fazendeiro que nesses momentos passasse havia que parar e abrir bem aberta a boca. Venâncio possuía planos grandiosos para salvar o café e pô-lo aí a quarenta mil-réis a arroba...

— Quarenta mil-réis, Venâncio? Não acha meio muito? 

Venâncio incendiava-se.

— Por que muito? Não somos os maiores produtores? Não temos o quase privilégio dessa cultura? Se é assim, o lógico é que imponhamos o preço. Eu disse quarenta, não foi? Pois digo agora quarenta e cinco! Digo cinquenta!

—!!!

— Não se espantem. Eu provo que pode ser assim e que os americanos têm que gemer ali no dolarzinho, queiram ou não queiram!

—!!!

— Queiram ou não queiram! — reafirmava o salvador, escandindo as palavras.

E provava.

Também extinguia em menos de um ano a lagarta-rosada, mais o curuquerê (larva do algodão); e triplicava a corrente imigratória; e extraía o azoto do ar, pondo o adubo ao alcance de todos, a cem réis o quilo, talvez mesmo a setenta.

— Porque, como os senhores sabem, a química agrícola demonstra que...

E demonstrava.

Num desses rompantes demonstrativos, o coronel da terra, de passagem pela rua, deteve-se a ouvi-lo e, finda a tirada, disse-lhe à queima-roupa:

— Que excelente ministro da Agricultura não daria você! Duvido que os Calmons e os Bezerras entendam mais de lavoura...

— Está caçoando, coronel! — murmurou Venâncio com modéstia, embora no íntimo convencido da justiça da apreciação.

— Falo sério. Bem sabe que não brinco.

Os circunstantes sorriram discretamente, enquanto o massa de ministro se lambia todo, como boi feliz.

Em casa repetiu à esposa a opinião do chefe político.

— Brincadeira dele, Pedro! — objetou a sensatíssima consorte. — Não está vendo?

— Brincadeira nada! O coronel é homem que não brinca, você bem sabe...

Desde esse dia, imaginariamente, Venâncio transformou-se num maravilhoso ministro da Agricultura. Plantou-se de armas e bagagens no casarão da Praia Vermelha e com raro tino administrativo salvou o país. Que eficácia de medidas! Que sábias leis protetoras! Que maravilhosos resultados! Lagarta nos algodoais? Nem umazinha para remédio! Curuquerê? Nem sombra! O café trepou à casa dos quarenta...

— Por arroba?

— Por dez quilos, homem!

E, firmíssimo, revelava tendências para alta ainda maior. Os mais pessimistas já concediam que não era de admirar fosse a cinquenta.

A borracha do Norte arrancou-se ao marasmo em que emperrava e voltou a ser um pactolo (fonte de riquezas) de esterlinas.

Azoto andava por aí aos pontapés, como um trambolho.

E na cabeça de Venâncio os sonhos lotéricos desapareceram trocados pelos sonhos administrativos, muito mais amplos e de muito maior alcance patriótico.

A consequência foi que Venâncio se eternizou no Ministério. Vários presidentes se sucederam sem que nenhum ousasse tocar em sua pasta. Era sagrado aquele gênio de ministro, que salvara o país, enriquecera a lavoura, desafogara o comércio, consolidara a indústria e que, adorado pela nação, teria estátua em vida.

Que teria? Que teve! Por mais que em sua infinita modéstia o grande ministro recusasse tal homenagem, a gratidão nacional teimou em glorificá-lo no bronze.

Inesquecível a manhã em que Venâncio, de lágrimas nos olhos, viu rasgarem-se os véus do seu monumento.

AO SALVADOR DA PÁTRIA,
O POVO AGRADECIDO.

Agradecido ou enriquecido? A turvação dos olhos não lhe permitiu distinguir a expressão exata — e por longo tempo semelhante dúvida o torturou.

Mas a grande recompensa teve-a ele em casa, ouvindo da esposa estas deliciosas palavras:

— Agora, sim, Venâncio, acredito que você é mesmo o que dizia. Até estátua!...

A boa senhora só se convencia com provas de bronze...

O doloroso, porém, era o contraste das duas vidas — ministro por dentro e fiscal da Câmara por fora, obrigado a interromper a matutação de um projeto salvador da pátria para ir, de bonezinho na cabeça, cercar na rua carros de boi não aferidos...

Um ano se passou assim, no qual os gasparinhos (menor fração de bilhete de loteria) falharam lamentavelmente. O mesmo dinheiro; zero, zero, zero; o mesmo dinheiro; zero, zero. Os seus rapapés (lisonjas) à Sorte Grande recebiam da grande cortesã apenas esta magra resposta. Tábuas sobre tábuas; carranca amarrada sempre e jamais o sorrisinho de uma “aproximação” para consolo.

Mas um dia...

Nesse dia Venâncio disputava com a esposa, que pedia dinheiro para umas compras.

— Estamos com a louça reduzida a cacos. Xícara de chá, duas e desbeiçadas. De café, três e sem asas. Ontem, quando aquele chato do Freitas esteve aqui, fui obrigada a pedir emprestada uma xícara da vizinha. Veja que vergonha...

Venâncio relutou.

— Mas por que é que quebram a louça? O ano passado, lembro-me, eu mesmo comprei meia dúzia de cada.

Dona Fortunata pôs as mãos na cintura.

— Por que quebram? A pergunta é bem idiotinha... A louça quebra-se porque é quebrável. Se fosse inquebrável não se quebraria. Parece incrível que um homem já indicado para ministro...

— Não admito ironias! Quer louça? Compre com o dote que trouxe...

— Já esperava por essa resposta. Está mesmo uma resposta de ministro... do coronel — concluiu dona Fortunata venenosamente.

Venâncio, engasgado de cólera, ia replicar, quando a porta da sala se abriu e o vendeiro irrompeu como um pé de vento:

— Deixe ver o seu bilhete! Se é o 3.743, deu a tacada!

O improviso do lance transformou em estupor a cólera de Venâncio, que entrou a piscar, numa tonteira, como quem leva porretada no crânio.

— Quê? Que há? — tartamudeava ele. O vendeiro bateu o pé, impaciente.

— O bilhete, homem! Deixe ver o seu bilhete, homem de Deus! Parece estuporado...

Custou a Venâncio encontrar na papelada agrícola que lhe enchia os bolsos o raio do bilhete. Suas mãos tremiam e o cérebro andava-lhe à roda.

Por fim achou-o. Era o 3.743.

Pegara os vinte contos.

Estas revoluções operadas pela sorte em cérebros venancinos não há aí quem as conte. É banho de ópio, é fumarada de haxixe, é gole de cocaína, é bebedeira que rompe toda a velha cristalização dos miolos. A ebriaguez do ouro vale pela soma da essência última de todas as mais ebriedades. Só ela abre a gaiola a “todos” os sonhos e põe o homem leve, com pequeninas asas em cada célula do corpo.

No caso do Venâncio, porém, não houve muita vacilação. Sua diretriz estava traçada pelo insopitável pendor agrícola.

Uma fazenda, uma grande fazenda, a melhor fazenda do município — a fazenda-modelo da zona. Da zona? Do país, por que não? E depois — quem sabe? — o ministério, desta vez de verdade. O mundo dá tantas voltas...

E faria isto mais aquilo, e mais isto e mais aquilo. Meu Deus! Como a fazenda se foi aperfeiçoando, e a que requintes de primor atingiu! Legiões de curiosos vinham de longe visitá-la, e pasmavam. A fama corria, os jornais estudavam-na em artigos longos. Por fim o Governo, impressionado com a voz pública, mandava examiná-la e propunha-lhe compra. Era forçoso que pertencesse ao patrimônio da nação uma coisa daquelas para que todos pudessem aprender na maravilhosa escola as palavras últimas do aperfeiçoamento agrícola.

Mas vendê-la? A um particular, nunca! À nação, sim, coagido pelo patriotismo. Isso mesmo, porém sob uma condição! Oh, sim, uma condição sine qua non: darem-lhe a pasta da Agricultura...

— Porque eu, senhores, farei do Brasil inteiro o mimo que fiz da minha fazenda. Um vergel florido! A nova Califórnia! O paraíso terreal!...

O Governo chorava de emoção e dava-lhe a pasta, sob as aclamações do povo agradecido...

Infelizmente, os vinte contos não eram elásticos e Venâncio teve que arrepiar da vertigem megalomaníaca e adquirir um pequeno sítio aí de trinta contos de réis. Deu quinze à vista e ficou a dever quinze sob hipoteca.

Sítio velho, de terras cansadas, mas isso mesmo queria ele, para estrondosa demonstração do axioma tantas vezes berrado na botica:

— Não há terras más, há más cabeças. Com a química agrícola na mão esquerda e o arado na direita, eu faço o Saara produzir milho de pipoca!

— Mas, Venâncio...

— Não há “mas”, há “más”; más cabeças, já disse. De pipoca!

Tinha agora de provar o asserto.

Começou mudando o nome antigo — Sítio do Embirussu — por este muito mais adiantado — Granja-Modelo de Pomona.

Apesar do lindo nome, o sítio permaneceu a pinoia que sempre fora. Barba-de-bode, guanxuma, saúva, cupins, joveva, geadas — todos os mimos da brasileiríssima deusa Praga.

Em compensação, no tocante ao pitoresco poucos haveriam mais bem arranjados. Tudo velho e musgoso e carcomido, como o quer a estética. Vate de cabeleira que ali caísse desentranhava-se logo em sonetos do mais repassado bucolismo; e o pintor de paisagens encontrava quadrinhos já feitos, encantadores, que era um gosto trasladar para a tela.

As paineiras laterais à casa faziam em setembro o enlevo dos colibris e das abelhas — mas a paina (fibras sedosas de algodão) produzida mal dava para encher um travesseiro.

O pomar, velhíssimo, lembrava um ninho de faunos tocadores de avena (flauta pastoril), laranjeiras de cinquenta anos, pitangueiras altíssimas, ameixeiras musgosas, jabuticabeiras, romeiras — o que há de virgiliano e romântico e sombrio e parasitado. Renda, porém, zero.

Tudo mais pelo mesmo teor.

Venâncio mediu com os olhos penetrantes a grandeza da sua tarefa e sorriu.

Tinha tanta convicção de transmutar aquele bucolismo em fonte de lucros...

Começou pelas aves. Em vez daquele sórdido restolho de galinhame da terra, sem sangue de pedigree, venham Leghorns para ovos e Orpingtons para carne. Imbecil o fazendeiro que não adota as belas raças americanas!

A mesma coisa com os porcos. Nada de canastrões ou tatuzinhos, tardios ou degenerados. Venham o Yorkshire, o Duroc-Jersey!

E venham mudas de boas árvores frutíferas, caquis, ameixas-do-japão, damascos, maçãs, peras, tudo isto com explicações ao eterno nariz torcido da esposa:

— Porque você vê, Fortunata, dá o mesmo trabalho e vale cinco vezes mais. Um ovo de Orpington, por exemplo: quanto vale no Rio? Dois mil-réis; mais que uma dúzia de ovos crioulos!

E venham sementes de capim-de-rodes para as pastagens.

E venha um aradinho de disco, e agora uma semeadeira, e uma carpideira, e uma grade...

E venha isto e mais aquilo — e as novidades vinham vindo e os cinco contos iam indo muito mais depressa do que ele o imaginou.

Tudo isso não seria nada se não viesse também uma coisa bem fora dos cálculos de Venâncio: visitas.

Um belo dia o correio trouxe uma carta do Rio: “... e soubemos que V. está de maré, empacotado pela sorte grande (200 ou 500?) e já montado em linda fazenda. E como andamos todos aqui muito amarelos, e a Bibi necessitada, a conselho médico, de ares de campo, lembramo-nos de passar uns dias aí, se o caro parente não levar isso a mal...”.

— “Caro parente”?!...

Venâncio releu a missiva.

— Quem será este novo parente, Ladislau Teixeira? 

Consultou a mulher. Dona Fortunata refranziu a testa.

— Vai ver que é aquele filho da Carola...

— ??

—... que casou por lá com uma tipa de beiço rachado...

— Ahn!...

—... e esteve uma vez em Itaoca um ano atrás.

— Em casa do Estevinho, sei...

— Isso. Um tal Lalau.

— Sei, sei... Mas que diabo de parentesco tem ele comigo? Só se por parte de Adão e Eva...

— Você já reparou, Venâncio, quantos parentes estão aparecendo agora?

— É verdade. Com este, cinco. E amigos, então? Nunca imaginei que os possuísse tantos...

Venâncio respondeu que a casa, casa de pobres, estava às ordens; que viessem. Vieram. Quinze dias depois um trole despejava no terreiro um senhor de meia-idade, sua esposa Filoca, três filhas empalamadas, Bibi, Babá, Bubu, e mais uma preta mucama. Venâncio reconheceu-os vagamente, mas por delicadeza fingiu intimidade.

— Bem-vindos sejam à casa do parente pobre! 

Lalau abraçou-o carinhosamente.

— Não diga isso! Você é hoje a glória da família. Recebeu a recompensa que merecia. Quantas vezes eu não disse à Filoca: aquele nosso parente vai longe, porque quem planta colhe. Não é verdade, Filoca?

Dona Filoca sibilou através do beiço rachado uma confirmação plena:

— É sim! Nós nunca duvidamos do futuro do “primo” Venâncio.

— Ia-me esquecendo... Vieram conosco umas vizinhas, moças muito boazinhas, as Seixas. Não te avisei na carta porque foi coisa de última hora. Devem ser parentas de dona Fortunata, ao que me disseram...

Venâncio interrogou furtivamente a esposa com o olhar e esta respondeu-lhe com um imperceptível movimento de beiço.

Apearam do segundo trole três moças e uma negrinha. Lalau apresentou-as.

— Dona Fafá, dona Fifi, dona Fufu.

As moças abraçaram os fazendeiros com grande cordialidade e abriram-se em louvores às belezas bucólicas.

— Veja, Fifi, que coisa estupenda esta paineira!

— Nem diga! E aquele maravilhoso beija-flor? Que belezinha! Como ficaria bem no meu chapéu azul...

E Babá para Venâncio:

— Que ar, primo! Que pureza de ar! A vida aqui deve ser um encanto. E que apetite dá! Eu, que não como nada, seria capaz de devorar um leitão inteiro hoje!

A Bibi conversava com a “prima” Fortunata:

— Leite há muito, já sei. Fazenda quer dizer fartura. Lá na capital o leite é água de polvilho, e caríssimo! É como os ovos: pela hora da morte e metade chocos. Sua galinhada, quantas dúzias põe por dia?

E a Fifi para a Bubu:

— Pesei-me antes de vir: 49 quilos, veja que miséria! Mas daqui não saio sem alcançar 58! Ah, não saio! O meu peso normal deve ser este, diz o médico. 

Dona Fortunata atendia a todos, sorrindo amavelmente, enquanto Lalau, já no pomar, investia contra as laranjas com fúria de “retirante”.

— A minha conta, quando me pilho num pomar, são três dúzias. Pelo-me por laranjas!

Venâncio, armando cara alegre, dizia-lhe que era chupar, chupar...

Mas lá consigo pensava que naquela toada não venderia aquele ano uma dúzia sequer. Só o Lalau daria cabo da safra inteira em quinze dias...

À decima quinta laranja Lalau parou, entupido.

— Estou por aqui! — grugulejou, riscando no pescoço o nível do caldo.

— Agora, que ninguém nos ouve, diga lá a verdade: duzentos ou quinhentos contos?

Venâncio não teve ânimo de pronunciar a palavra vinte. Também não quis mentir, e marombou (enganou):

— Não chega lá. Tirei apenas uns cobrinhos...

— Está escondendo o leite? Faz muito bem, que isso de arrotar grandeza é transformar-se em “fruteira”: todo mundo pega a aproveitar-se.

E dando-lhe o braço:

— Conselho de velho: defenda os arames, enforque a cobreira! Do contrário, começam a aparecer amigos e parentes que não acabam mais.

Venâncio entreparou pasmado.

— É o que lhe digo — prosseguiu Lalau. — Enquanto não possuímos nada, ninguém se importa com a gente. Mas logo que a maré chega, brotam da terra aproveitadores — como cogumelos!

Venâncio pasmou dois pontos mais, e Lalau, lendo a seu modo aquele pasmo, insistiu:

— É o que lhe digo! Como cogumelos! Você é inexperiente ainda, não tem os anos que tenho, e deve, portanto, ouvir-me. Como parente próximo, zelo pela família e faço grande empenho em abrir os seus olhos contra a caterva (tropa) de parasitas que vai por este mundo de Cristo. Quer saber de uma coisa? Foi por esse motivo que eu vim. Motivo real! O resto foi pretexto, você compreende. Eu disse à Filoca: é preciso abrir os olhos do primo; dinheiro escorrega das mãos como peixe e se lhe não acudo com os meus conselhos, adeus sorte grande! Vê? Foi por este motivo que vim.

Ainda atônito, Venâncio balbuciou umas palavras de agradecimento pela generosa intenção, e Lalau, colhendo nova laranja, continuou:

— Porque, cá comigo, é assim: para salvar um parente não poupo sacrifícios! Ah, não poupo! Vou longe atrás dele, gasto dinheiro, mas aviso-o. Pensa que não foi um sacrifício esta minha viagem? Só de trem, duzentos mil-réis! Mas, como já disse, não olho a despesas. É parente? É amigo? Não olho a despesas. Ah, não olho! Não acha que devo ser assim?

— Está claro! — sussurrou Venâncio.

— Parece claro, mas poucos pensam deste modo e, em vez de sacrificarem um bocado das suas comodidades e virem abrir os olhos ao parente em perigo, sabe o que fazem?

— ?

— Vêm explorá-lo. Vêm ex-plo-rá-lo, primo! Admira-se? Pois saiba que o mundo está cheio de gente assim. Olhe, eu conheço um caso que...

Nessa noite o casal de fazendeiros passou a dormir na cozinha. Tiveram que ceder seu quarto ao Lalau e à esposa. As B... acomodaram-se na sala de espera. As F..., numa alcova. As duas criadas, na despensa. Ficou a casa repleta, tendo a cozinheira de dormir fora, no paiol.

Venâncio perdeu o sono. Altas horas ainda matutava:

— Não sei como está para ser! De um momento para outro, onze bocas a mais...

— E que bocas! — observou dona Fortunata. — Como comem! A tal Fifi, que é um bilro e parece viver de brisas, bebeu um litro de leite para “rebater” meia dúzia de ovos. E sabe o que disse, toda espevitada? “Isto é para começarrrr... O médico mandou-me ir aumentando as doses aox poucox...” Veja você!

— Parece que chegaram da seca do Ceará! Lalau chupou duma assentada quinze laranjas, e das de umbigo...

— Esse não me admiro, que é homem e grandalhão. Mas aquele figo seco da tal prima Filoca? Com partes de enfastiada, foi à cozinha e chamou para o bucho todos os torresmos que eu tinha guardado para você. Dizem que é o ar...

— Ar! Ar! Eu respiro o mesmo ar e nunca tenho apetite. Esfaimados por natureza é o que eles são.

— E depois isto de comer à custa alheia deve ser um regalo! — concluiu dona Fortunata, valente criatura que jamais provara um quitute que não fosse preparado por suas próprias mãos.

O sono custou a vir, mas veio, e com ele um sonho. Sonhou Venâncio que uma nuvem de gafanhotos vinda do Sul se abatera no sítio, deixando-o nu em pelo, sem folha nas árvores, nem soca de capim nos pastos.

Despertou sobressaltado. A manhã ia alta, com réstias de sol a coarem-se pelos vidros. Saltou da cama e foi à janela. Um vulto caminhava rumo ao pomar, de pijama, faca de mesa na mão, assobiando despreocupadamente o pé de anjo.

— Lá vai ele! — murmurou Venâncio. — Lá vai às laranjas-baianas...

— Quem? — indagou a esposa, interrompendo o amarrar da saia.

— Ora quem! O gafanhoto-mor.

E como a esposa fizesse cara de interrogação, Venâncio contou-lhe o sonho da nuvem.

Dona Fortunata concluiu o nó da saia apreensivamente:

— Queira Deus não dê certo!

Deu certo. Nunca um sonho profético antepintou o futuro com maior precisão. Os hóspedes devoraram o sítio do Venâncio em poucas semanas. Foram-se todos os porcos, transfeitos em torresmos, lombo assado e linguiça. Os lindos leitõezinhos que brincavam no terreiro acabaram no espeto, um por um. O mesmo destino tiveram as aves, com exceção do casal de Orpingtons, amarelas, que muito tentou a gula dos hóspedes, mas que Venâncio, por precaução, mandou esconder em casa de um vizinho. Os ovos, porém, se perderam.

— Sabe, — disse dona Fortunata ao marido uma noite (era sempre à noite, na cama, que murmuravam contra a praga dos gafanhotos) — sabe que a ninhada de ovos de raça já se foi?

— Não me diga! — exclamou Venâncio.

— Pois escondi-os num canto, no quarto dos badulaques, mas aquele pau de virar tripa da Bubu meteu o nariz lá e descobriu-os e veio berrando muito lampeira: “Prima, suas galinhas estão botando no quarto dos cacaréus. Olhe que lindos ovos encontrei lá! Duas dúzias: a continha certa para hoje”. Expliquei-lhe o caso, contei que eram ovos de raça, caros, que você reservava para chocar. Sabe o que a bisca respondeu? “Ora, não seja somítica (avarenta). Nós vamos embora logo e suas galinhas ficam por aqui botando ovos pelo resto da vida.”

Venâncio suspirou.

Um mês. Dois meses. Três meses.

No dia em que os hóspedes se foram, Venâncio mais a esposa deram uma volta pelo sítio, em desconsoladora inspeção. Tudo deserto. Nem um frango no galinheiro, nem uma goiaba no pomar, nem um porquinho na ceva.

— Comeram até o cachaço! — murmurou Venâncio, sacudindo a cabeça. Na horta, as leiras de couve só apresentavam talos esguios — folhas nenhuma. Os pés de abóbora davam dó: nem uma aboborinha, nem um broto...

— Como eles gostavam de cambuquira! — recordou dona Fortunata. 

Finda a inspeção, um olhou para o outro, com desanimadíssimos focinhos.

— E agora? — indagou a mulher.

— Agora? — repetiu Venâncio. — Agora é fazer a trouxa e tocar para Itaoca antes que morramos de fome.

— E volta você para o empreguinho?

— Que remédio? Os “primos” devoraram a carne; tenho que roer o osso.

E foi graças ao apetite daqueles bem-aventurados primos que Itaoca viu reintegrar-se em seu seio um precioso elemento social. As palestras da botica andavam mortas, e sempre que se ventilava um ponto agrícola todos lamentavam a ausência do argumentador seguro, que sempre detivera com tanto brilho a palma da vitória.

Mas a volta de Venâncio foi uma decepção. O antigo entusiasmo murchara-lhe e nunca mais em sua vida piou sobre o tema favorito. E se acaso falavam perto dele em pragas da lavoura, geada, ferrugem, curuquerê ou o que seja, sorria melancolicamente, murmurando de si para si:

— Conheço uma muito pior...

E conhecia.

Fonte: Monteiro Lobato. O macaco que se fez homem. Publicado originalmente em 1923. Disponível em Domínio Público. 

Recordando Velhas Canções (Lua Branca)


Compositora: Chiquinha Gonzaga
(moda, 1911)

Oh, Lua branca de fulgores de encanto
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo
Oh, Vem tirar dos olhos meus o pranto
Oh, vem matar essa paixão que anda comigo

Oh, por quem és desce do céu, oh, Lua branca
Essa amargura do meu peito, oh, vem, arranca
Dá-me o luar da tua compaixão
Oh, vem, por Deus, iluminar meu coração

E quantas vezes lá no céu me aparecias
A brilhar em noite calma e constelada
A tua luz então me surpreendias
Ajoelhado junto aos pés da minha amada

E ela a chorar, a soluçar, cheia de pejo
Vinha em seus lábios me ofertar um doce beijo
Ela partiu, me abandonou assim
Oh, Lua branca, por quem são, tem dó de mim
Ela partiu, me abandonou assim
Ó, Lua branca, por quem são, tem dó de mim 
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A Melancolia e o Consolo da 'Lua Branca' de Chiquinha Gonzaga
A canção 'Lua Branca', composta pela pioneira Chiquinha Gonzaga, é uma obra que transborda sentimentalismo e melancolia. A letra da música evoca a Lua como uma entidade capaz de oferecer consolo e alívio para as dores de um coração apaixonado e sofredor. A figura da Lua, tradicionalmente associada à feminilidade e ao amor, é invocada pelo eu lírico como uma confidente e uma fonte de compaixão diante do abandono amoroso que enfrenta.

A repetição do apelo à Lua para que desça do céu e alivie a amargura do peito do narrador reforça a intensidade do seu sofrimento. A Lua é personificada e recebe um pedido quase desesperado por empatia e luz, elementos que poderiam mitigar a solidão e a dor da perda. A música também remete a lembranças de um passado feliz, quando a luz da Lua testemunhava momentos íntimos e amorosos entre o eu lírico e sua amada. Essa recordação torna a ausência ainda mais pungente e a necessidade de consolo ainda mais urgente.

Chiquinha Gonzaga, uma compositora brasileira do século XIX, foi uma figura revolucionária tanto na música quanto na sociedade de sua época. 'Lua Branca' reflete não apenas o estilo romântico da época, mas também a capacidade de Chiquinha de expressar emoções profundas e universais através de sua música. A canção se tornou um clássico da música brasileira, eternizando a sensibilidade e a genialidade de sua autora. 

Arthur Thomaz (Lançamento do livro de trovas “Rimando Ilusões)

No ano de 2024, o escritor Arthur Thomaz lança “Rimando Ilusões”, onde ele expõe seu talento e se mostra, verdadeiramente, um poeta trovador. 

A seguir, uma pequena entrevista com o autor, realizado pela Bueno Editora:

BUENO EDITORA: Como você conheceu a trova? 

ARTHUR THOMAZ: Conheci através da amiga Vânia Figueiredo. Além dela, tenho outros amigos trovadores, como o José Feldman e a Therezinha Dieguez Brisolla

Essa mestra foi essencial no processo de revisão de “Rimando Ilusões”. 

BUENO EDITORA: Qual é a história e as características da trova? 

ARTHUR THOMAZ: A trova existe, pelo menos, desde o século XII. Ela pode ser lírica, filosófica, circunstancial, humorística, entre outros tipos.

BUENO EDITORA: Por que você decidiu fazer um livro com este tema?

ARTHUR THOMAZ: Porque a trova pode tratar de diversos assuntos, como amor, amizade, situações do cotidiano, entre outros, de forma leve ou crítica. São versos que os leitores vão gostar e se identificar.

Mais

Além de “Rimando Ilusões”, Arthur Thomaz escreveu outros livros em parceria com a Bueno Editora, entre eles, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”, que será lançado em breve.

PREFÁCIO DO LIVRO POR JOSÉ FELDMAN

Há pouco tempo fui apresentado virtualmente a Arthur Thomaz, por uma amiga de muitos anos, Therezinha Brisolla. Tendo embarcado há cerca de 40 anos na nau das trovas, tenho orientado muitos trovadores, e entre uma orientação e outra para suas trovas, fomos criando um vínculo de amizade. Militar reformado, agora engajado no pelotão de trovadores, Arthur já possui em suas veias a verve poética de sua mãe. São apenas dois anos desde quando começou na arte trovadoresca, um garoto ainda no mundo da trova, mas que vem se destacando e tem se dedicado com afinco à arte de trovar.

Deus cria a lua e as estrelas
e uma pergunta o inquieta:
- Quem poderá descrevê-las?
Então, Deus... cria o poeta!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Neste seu segundo livro de trovas, mostra a sua alma, pois como já dizia o poeta português Fernando Pessoa (1888 – 1935 ) "a trova é o vaso de flores que o povo põe na janela de sua alma.” Arthur Thomaz se expõe ao verter em suas trovas o que lhe vem do coração, numa aquarela de emoções: sua paixão, seus desejos, seus sonhos, suas crenças de que sempre haverá esperança para o mundo, e que o amor é a mais poderosa arma que o ser humano pode e deve utilizar.

Pelo tempo, pela vida,
tu corres tecendo teias.
Tu corres, trova querida,
por dentro das minhas veias!
ABEL B. PEREIRA

É um batalhador que não foge aos desafios que tem diante de si. Com perseverança segue avante, mas os obstáculos que se deparam frente a ele, não fazem com que desvaneça seu intento. Não importando quantos tombos levar, Arthur Thomaz se levanta e segue com sua fé inabalável e faz com que embarquemos neste seu novo livro de trovas, e o desejo de continuarmos navegando nesta fragata de versos sempre adiante.

José Feldman
UBT – Delegacia de Campo Mourão/PR

sábado, 25 de maio de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 47: Nuances de um Poemas

 

José Gomes Ferreira (A Festa ficou-me barata)

Por mais que puxe pela cabeça, ainda não consegui compreender como coube tanto tempo em poucos segundos.

Com efeito, no intervalo que vai desde esta pergunta lacônica “Lápis?” à prontidão da resposta afirmativa, tive a acuidade surpreendente de descobrir que o meu interlocutor, dono da capelista (loja de quinquilharias), se chamava Jerônimo, ostentava aquela carranca de altivez solene e morrera-lhe há pouco um filho tuberculoso, pelo qual andava de luto na vestimenta e nos olhos.

Há momentos assim: em que o tempo se dilata e, bruscamente, não sei por qual misterioso toque de atmosfera, os atos mais banais da vida se tornam extraordinários. Comprar lápis, por exemplo. É extraordinário estar em cima de uma bola que anda à roda do sol, e comprar lápis ao sr. Jerônimo, ali, de pé, atrás do balcão — alto, vasto e fastiento.

— Que marca prefere V. Exa.?

Respondi qualquer coisa dúbia de propósito para me esconder no silêncio de não haver resposta.
Na lojinha entrara outra freguesa: uma senhora de meia idade, amargurada de profissão, boca sempre em molde de suspiro e olhos tíbios, onde até a inveja de viver soçobrara já.

Lacrimejava:

— A minha sobrinha está muito ruinzinha... E com 19 anos, calcule! Tão nova e já tuberculosa como o seu filho...

O sr. Jerônimo, a alinhar as caixas dos lápis, abanou a cabeça agastado da comparação que lhe ofendia não sei que estranho sentimento aristocrático de orgulho paterno:

— Como a de meu filho, não, minha senhora. Há tuberculoses e tuberculoses... E a do meu filho era galopante. E que galopante! O médico, pelo menos, disse-me que nunca tinha visto outra assim. Que galopante!

E a sua voz resmungava no tumulto cavo de quem nos queria sugerir o tropear aflito de um bicho sangrento de escamas negras a devorar espaço, a devorar vida, a devorar alma, a apagar olhos com as patas...

— Que galopante!

Depois, desenhou com as mãos o gesto redondo do voo dos corvos sobre um campo de matança:

— Tive tão pouca sorte com os filhos que nem calcula! Nasceram todos fraquinhos do peito e por mais bifes que lhes desse nunca conseguiriam arribar. Desde miúdos, bifes e mais bifes. E de lombo! Cada bifada de meter respeito. “Ó homem — dizia a minha mulher (coitadinha! uma autêntica mártir dos filhos!) — ó homem: olha que a gente se arruina com tanta carne! Já viste a conta do açougueiro?” “Deixá-lo! Paga e não bufes. Chega-lhes bifes! Não poupes na bifada!” Mas, qual! Todos uns fracotes, uns magricelas.

E numa conclusão em que a melancolia da voz acentuava mais de força vaidosa o volume do corpanzil espesso: – Nenhum saiu a mim!

Seguiu-se um, curto silêncio, perturbado apenas por aquele raio de sol que vinha da vitrine e atravessava a loja vestido de poeira.

A senhora de meia-idade gozou, então, a tristeza de exclamar:

— Coitadinho! Não faz ideia do desgosto que senti quando soube da morte do seu filho. Infelizmente não pude assistir ao enterro. Até lhe queria pedir desculpas...

Como ela se delícia a fingir ternura! Não lhe deve restar outro prazer no mundo senão este de sorver as desgraças alheias com a cara pintada de alma, aos beijinhos no pó-de-arroz lívido das senhoras viúvas pé ante pé nas veladas dos mortos, a cochichar nas visitas de pêsames em todos os serões lúgubres, onde pode ser ridícula à vontade sem que ninguém lhe estranhe a velhice, porque as rugas até ajudam a exprimir melhor a dor, sobretudo a que ninguém sente, mas todos gostam de ver estampada nas faces dos outros. E o lápis? Esperem! Eu estou a comprar lápis! Preciso de formular uma opinião qualquer a respeito dos lápis:

— Não tem outros mais moles?

O sr. Jerônimo, sem se dignar reparar em mim, tirou da prateleira uma nova caixa azul que pousou no balcão.

E, sempre voltado para a freguesa, a pôr uma impossibilidade física entre aquela pobre mulher insignificante e o seu orgulho em que resvalavam todas as desculpas:

- Não assistiu, nem podia ter assistido, minha senhora, porque o enterro não se realizou em Lisboa, mas nas Caldas, na terra dos avós do pequeno. Coitados! Faziam tanto gosto em que o neto se enterrasse ao pé deles! Não sei bem para quê... Para lhe cuidarem da cova, suponho eu. E regarem-lhe as flores... Mania de velhos!

A sua voz tornou-se de súbito singular: mistura sombria de indiferença e petulância com um toquezinho sinistro de alegria comercial de quem atira dinheiro imaginário à cara de dois imbecis:

— E ainda bem, porque dessa maneira poupei muito dinheiro! Se o sepultasse no Alto de S. João, sabe por quanto me sairia a brincadeira? Aí por uf! 5 a 9 contos!... Quanto a trasladação nem falar nisso é bom... Era coisa para 16 contos bem puxados... Assim a festa ficou-me barata!

— Como? — balbuciou a senhora de meia-idade, sem entender, perdida naquele labirinto de contos e de festas, de confusão com o cadáver de um filho.

— Oh! foi tudo muito bem calculado! — explicou o sr. Jerônimo com voz brilhante de comércio inútil. — Foi tudo muito bem calculado!...

Sim, estes lápis ainda me parecem duros. Quero outros, ouviste? Mostra-me outros. Mas, nada de pressas, hein? Tira devagar as caixas da prateleira. Mais devagar, ainda. Dá-me tempo de ouvir a história até o fim.

— Quando vi o meu filho muito mal, chamei o médico à parte e perguntei-lhe: “Então, doutor? Diga-me, de homem para homem: ainda tem esperanças de o salvar?” O doutor olhou-me contristado e confessou-me: “Está por pouco. Dura no máximo três dias.” Três dias? Meu Deus! Só três dias? Fiquei aflito como pode imaginar. Mas, depois de refletir maduramente no caso, tomei uma resolução. O melhor era pegar no pequeno e levá-lo o mais depressa possível para as Caldas enquanto estivesse vivo, para depois evitar a trasladação. E assim fiz. A mãe ainda choramingou. Que era uma barbaridade, que era isto, que era aquilo... Mas que percebem as mulheres de negócios?

“Psiu! Claudina! Quem manda cá em casa sou eu!” Metia-a na ordem com dois berros e lá partimos para as Caldas. Coitadinho! Mal podia sustentar-se nas pernas. Tão definhado! Só tinha pele e osso. Conseguimos vesti-lo à custa de injeções de cânfora, para aguentar o coração, e mesmo assim com mil cuidados, parando a cada momento, não fosse o diabo tecê-las... Por fim, de gravata à roda do pescoço e a dançar numa vestimenta larguíssima, lá o instalamos numa carruagem de primeira — coitadinho! — com uma barba tão grande, tão grande, que até metia medo!... Quando chegamos às Caldas, ia branco como um lençol e quase que não respirava. O avô, assim que o viu, teve um baque, fez-se muito pálido e perguntou-me em voz baixinha: “está morto?”

E o sr. Jerônimo repetia, numa voz ciciante, como filtrada através da fluidez dos cristais do sonho: “está morto?”

— E estava? interrogou, ansiosa, a senhora de meia-idade.

— Não, não estava. Mandei logo chamar um médico para me livrar de responsabilidades... Não estava... Só faleceu no dia seguinte, coitadinho!

Calou-se.

Entrementes tinham entrado na lojinha várias pessoas em compras de fitas de linho, fósforos, carrinhos de linhas, mais isto, mais aquilo, e todos pareciam ouvir aquela história com a naturalidade normal de haver vida todos os dias. Só eu continuava a achar tudo extraordinário.

— Quanto é?

— Tanto.

Enquanto procurava no bolso o dinheiro para pagar os lápis, passou-me repentinamente pela cabeça esta ideia estapafúrdia: e se eu desse um salto, a pés juntos, sobre o balcão, deitasse as mãos ao pescoço do sr. Jerônimo, e o censurasse numa voz fria de boca de cadáver: “quem julgas tu que eu sou, seu Malandro? Um freguês como os outros, não? Um palerma qualquer que quer lápis moles, bem? Pois enganas-te! Sou um espião, ouviste? Um espião disfarçado. E vou espalhar com a tua história relés nos jornais, com nomes e tudo, sob este título: Sensacional: um malandro macabro que trasladou o cadáver do filho em vida! Percebeste?”

Mas, em vez disto, sorri-lhe. E para completar a desorientação, quanto o ar, Jerônimo me entregou os lápis embrulhados (a festa ficou-me barata!) pareceu-me ver-lhe nos olhos uma ternura qualquer de lágrimas... uma névoa funda de dor.., um brilho de comoção secreta.., ou seria tudo ilusão dentro de mim?

Paguei e saí da capelista.

Cá fora, as ruas de sempre, o sol de sempre, as pedras de sempre, as casas de sempre, os homens de sempre, o espanto de sempre. Tudo normal, tudo sonolentamente normal.

Apenas na esquina do costume, uma velha, feia de miséria, carranca de cera com pelos, pedia esmola para o filho idiota, de olhos enormemente parados, aos guinchos dentro dum carro de madeira:

— Ó meu rico senhor: dê-me uma esmolinha para o meu filhinho que é toda a paixão da minha vida! Dê-me...

Fixei-a com o olhar cúmplice de quem sabe perfeitamente o que valem essas grandes paixões da vida. E dei-lhe dois tostões, (A festa ficou-me barata!)

Tudo normal, tudo absurdamente normal. Só o pobre monstro, no carrinho, continuava a soltar sons inarticulados, e a mirar e a remirar as mãos, no espanto de haver mãos.

Fonte: Diaulas Riedel. Maravilhas do Conto Português. Publicado em 1958.

Livros Recebidos

Últimos livros publicados enviados pelo correio ou entregues em mãos pelos autores,  cujo conteúdo estou publicando gradativamente no blog:

A. A. de Assis. Histórias da história de Maringá.
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: insondáveis.
Arthur Thomaz. Rimando Sonhos: trovas.
Carolina Ramos. Meus bichos, bichinhos e… bichanos
Daniel Maurício. Alma lírica: poesias.
Daniel Maurício. Amar é: poesias.
Daniel Maurício. Cacos e retalhos: poesias.
Daniel Maurício. Gotas poéticas.
Daniel Maurício. Leve-me: poesias.
Daniel Maurício. Miudezas do coração: poesias.
Daniel Maurício. Mosaico de sentimentos: poesias.
Daniel Maurício. Olhares: poesias.
Daniel Maurício. Origamis de palavras: poesias.
Daniel Maurício. Palavras de cheiro: poesias.
Daniel Maurício. Poesias da madrugada.
Edy Soares. Sonetos sonantes.
Lucília Alzira Trindade de Carli. Canteiros: trovas.
Luiz Poeta. Trov…ansi…arte.
Pedro Cardoso & Goulart Gomes. Poemas encolhidos: poetrix.
Renato Benvindo Frata. Contos infantis.
Renato Benvindo Frata. Fragmentos: 102 crônicas.
Vanice Zimerman Y Gustavo Henao Chica. Saudade… : poesias.

Meus agradecimentos aos autores.

Luís da Câmara Cascudo (A Princesa Jia)

Um casal tinha três filhos já em idade de trabalhar, mas, sendo muito unidos, não se separavam. Um dia o velho chamou os três filhos e disse que eles precisavam procurar a vida pelo mundo de meu Deus. No fim de um ano todos deviam voltar para a casa dos velhos.

Partiram os rapazes e logo adiante viram que a estrada se abria em três veredas. Cada um tomou a sua. José pela esquerda, Pedro pela do meio e João pela direita.

José e Pedro chegaram a cidades muito grandes e bonitas e acharam trabalho em palácios onde duas moças viviam e se engraçaram deles.

João andou, andou, andou, dormindo no mato, e dias depois viu um palácio deteriorado, feio, sujo, no meio de umas pedras escuras. O lugar era esquisito que fazia medo. João estava tão cansado e faminto que parou na porta e bateu palmas sem que ninguém respondesse. Bateu, bateu, e uma voz grossa roncou lá de dentro:

– Vá entrando!

João encontrou uma sala enorme, onde estava uma rede armada e uma mesa comprida, coberta de teia de aranha, picumã e porcarias. A voz continuou:

– Descanse...

João tirou os sapatos, deitou-se e pegou numa madorna (sonolência) quando a voz acordou-o:

– Jante!...

Jantou muito bem, havendo do bom e do melhor. Depois a voz ensinou onde era o quarto, com todos os preparos. João dormiu como um anjo. De manhã chamaram para o café, o almoço, a janta e a ceia. Passava o dia andando os arredores e lendo uns livros, pretos de poeira, que encontrara.

Na hora da ceia, tempos passados, ouviu os baques pesados no corredor e apareceu uma Jia (rã) que não tinha fim, grandona, gorda, repelente. Veio pulando, toda mole, escorrendo baba, até perto de João e sentou-se juntinho. O moço ia se esgueirando.

– Está com nojo de mim, João?

– Não senhora, dona Jia!

Conversaram e a Jia disse:

– Amanhã é o dia que você deve comparecer na casa de seus pais. Encontrará um cavalo selado junto da porta.

Na manhã seguinte, João mudou a roupa, almoçou e viu um cavalo selado que não tinha lugar para mais enfeites ricos. Montou-se e ia dando de rédeas quando a Jia apareceu, capengando:

– Espere aí, João. Leve esta lembrança para sua mãe.

Deu um saquinho, muito sujo, encardido, amarrado por um cordão imundo. O rapaz guardou o troço no bolso e galopou para casa. Antes de o sol se pôr avistou a casa e apeou-se no alpendre, onde seus pais e irmãos conversavam.

Jantaram muito satisfeitos e depois José e Pedro entregaram os presentes que traziam, roupa, calçado, chapéus, dinheiro. Os velhos agradeceram.

– E você, João, que me trouxe da viagem?

João entregou o saquinho de nada. Os irmãos riram como uns perdidos, mangando do tamanho do presente. A velha, recebendo o saquinho, sacudiu-o para fazer cair o que estivesse dentro. Quase não acabava de sair moedas de ouro, brilhantes, pedras preciosas, tudo de muito. Os velhos ficaram assombrados. E disseram, dançando:

José vai casar bem,
E Pedro casa melhor,
Mas João...
Passa-lhe a mão!

Os irmãos ficaram zangados. Quando anoiteceu despediram-se e João montou o cavalão que corria como o vento. Num ruflo estava diante do palácio velho e escuro. João apeou-se e entrou. Encontrou o banho pronto e depois a janta. Jantou e dormiu e continuou a mesma vida, conversando com a Jia, cada vez mais nojenta e amorosa.

Um ano se passou e a Jia lembrou que no dia seguinte devia estar o moço na casa dos pais, levando uma lembrança feita pela noiva.

Sucedeu como no ano anterior. No momento em que João ia picando o cavalo nas esporas, apareceu a Jia e lhe deu um vidrinho, com a boca quebrada, cheio de uma água que parecia lodo. O rapaz recebeu para não fazer desfeita e voou para casa.

A festa foi a mesma. José e Pedro traziam finos presentes bordados pelas noivas, em seda e ouro, representando passarinhos e estrelas, tudo faiscando de beleza. Quando chegou a vez de João e este entregou o vidrinho, foi uma risadaria geral. A velha destapou o vidrinho e sacudiu a água em cima da cama porque se fosse cheiro havia de servir. Imediatamente a cama ficou lastrada das maiores belezas do mundo, camisas, toalhas, lençóis, fronhas, todos os arranjos de casa, nuns bordados tão delicados e de cores tão feiticeiras que mão de gente não podia ter feito aquele serviço. Os velhos, não se contendo, dançaram:

Pedro vai casar bem!
José vai casar melhor!
Mas João...
Passa-lhe a mão!

Os manos fizeram cara feia, não achando graça na cantiga dos pais. Assim que anoiteceu se despediram. Os velhos disseram que, na próxima vez, deviam trazer as esposas e ficar uma semana, porque já estavam ricos e queriam hospedar os três filhos e as três noras com gosto e agrado.

Foram todos embora e João seguiu na vida velha no palácio feio ao lado da Jia.

Um ano depois, a Jia avisou que na manhã seguinte seria o dia de João se apresentar com a noiva.

– Eu não tenho noiva!

– Tem, sim senhor! Sou eu!

João tinha vontade de fugir mas não teve coragem de pagar o bem com o mal e, com pena da Jia, ficou calado. Quem cala consente.

Mal amanheceu o dia, e, depois do café, João encontrou, em vez do cavalo bonito e bem arreado, uma égua lazarenta, coberta de perebas e de moscas varejeiras, com a sela, bridas, rédeas, rabicho, tudo consertado com pedaço de cordão, caída de sujeira. Mesmo assim montou e saiu. Mal a égua dera os primeiros passos, tropeçando com a própria sombra, João ouviu um barulho desesperado atrás de si e, voltando-se na sela, reparou que todos os animais e aves o acompanhavam como se fizessem uma procissão. Galinhas, galos, perus, patos, guinés, gansos, porcos, tudo vinha seguindo, misturado, numa algazarra de carnaval. E o pior é que a Jia apareceu montada na garupa da égua, muito de seu, como se estivesse num trono. O pobre João só imaginava a mangação dos irmãos e do povo da rua quando fosse atravessar a povoação em que residiam os pais. Mas ficou conformado com a vontade de Deus, que lhe dera um bicho tão feio para noiva.

Com o trote do cavalo, a Jia desequilibrava-se e vinha ao chão, num estalo. Tornava a subir para a garupa da égua e ficava, agarrada como um cipó, até que despencava e ia bater na areia. Na terceira queda, desistiu de viajar na égua e chamou o galo para servir-lhe de montada. O galo parou e a Jia começou a lutar para montar-se no pescoço dele. Luta que luta, sobe e desce e João, esperando, achou tanta graça naquela cena mas teve tanta piedade que saltou do animal e veio, rindo, ajudar a Jia a se acomodar em cima do galo. Assim que ele colocou a Jia onde ela queria ficar, ouviu-se um estrondo e passou um clarão azul, tão forte, que cegava. João fechou os olhos, deslumbrado, e quando os abriu, estava diante de uma princesa bonita como uma estrela, sentada numa carruagem dourada, com seis cavalos brancos e um mundo de gente vestida de seda, bordada de ouro e tremendo de brilhantes, esperando. Era um cortejo tão faiscante que João não podia acreditar que fosse verdadeiro.

A princesa sorrindo disse:

– Eu fui a Jia que não recusaste para noiva e nunca fizeste pouco de seus presentes e feiúra. Estou desencantada e serei uma esposa fiel e amante. Esses são meus criados e estavam todos encantados.

A égua perebenta virara um cavalo gordo e espelhante, coberto de arreios que valiam uma riqueza. João montou e veio com aquele povão, estrada a fora, até sua casa, onde seus pais e irmãos o receberam como um rei coroado.

Fez-se o casamento, com grandes festas, e João foi morar no palácio velho, agora novo e cheio de luzes e de criados, sendo muito feliz.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Romance de Uma Caveira)


Compositores: Alvarenga, Ranchinho e Chiquinho Sales
(Valsa Humorística – 1940)

Eram duas caveiras que se amavam 
e à meia-noite se encontravam 
pelo cemitério os dois passeavam 
e juras de amor então trocavam.

 Sentado os dois em riba da lousa fria 
a caveira apaixonada 
assim dizia que pelo caveiro de amor morria 
e ele de amores por ela vivia.

 Ao longe uma coruja cantava alegre 
de ver os dois caveiro assim feliz 
e quando se beijavam em tom fúnebre 
a coruja batendo as asa pedia bis.

 Mas um dia chegou de "pé junto" 
um cadáver, um defunto 
E a caveira por ele se apaixonou 
e o caveiro antigo abandonou.

 O caveiro tomou uma bebedeira 
e matou-se de modo romanesco 
por causa dessa ingrata caveira 
que trocou ele por um defunto fresco.
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Na versão de Alvarenga e Ranchinho alguns eixos norteadores da canção ficam bem claros. Primeiro, se trata de uma seresta em compasso ternário (o mesmo compasso utilizado em uma valsa) tocada em um ritmo lento que constitui um elemento estético muito forte estabelecendo uma primeira relação entre a melodia, harmonia e letra. Outra característica da música é por ser cantada em uníssono sendo que a segunda voz (Ranchinho) só entra em um segundo momento da letra, no entanto, sem harmonizar com o vocal principal apenas dobrando a mesma linha melódica. A harmonia da canção em tom menor é outro item indispensável para alcançar o tom “fúnebre” que é proposto pelos artistas. Aliás, quando essa se altera para um tom maior, ela se relaciona diretamente com a letra da canção tendo em vista que é nesse momento da narrativa em que acontece a novidade da chegada do terceiro personagem: o “defunto fresco”.

Nos primeiros segundos da gravação da dupla Alvarenga e Ranchinho, escutam-se gritos e uivos de certo modo fantasmagóricos acompanhados por sons dissonantes e intencionalmente sombrios vindos de um acordeon que além de preparar o ouvinte para o tema central da canção mostra um dos fatores fortes da dupla: a questão da performance. 

A letra da canção possui uma narrativa linear contando uma história simples com começo, meio e fim. Até a terceira estrofe a canção fala de um casal de caveiras que viviam apaixonados. O cenário sombrio pode ser observado na letra quando os autores, além de já indicar o romance entre dois seres humanos mortos, usam de elementos como o local do romance (cemitério), o horário em que os “dois se amavam” (meia noite) e ainda o bater das asas da coruja (ave que no imaginário popular ajuda a compor o tom fúnebre proposto). A história sofre uma brusca mudança na terceira estrofe quando um “cadáver novo” chega ao cemitério fazendo com que a caveira se apaixonasse por ele configurando assim um triângulo amoroso fúnebre. 

O interessante de observar nesse momento é que justamente na estrofe em que ocorre uma mudança brusca no enredo, o tom da música também muda. Antes, em tom menor a canção seguia linear contando o romance entre as duas caveiras. Todavia, com a chegada do defunto novo a canção alterna para um tom maior, chamando a atenção do ouvinte para a novidade que ocorre na letra e em sua narrativa, assim como na harmonia da música. De um modo geral a letra da canção apresenta um tom humorístico por se tratar de um romance existente entre dois indivíduos que normalmente não integrariam qualquer enredo amoroso.
(Fonte: Carlos Gregório dos Santos Gianelli, trecho do artigo A Resignificação da Canção “Romance de uma Caveira” de Alvarenga e Ranchinho, Universidade de São Paulo, 2012, no Encontro Internacional de Música e Mídia)

Como Escrever uma História Curta e Engraçada – 4, final


Revisando a história

1. Deixe o conto de lado por um tempo, antes de revisá-lo.

A pior coisa que um autor pode fazer é seguir imediatamente para a revisão após terminar de escrever um conto. Os escritores precisam de algum tempo longe do projeto para que a obra não esteja tão fresca em suas mentes e (idealmente) para que não estejam tão emocionalmente ligados a cada detalhe do enredo.

Após terminar de escrever, espere por pelo menos uma ou duas semanas antes de revisar a história. Se possível, tente esperar por um mês para poder criar uma distância significativa entre o enredo e você.

Considere pedir a um familiar ou amigo de confiança para ler o conto. Peça para que ele seja honesto e crítico, e enfatize que deseja saber tudo o que não está funcionando bem no enredo e por quê.

Ler a história com novos olhos vai ajudá-lo a encontrar erros que talvez tenha deixado passar.

Quando a trama está fresca na sua cabeça, é fácil preencher as lacunas com tudo o que você sabe sem perceber que certas informações foram omitidas no texto. Além disso, será mais fácil eliminar elementos da história se você esperar por algum tempo antes de revisar o conto. Talvez o autor esteja apaixonado por uma cena mas, depois de esperar por algumas semanas, perceba que ela não é tão relevante quanto ele acreditava.

2. Lembre-se do que desejava realizar no início do projeto.

Qual o ponto central do conto?
Você tentou destacar alguma situação social real? 
Tentou abordar algum aspecto da natureza humana? 
Tentou retirar humor de situações e experiências pessoais?

Independentemente das suas intenções, lembre-se delas antes de seguir com o processo de revisão.

Mantendo as intenções originais em mente, você saberá o que esperava fazer com a história e conseguirá avaliar se atingiu ou não esse objetivo.

Considere se o tom da trama corresponde às suas intenções e aos eventos gerais do conto.

3. Esclareça quaisquer elementos confusos.

Esse é um motivo importante para deixar a história de lado por um certo tempo antes de revisá-la. Quando acaba de escrever um conto, o autor tem uma probabilidade menor de encontrar qualquer elemento que possa confundir o leitor, no entanto, você poderá encontrar seus erros caso se dê tempo suficiente.

A confusão pode surgir do conteúdo da história (ou da falta dele), ou resultar de uma transição ausente ou mal executada. As transições devem conectar uma cena à cena seguinte, o capítulo anterior com o próximo e assim por diante.

Uma boa transição encerra a cena anterior e guia suavemente o leitor para a cena seguinte.

Um exemplo de uma transição entre duas cenas poderia ser algo nas linhas de: "Ele a observou em silêncio durante toda a noite, até que ela desapareceu na escuridão. Na manhã seguinte, ele continuou olhando para o horizonte, mas sabia que ela já estava a meio caminho de casa".

Peça para um amigo revisar o conto e tentar encontrar qualquer detalhe confuso ou que não faça sentido.

4. Edite a história para corrigir os erros.

A edição deve ser considerada um passo separado da revisão. Rever o conto envolve reescrever certas partes e eliminar elementos que não funcionem bem. A edição, por outro lado, envolve principalmente a correção dos erros de ortografia e gramática.

Tente encontrar erros de ortografia, gramática ou sintaxe, orações muito longas ou fragmentadas, erros de pontuação e linhas de diálogo muito fracas.

Use o corretor ortográfico do computador ou peça para um amigo com bastante talento para edição dar uma olhada no seu conto.

Tente ler a história em voz alta. Às vezes, pode ser mais fácil ouvir um erro quando o falamos em voz alta do que quando apenas o lemos em silêncio.

DICAS

Não desista! Caso esteja com dificuldade, faça uma pausa e comece novamente.

Não utilize palavras pouco comuns, para que não quebre a comicidade. Palavras difíceis ou não utilizadas cotidianamente podem fazer o leitor quebrar a cabeça para entende-las, tornando o conto cansativo, fazendo com que ele perca interesse no conto. Você tem que prender o leitor no conto para que ele leia até o fim. 

Lembre-se de que os contos nunca são perfeitos logo de cara. O trabalho de um escritor envolve a desconstrução e aperfeiçoamento de suas obras.

Peça para um amigo próximo, em quem você confie e cujas opiniões valorize, ler o conto. Pergunte quais partes ele acha que funcionam bem e quais partes precisam de revisão.

Nunca roube o trabalho de outra pessoa, incluindo piadas e trechos escritos.

Fonte> wikihow 

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Vanice Zimerman (Tela de versos) 36

 

Newton Sampaio (Trem de subúrbio)

Calixto interrompe a discussão, enterra o chapéu na cabeça, cai no mundo. 

Esbarra nos homens que passam.

O bonde apinhado também esbarra nele. Por um triz teria os pés esmagados.

Procura um cigarro. No bolso não há cigarros.

Procura o relógio. O relógio mostra o ponteiro pequeno bem em cima do número 3. Chega à estaçãozinha. Só o tempo de entrar e o trem sair.

O maquinário rodando lhe dá o gosto longínquo de desaparecimento, de evasão.

Evasão... Longo tempo lhe dança no cérebro, o termo. Evasão... Fugir da vida...

Mas a vida florescia em tudo, feito milagre permanente. Florescia na paisagem se mexendo sem parar. E no cheiro da máquina vomitando fumaça. E na promiscuidade do vagão, — do vagão cheio de gente se abanando, de cores se exibindo, de perfumes baratos se misturando como os donos.

Ao lado, volumosa ruiva tem os quadris maltratados pela cinta apertadíssima. Perto da ruiva, um velhote percorre as letras de um vago pasquim suburbano. O velhote lê. Mas não fala.

Quem fala toda a vida é aquele rapaz de bigode lustroso. Transmite, ao companheiro, imaginárias peripécias do último jogo de futebol.

O companheiro guarda um interesse imenso na história. Não é como a moça de boina azul que não dispensa atenção a nada.

Ela é bonita, está no segundo banco, e olha, e olha.

No mundo existem milhares de moças — de boininha azul ou sem boina — que fazem a mesma coisa. Que têm esse jeito triste, distante. Que espiam silenciosamente. Com vontade de segurar nas mãos aquilo que corre do lado de lá das janelas. Mas as janelas têm vidraças que separam o corpo das moças dos apelos que correm e se sucedem.

É cheia de vidraças, a vida das moças. Por isso há moças de boina espiando, tristinhas. Espiando com olhos parecidos com os de Calixto. 

Os olhos de Calixto estão vermelhos e molhados. Por causa de uma faísca impertinente. A faísca obriga-o a esfregar as pálpebras, muitas vezes.

Esfrega, esfrega. A ruiva pensa que o rapaz havia chorado. Será que as matronas gordas pensam coisas exatas? Gravíssimo é o problema, cidadãos!

Apesar do problema, o garoto louro do primeiro banco continua chupando o seu caramelo. E se sujando também. Até o fim. Depois, a mãe limpa o rostinho dele. Como agradecimento, o garoto começa a fazer travessuras. Salta no corredor. O trem dá uma sacudidela violenta, e o teria fatalmente derrubado se a moça de boina não o tivesse amparado em tempo.

Cresce um rebuliço. A mãe fica muito pálida, o rapaz de bigode lustroso acha graça, o velhote interrompe a leitura. E a senhorita guarda o menino. Passa-lhe a mão na cabecinha.

— Como se chama?

— Roaldo.

— Quantos anos tem?

A mãe intervém.

— Já fez três. Foi no último agosto.

— Crescidinho, não?

— E ladino! — completa o orgulho materno.

O cabelo do menino tem a cor do sol. Desse sol que atravessa a vidraça e a deixa intacta. Mas a senhorita do segundo banco não tem mais esses pensamentos. Porque uma criança loura quase sempre resolve o silêncio das moças de boina...

Calixto, infelizmente, não se lembra disso. Continua a meditar em torno da discussão com a noiva. Enquanto o trenzinho corre, corre. 

Vomitando fumaça como um demônio.

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Abbie Phillips Walker (Os animais falantes)

Hulda e Nathan tinham ouvido histórias sobre uma floresta maravilhosa onde os animais podiam falar, mas descartaram isso como mera fantasia. Isto é, até que um dia eles se viram vagando pela floresta. Nathan, cativado por um esquilo, o perseguiu, com Hulda logo atrás. Quase pegando o esquilo várias vezes, eles de repente perceberam que haviam se aventurado em uma parte desconhecida da floresta.

“Devemos voltar”, sugeriu Hulda, “pois a escuridão está se aproximando e podemos nos perder.” No entanto, em vez de refazer seus passos e encontrar o caminho que levava para fora da floresta, eles pareciam se aprofundar nela. Logo o anoitecer chegou e a ansiedade de Hulda se manifestou em lágrimas.

“Não tenha medo,” Nathan a confortou. “Esta noite, a lua vai brilhar intensamente e estou confiante de que encontraremos o caminho de volta.”

“Temo que estejamos perdidos,” Hulda lamentou enquanto Nathan a guiava para um assento debaixo de uma grande árvore. De repente, um brilho chamou a atenção deles e, ao olharem para cima, notaram uma luz fraca filtrada por uma pequena janela na lateral da árvore. Uma voz acenou: “Vocês estão perdidos, crianças?”

Uma coruja emergiu da janela e Nathan perguntou: “Você pode nos guiar para fora da floresta?”

“É muito longe para viajar esta noite,” a coruja respondeu. “Venham para dentro, e eu lhes darei o jantar.”

“Eu sei onde estamos,” Nathan exclamou. “Estamos na floresta dos animais falantes.”

A porta se abriu e eles entraram em uma cozinha arrumada. Dona Coruja, enfeitada com um grande avental branco e gorro combinando, preparava o jantar.

“Por favor, sentem-se à mesa,” ela ofereceu. Tigelas e colheres já estavam colocadas, e Dona Coruja as encheu de mingau e leite. Sua gentileza logo deixou Hulda e Nathan à vontade. Assim que terminaram a refeição, a Sra. Coruja perguntou: “Vocês gostariam de ver meus bebês?”

“De fato,” Hulda respondeu ansiosamente. A Sra. Coruja os levou até o quarto, onde três corujinhas dormiam profundamente em uma cama aconchegante.

“Eles são os pássaros mais bonitos de toda a floresta”, proclamou a orgulhosa mãe.

“Não tenho dúvidas,” Hulda concordou, “especialmente quando seus olhos estão abertos.”

Na manhã seguinte, depois que a Sra. Coruja serviu o café da manhã, Hulda expressou a necessidade de partir. Eles se despediram da Sra. Coruja e de seus bebês, reconhecendo com gratidão sua hospitalidade.

“Lá vem o Sr. Bruin”, alertou a Sra. Coruja. “Ele vai guiá-los para fora da floresta. Não se preocupem,” ela assegurou às crianças ao notar suas expressões alarmadas. “Nenhum mal acontece a ninguém nesta floresta de animais falantes. Bom dia, Sr. Bruin,” ela cumprimentou o urso pardo. “Essas crianças estão perdidas. Você vai mostrar a saída a elas?”

“Certamente”, respondeu Bruin. “Elas podem me acompanhar. Vou fazer uma longa caminhada e gostaria da companhia.”

Hulda e Nathan caminharam ao lado de Bruin, que provou ser amável e envolvente, dissipando rapidamente seus medos.

“Bom dia, Sr. Bruin”, um gaio azul gritou de sua varanda. “Onde você está indo?”

Bruin explicou o destino deles e o gaio azul os convidou a entrar. “Talvez as crianças gostem de conhecer meus bebês”, ela sugeriu.

“Ficaríamos encantados”, respondeu Hulda.

A casa do gaio azul aninhada dentro de uma grande árvore, com varandas em todos os lados. Enquanto Bruin permaneceu no andar de baixo, Hulda e Nathan seguiram a Sra. Gaio Azul escada acima.

“Eles não são adoráveis?” ela exclamou, revelando três pequenos gaios azuis aninhados em um berço. “São os pássaros mais bonitos de toda a floresta.”

Hulda e Nathan concordaram de todo o coração, achando as garotas absolutamente encantadoras. Depois de se despedir da Sra. Gaio Azul, elas se juntaram a Bruin. “Eu moro ali”, indicou Bruin, apontando para uma rocha que se assemelhava peculiarmente a uma casa. “Minha esposa ficará descontente se eu não apresentar vocês a ela.”

“Teremos o maior prazer em visitá-la”, respondeu Hulda, e logo chegaram à porta da residência de Bruin. A Sra. Bruin, de boné e avental, deu-lhes as boas-vindas com um sorriso caloroso, exalando um ar carinhoso.

“Entrem,” ela convidou. “Vou preparar o almoço e apresentá-los às crianças. Vocês certamente vão se apaixonar por eles,” ela acrescentou enquanto ela e Bruin buscavam seus filhos. Em questão de minutos, eles voltaram, cada um carregando um ursinho pardo debaixo do braço. Colocados em cadeiras altas, os filhotes jogavam leite com as colheres de brincadeira, como crianças malcomportadas que Hulda e Nathan observaram.

Depois do almoço, eles se despediram da Sra. Bruin e de seus filhotes, assegurando-se de elogiar o charme inegável dos bebês. Continuando a viagem, caminharam uma distância considerável sem encontrar ninguém até que se cruzaram com um esquilo e um coelho.

“Por favor, juntem-se a nós para o chá,” o coelho gentilmente convidou. “E vocês precisam ver meus bebês.”

“E depois, vocês devem ver os meus”, acrescentou o esquilo.

Eles primeiro visitaram o coelho, cuja charmosa casa branca ostentava persianas verdes vibrantes, cercadas por vegetais florescentes. A sra. Coelho conduziu-os a uma aconchegante sala de estar. Enquanto saboreavam o chá, uma babá entrou com duas cestas, colocando-as no chão. A Sra. Coelho descobriu amorosamente as cestas, revelando seus preciosos coelhinhos.

“Garanto a vocês”, ela declarou com orgulho, “que essas são as criaturas mais encantadoras da floresta.” Hulda concordou sinceramente, admirando sua aparência delicada.

Em seguida, eles cruzaram a rua para a casa da Sra. Esquilo, onde seus bebês brincavam no quintal. A Sra. Esquilo explicou: “Deixei-os correr livremente para que vocês possam apreciar sua graciosidade. Eles são os bebês mais adoráveis da floresta.”

“Eu acredito que você esteja certa,” Hulda concordou. “Eles são incrivelmente astutos.”

Finalmente, quando se aproximaram do caminho que saía da floresta, Bruin informou-os de que não poderia ir mais longe. “Entrar nesse caminho faz com que qualquer animal falante perca a capacidade de falar”, revelou.

“Estamos profundamente gratos”, expressou Nathan. “Tivemos uma experiência verdadeiramente cativante.”

“Por favor, voltem”, Bruin estendeu seu convite. “Sempre recebemos visitantes.” Com essas palavras de despedida, Bruin desapareceu na floresta, logo desaparecendo de vista.

“Nunca mais quero comer mingau com leite”, exclamou Hulda. “Eles devem subsistir com isso. Você viu como aquelas mães eram vaidosas? É bastante estranho quando eles perguntam se seus bebês são atraentes.”

“Você concordou com cada mãe”, observou Nathan, “mesmo com a coruja, cujos filhotes eram os mais feios que já vi.”

“Você diz a uma mãe que seu bebê não é bonito?” questionou Hulda.

“Não,” Nathan admitiu, “acho que não.”

“Bem, é o mesmo com animais e pássaros”, concluiu Hulda.

Apesar de inúmeras tentativas no futuro, Hulda e Nathan não conseguiram encontrar o caminho que levava de volta à floresta de animais falantes. No entanto, eles mantêm a esperança, sabendo que ela existe, e sonham em redescobri-la algum dia.

Fonte> Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). Contos para crianças. 
Disponível em Domínio Público.