sexta-feira, 19 de julho de 2024

Contos e Lendas da Espanha (A moça dos três maridos)

Era uma vez um homem que tinha uma moça muito bonita,  mas de gênio forte. As pessoas comentavam que a menina sendo tão bela quanto temperamental, acabaria dando trabalho ao pai, quando crescesse. Mas ele não se preocupava com isso. Aceitava a personalidade da filha e amava-a de todo o coração.

Alguns anos depois, a menina se transformou numa belíssima jovem. O pai compreendeu que em  breve ela se casaria, pois não faltariam pretendentes.

Certo dia, três rapazes se apresentaram em sua casa, cada um mais gentil e bem-apessoado que o outro. Muito educadamente, pediram a mão da moça em casamento.

O pai, depois de conversar com os pretendentes, disse que os três lhe pareciam homens de caráter íntegro, capazes de fazer a moça feliz. Disse também que todos mereciam sua bênção e que seria uma honra ter um deles como genro.

— E quem será esse felizardo? — perguntaram os rapazes.

— Isso não sou eu quem vai decidir — o homem respondeu. — Meu genro será aquele que o coração de minha filha escolher.

Assim, o homem foi consultar a moça. Falou-lhe sobre as qualidades dos três pretendentes. E que todos lhe pareciam dignos de desposá-la.

A moça o ouviu com atenção. Por fim respondeu, muito tranquila, que gostaria de se casar com os três.

— Minha filha! — o bom homem se espantou. — Compreenda que isso é impossível. Nenhuma mulher pode ter mais que um marido.

— Pois eu escolho os três — ela respondeu sem se alterar.

— Sempre soube que você tinha um gênio forte. Sempre aceitei seu modo de ser. Mas para tudo há um limite. Agora pense bem, procure ter um mínimo de bom senso e não me dê mais dores de cabeça. Afinal, a qual dos pretendentes devo conceder sua mão?

— Aos três — a moça insistiu, com uma calma espantosa. — Preciso deles para viver.

— Você precisa é de uma boa dose de juízo, isto sim — o homem protestou, irritado.

Mas não houve maneira de fazer a moça mudar de ideia.

O pai meditou longamente sobre o problema que, de fato, era por demais complicado. Depois de muito pensar, encontrou uma solução; pediu aos três rapazes que saíssem pelo mundo em busca de uma raridade. Aquele que trouxesse o presente mais extraordinário, receberia a mão de sua filha.

Os três pretendentes partiram e combinaram de se reunir um ano depois, para que cada um mostrasse o seu presente. Porém, por mais que procurasse, nenhum deles encontrou algo que satisfizesse a exigência do pai da moça. Assim, depois de um ano, os três, com as mãos vazias, foram ao local onde haviam combinado o encontro.

O primeiro que chegou sentou-se para aguardar os outros dois. Enquanto esperava, um velhinho se aproximou e perguntou-lhe se não gostaria de comprar um pequeno espelho.

O rapaz examinou o espelho e respondeu que não via razão para comprá-lo.

O velhinho então explicou que, embora parecesse pequeno e comum, o espelho tinha um dom: quem nele se mirasse poderia ver qualquer pessoa que quisesse. Bastaria formular esse desejo, com todo o coração.

O rapaz resolveu fazer um teste. E ao constatar que o velhinho dizia a verdade, comprou o espelho sem discutir o preço.

O segundo pretendente, ao aproximar-se do local do encontro, foi abordado pelo mesmo velhinho, que lhe perguntou se não gostaria de comprar um pequeno frasco de bálsamo.

— Para que vou querer um bálsamo, meu velho, se percorri boa parte do mundo e não encontrei o que buscava?

O velhinho sorriu;

— Ah, mas este aqui tem o poder de ressuscitar os mortos.

Naquele momento, passavam por ali alguns homens, levando um amigo para ser enterrado. Sem pensar duas vezes, o rapaz pediu que abrissem o caixão e deixou cair algumas gotas do bálsamo na boca do defunto, que no mesmo instante se levantou, ergueu o caixão nos ombros e convidou a todos para almoçar em sua casa. Diante disso, o rapaz comprou o frasco sem regatear no preço.

Não muito longe dali, o terceiro pretendente caminhava à beira-mar, meditando, convencido de que os outros haviam encontrado algo raro e precioso, enquanto ele nada conseguira. 

De súbito avistou um grande barco que, vencendo o mar encapelado, atracou no porto. Dele desceram muitas pessoas, dentre elas um velhinho que se aproximou e perguntou-lhe se não gostaria de comprar aquele barco.

— E para que vou querer isso? — disse o rapaz. — Este barco está tão velho, que daqui a algum tempo só servirá para lenha.

— Você está enganado, meu rapaz — disse o velhinho.

— Este barco possui um dom inestimável: o de levar seu dono, e aqueles que o acompanham, a qualquer lugar do mundo, em muito pouco tempo. Se duvida, pergunte a esses passageiros que vieram comigo, pois há meia hora estávamos em Roma.

O rapaz conversou com os passageiros e concluiu que isso era verdade. Então, comprou o barco pelo preço que o velhinho propôs.

Por fim, os três pretendentes se reuniram no local do encontro, multo satisfeitos. O primeiro contou que havia comprado um espelho, no qual seu dono poderia ver quem desejasse. Para provar que falava a verdade, mirou-se no espelho enquanto pedia, de coração, para ver a moça por quem os três estavam apaixonados.

A imagem da moça, morta num caixão, surgiu no cristal do espelho, deixando os três sem fala por alguns instantes.

Por fim, o segundo pretendente quebrou o silêncio;

— Trago um bálsamo capaz de ressuscitar os mortos. 

Mas até chegarmos à casa de nossa querida, ela já terá sido enterrada.

— Acalmem-se — disse o terceiro pretendente. — A circunstância não é tão ruim quanto parece.

Diante do olhar de espanto dos outros dois, explicou:

— Por sorte, acabei de comprar um barco que em pouquíssimo tempo nos levará até nossa amada.

Os três correram para a embarcação e, de fato, em apenas alguns minutos chegaram ao porto do povoado. Então foram até a casa da moça, onde tudo já estava pronto para o enterro. O pai, desolado, relutava em dar a ordem final para a saída do cortejo rumo ao cemitério.

Os três rapazes se aproximaram do caixão. Aquele que tinha o bálsamo derramou algumas gotas na boca da morta. Assim que o bálsamo tocou-lhe os lábios, a moça se levantou, saudável e radiante,

Todos ficaram maravilhados com a atitude do jovem pretendente. Ainda naquele dia, o pai decidiu que era ele quem deveria se casar com sua filha. Mas os outros dois protestaram:

— Se não fosse por meu espelho, jamais saberíamos o que havia acontecido. E a esta hora minha amada já estaria a caminho do campo santo — disse um dos pretendentes.

Pois se não fosse meu barco, que nos transportou até aqui em poucos minutos, nem o espelho nem o bálsamo teriam podido trazer minha amada de volta — disse o outro.

Vocês têm razão — o pai da moça reconheceu. Muito confuso e desgostoso, pôs-se de novo a meditar sobre qual seria a melhor solução para aquele problema.

Tocando-lhe o ombro, a filha disse, com serena convicção:

– Agora o senhor entende, papai, porque eu precisava dos três para viver?

Fonte> Yara Maria Camillo (seleção). Contos populares espanhóis. SP: Landy, 2005.

Silmar Bohrer (Croniquinha) 117

Viagens? Quem não viaja? Quem não gosta de estar nos caminhos? 

Viagens são fontes de conhecimentos, luzes que clareiam ideias, lampejos que põem a faiscar nossas curiosidades. 

Nas viagens descobrimos os brotinhos do vasculhar e desenvolvemos a florescência dos saberes. Tudo em volta incita diligências, e estas nos ajudam a buscar e a querer mais, sempre mais . 

Então a gente concorda com o romancista - viajeiro contumaz - quando dizia ser possuído pelo demônio das viagens. Viajar também é vilegiatura cultural, é abrir bem os olhos para o novo e o desconhecido. Até em Abrolhos. 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (Quero que tudo vá pro inferno)


Compositor: Roberto Carlos/ Erasmo Carlos

De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar
Se você não vem e eu estou a lhe esperar
Só tenho você no meu pensamento
E a sua ausência é todo o meu tormento
Quero que você me aqueça nesse inverno
E que tudo mais vá pro inferno

De que vale a minha boa vida de playboy
Se entro no meu carro e a solidão me dói
Onde quer que eu ande tudo é tão triste
Não me interessa o que de mais existe
Quero que você me aqueça nesse inverno
E que tudo mais vá pro inferno

Não suporto mais você longe de mim
Quero até morrer do que viver assim
Só quero que você me aqueça nesse inverno
E que tudo mais vá pro inferno
E que tudo mais vá pro inferno

Não suporto mais você longe de mim
Quero até morrer do que viver assim
Só quero que você me aqueça nesse inverno

E que tudo mais vá pro inferno (6x)
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A Dor do Amor Não Correspondido em 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno'
A música 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno', interpretada pelo icônico Roberto Carlos, é um clássico da música brasileira que expressa a intensidade do amor não correspondido e a dor da solidão. Lançada em 1965, a canção se tornou um dos grandes sucessos do cantor, conhecido como o 'Rei' da música brasileira, e reflete o estilo romântico que marcou sua carreira. A letra fala de um sentimento profundo de falta e desejo, onde o eu lírico expressa sua angústia pela ausência da pessoa amada, a ponto de desejar que tudo mais desapareça ou 'vá pro inferno'.

A expressão 'vá pro inferno' é usada metaforicamente para representar a rejeição de tudo que não seja a presença da pessoa amada. O eu lírico descreve cenários que seriam agradáveis, como o 'céu azul' e o 'sol a brilhar', mas que perdem todo o seu valor diante da solidão. A música também aborda a ideia de que nem mesmo uma vida de luxos e prazeres, simbolizada pela 'boa vida de playboy', é capaz de preencher o vazio deixado pela ausência do ser amado. A solidão é tão dolorosa que o eu lírico menciona preferir a morte a viver sem a pessoa desejada.

A canção é um retrato da época em que foi lançada, onde as melodias românticas e as letras que falavam de amor e desilusão eram muito populares. Roberto Carlos, com sua voz marcante e interpretação emotiva, conseguiu transmitir a profundidade do sentimento de rejeição e a urgência do desejo de estar com a pessoa amada. 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno' é um hino à paixão avassaladora e ao mesmo tempo um desabafo sobre a dor que acompanha o amor quando este não é correspondido.

Tal como Orlando Silva, que foi o primeiro ídolo de massa criado pelo rádio no Brasil, Roberto Carlos seria o primeiro criado pela televisão. A canção que marca o início desse reinado é “Quero que Vá Tudo pro Inferno”.

Foi a partir de seu lançamento no programa “Jovem Guarda”, da TV Record, no final de 1965, seguido do disco homônimo, que Roberto Carlos se tornou o cantor-compositor pop de maior expressão na música brasileira, embora já frequentasse havia mais de três anos as paradas de sucesso. Aliás, o sucesso da canção e do programa foi tão forte que fez de Roberto, em pouquíssimo tempo, líder de audiência em televisão e campeão de vendagem de discos.

Naturalmente, para acontecer em plena década de 1960 um fenômeno desses teria que receber, como recebeu, o apoio maciço de uma poderosa agência de publicidade, no caso a Magaldi, Maia e Prosperi, que seguia padrões americanos. Mas, como o futuro mostraria Roberto Carlos — mesmo depois de deixar de ser novidade — manteria o prestígio, conquistando novos admiradores e conservando os antigos, o que é uma prova de talento e competência.

Poética e musicalmente pobre, alguns pontos abaixo do nível alcançado por canções posteriores (“De que vale o céu azul / e o sol sempre a brilhar / se você não vem / e eu estou a lhe esperar / (...) / quero que você / me aqueça neste inverno / e que tudo mais / vá pro inferno...”), “Quero que Vá Tudo pro Inferno” é emblemático do primeiro estágio das carreiras de Roberto e de seu parceiro Erasmo Carlos, quando os dois representavam os papéis de jovens e rebeldes roqueiros (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).

Fontes:

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “19”

 

Lima Barreto (História de um soldado velho)

Soldado velho deu baixa do Serviço do Exército por não servir mais para o trabalho. O soldo que recebia em recompensa de muitos anos de serviço foi um cruzado. Ora, o que faz ele? Comprou um pato e saiu a revendê-lo. 

Chegando perto de uma casa, sai-lhe uma criada a comprar o pato. Ele disse que o custo era de dois cruzados; ela vai falar à patroa, que manda vir o pato e também mandou pagá-lo. 

O soldado, porém, não saiu mais do portão. Dentro de certo espaço de tempo chega um frade para jantar na casa e pergunta o que estava aí fazendo. O soldado velho que fisgou alguma coisa, disse que estava à “espera” do pagamento de um pato que tinha vendido naquela casa. 

O frade perguntou quanto era; ele disse o custo de dois cruzados. O religioso puxa do bolso da batina o dinheiro e paga. 

Dispõe-se depois a entrar na casa; o soldado acompanha, juntos entram. Chegando na sala o frade, que parecia muito íntimo da casa, puxou, e sentou-se numa cadeira; o militar também faz o mesmo. 

A dona da casa vendo o frade entrar acompanhado com aquele homem desconhecido ficou curiosa, sem saber o que devia fazer e sem coragem de perguntar ao frade que homem era aquele. O eclesiástico não lhe dizia nada e assim vão, até chegar a hora do jantar a que não faltaria o pato de cabidela.

O frade tinha lugar na mesa; o soldado velho também faz o mesmo. A dona da casa estava curiosa, mas aceitava a situação fazendo das tripas coração.

Já estava a terminar o jantar, quando bateram à porta. Era o dono da casa. 

Estava tudo perdido. O que faz a mulher: tranca o frade e o soldado em uma alcova. 

O marido não saiu mais e a mulher cada vez mais ficava amedrontada. 

Chega a noite. O frade não tinha dado até ali uma palavra; o soldado velho também; mas quando foi ali pelas dez horas da noite, o soldado velho, vendo que todos estavam já agasalhados, principiou uma conversação com o frade.

Pediu-lhe este que não falasse ali, mas o militar continuou a falar.

O frade gratificou-lhe com um conto de réis para que ele não mais falasse. 

Recebeu o dinheiro o soldado velho, mas logo de novo começou a dizer que no dia que comia pato não podia ficar calado. Deu-lhe o frade um outro conto de réis ficando sem mais um vintém. 

O soldado velho, pois, continuou a falar. O companheiro, para ver se ele se calava, deu-lhe da batina de sede.

O soldado velho teimava em continuar a dizer que no dia que comia pato não podia estar calado. O frade já lhe pedia pelo amor de Deus que não falasse mais, pois se tal o não fizesse, ficariam desgraçados. O dono da casa certamente acordaria e era capaz de matá-los.

O soldado velho não queria saber de nada, o seu desejo era só de falar. O frade vendo que não tinha mais o que dar despiu-se de toda roupa e entregou-a ao soldado velho para que ele não falasse mais. 

Já sendo meia-noite na cadeia o sentinela solta o brado de alerta, o soldado velho ouviu e produziu um outro formidável brado. 

O frade, com medo, meteu as mãos na porta e saiu nu. 

Soldado velho que ainda não estava vestido com batina acompanhou o frade que pulou uma janela. 

O dono da casa pula atrás do frade e dá-lhe um tiro. 

O soldado velho pula atrás do dono da casa e o prende. 

O homem que era um homem de grande reputação não quis sujeitar-se à prisão, mas o soldado velho não queria saber de nada. Estava preso e bem preso, pois ele era o mandante e tinha que cumprir o serviço, tanto mais que o dono da casa tinha dado um tiro num homem. Não podia de maneira alguma soltá-lo. 

O dono da casa, vendo a resolução do soldado velho, e que tinha de ir mesmo à presença das autoridades, ele que era muito conhecido e respeitado por todos, propôs ao militar, se ele o soltasse, dar-lhe doze contos de réis. 

Soldado velho aceitou, mas com as condições do dono da casa mandar a sua mulher contar e trazer ali, onde estavam. 

O homem chamou a mulher e mandou que contasse doze contos de réis com toda pressa e trouxesse. 

Assim foi feito. Soldado velho, que só vencia um cruzado por mês, saiu da aventura com catorze contos e quatro cruzados e a batina do frade e todos os paramentos do frade.

Quem pagou o pato?

Fonte: Lima Barreto. Marginália.  Publicado originalmente em 1919. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Gago apaixonado)


Compositor: Noel Rosa

Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago
Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago
Não po-posso com a cru-crueldade da saudade
Que que mal-maldade, vi-vivo sem afago

Tem tem pe-pena deste mo-moribundo
Que que já virou va-va-va-va-ga-gabundo
Só só só só por ter so-so-sofri-frido
Tu tu tu tu tu tu tu tu
Tu tens um co-coração fi-fi-fingido

Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago
Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago
Não po-posso com a cru-crueldade da saudade
Que que mal-maldade, vi-vivo sem afago

Teu teu co-coração me entregaste
De-de-pois-pois de mim tu to-toma-maste
Tu-tua falsi-si-sidade é pro-profunda
Tu tu tu tu tu tu tu tu
Tu vais fi-fi-ficar corcunda!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

O Amor e a Dor de um Gago Apaixonado
A música 'Gago Apaixonado' de Noel Rosa é uma obra que mistura humor e melancolia para retratar a dor de um homem apaixonado. A letra é marcada pela gagueira do protagonista, que é uma metáfora para sua insegurança e nervosismo diante do amor não correspondido. A repetição das sílabas não só imita a fala de um gago, mas também enfatiza a intensidade de seus sentimentos e a dificuldade em expressá-los.

Noel Rosa, um dos maiores compositores da música popular brasileira, é conhecido por suas letras inteligentes e bem-humoradas, que frequentemente abordam temas do cotidiano com uma pitada de ironia. Em 'Gago Apaixonado', ele utiliza a figura do gago para criar uma personagem cômica, mas ao mesmo tempo trágica, que sofre com a crueldade da saudade e a falsidade do amor. A gagueira do protagonista é um símbolo de sua vulnerabilidade e do impacto emocional que a rejeição amorosa tem sobre ele.

A música também explora a dualidade entre o amor e a dor. O protagonista se sente destruído pela mulher que ama, que o fez sofrer e o transformou em um 'moribundo' e 'vagabundo'. A letra sugere que o amor não correspondido pode levar a um estado de desespero e perda de dignidade. A repetição da palavra 'tu' no final de cada estrofe reforça a acusação e a amargura do protagonista em relação à mulher que o enganou. Noel Rosa, com sua habilidade lírica, consegue transformar uma situação dolorosa em uma canção que é ao mesmo tempo tocante e divertida.

Lançada originalmente no teatro de revista na peça Café com Música onde se destacava a famosa cantora Araci Cortes, composição essa que se tornaria peça obrigatória nas apresentações de Noel Rosa; nesta composição Noel demonstra todo seu fino humor, sua imensa verve satírica e sua facilidade em retratar as características peculiares dos tipos humanos da sociedade brasileira dos anos 30, especificamente do Rio de Janeiro, capital da República do Brasil.

Noel inclusive gravou sua composição Gago apaixonado e costumava dizer em tom de deboche que o que mais gostava nesta música era o fato de "esta meus vizinhos não conseguem cantar" (Dárcio Fragoso).

Fontes:

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Renato Benvindo Frata (Natureza)

Autoritário e orgulhoso, o Sol não tinha amigos nem se importava em querê-los e, naquele dia, se aliou em parceria com o prepotente Vento. Reuniram-se, gabaram-se, esparramaram-se em contar vantagens, tramaram.

Quando Sol e Vento se reúnem, sabe-se que coisa boa não vem. Pacto feito, acertaram que a vítima seria a Manhã, a princesa dos campos, matas e rios. E o fizeram por inveja de sua leveza, desenvoltura e graciosidade.

- Não gosto dela - disse o raivoso Sol. - Quem pensa que é?

- Detesto-a - confirmou o Vento. - É ingênua, insegura e fraca!

Resolveram que, por ser bela, leve, desenvolta, graciosa, ingênua e insegura, merecia um bom castigo, desses que os maus gostam de conceber.

Tomados por superioridade e audácia, nem se deram conta do porquê de agirem assim, se há, entre coisas disponíveis, também as boas a serem feitas.

Eles preferiam as piores.

- Eu a aquecerei tanto e você a soprará com tanta força que nós, unidos, a faremos se sentir a mais infeliz dos seres! Quero vê-la se queimando num calor abrasador... he, he, he... - ordenou o Sol.

- Combinado! - exclamou o Vento. - Soprarei tanto que ela nem saberá o que fazer.

A Noite, que passara sonolenta pelas horas, não ouviu a conversa deles e, quando foi entregar ao Sol o relógio do tempo, recebeu dele um sorriso enviesado e um comentário:

- Você não viu e não verá o que vai acontecer! Você é notívaga... não sabe o que acontece durante o dia...

Intrigada, a Noite respondeu:

- Partindo de você com a sua prepotência, coisa boa não há de ser...

O Sol deu de ombros e chamou o Vento:

- Chegou a hora. Vai, sopra bem forte! Quero ver essa princesa se estragar.

E o Vento, ventando, soprou tanto, mas tanto, que levantou a saia da Manhã que, pega desprevenida, se agarrou nas barras do Horizonte, mas era tarde.

Havia mostrado tudo!

E aí uma grande surpresa aos olhos de todos: milhões de gotículas de orvalho brilharam nas pétalas, nos capins, nos campos e nas matas, refletindo, vejam só, a majestade da beleza do Criador.

Mostrou ao Sol e ao Vento o esplendor que é o amanhecer.

A Noite, que se escondera, sorriu com a decepção dos malvados. Como ela nunca foi orgulhosa, antes que o sol acordasse, colocou uma a uma daquelas gotículas no Sereno e mandou que ele espalhasse por tudo.

Envergonhados, o Sol se avermelhou e o Vento saiu de fininho, prometendo que daí por diante, pelas Manhãs, um seria ameno, e o outro, uma gostosa brisa.

Comporiam nessa parceria a beleza que temos no Alvorecer.

(Premiada no Femup 2021, Paranavaí, PR)

Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

Recordando Velhas Canções (Gente humilde)


Compositores: Chico Buarque / Garoto / Vinícius de Moraes

Tem certos dias em que eu penso em minha gente
E sinto assim todo o meu peito se apertar
Porque parece que acontece de repente
Como um desejo de eu viver sem me notar

Igual a como quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem, vindo de trem de algum lugar
E aí me dá uma inveja dessa gente
Que vai em frente sem nem ter com quem contar

São casas simples com cadeiras na calçada
E na fachada escrito em cima que é um lar
Pela varanda, flores tristes e baldias
Como a alegria que não tem onde encostar

E aí me dá uma tristeza no meu peito
Feito um despeito de eu não ter como lutar
E eu que não creio, peço a Deus por minha gente
É gente humilde, que vontade de chorar
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

A Melancolia e a Beleza na Simplicidade 
A música 'Gente Humilde', interpretada por Chico Buarque, é uma obra que reflete sobre a simplicidade e as dificuldades da vida nas áreas mais humildes da cidade. A letra expressa um sentimento de empatia e melancolia do eu lírico em relação às pessoas que vivem em condições modestas, mas que carregam uma dignidade e uma força admiráveis.

O início da canção revela uma reflexão introspectiva, onde o eu lírico se sente emocionalmente tocado ao pensar em sua 'gente', ou seja, nas pessoas simples e trabalhadoras que representam suas raízes ou sua comunidade. Há um aperto no peito, uma emoção que surge espontaneamente, indicando uma conexão profunda e uma preocupação genuína com o bem-estar dessas pessoas.

À medida que a música avança, o eu lírico descreve cenas do cotidiano suburbano, com suas casas simples e a vida que se desenrola na calçada. A inveja mencionada não é de natureza material, mas sim de um espírito de comunidade e de seguir em frente apesar das adversidades. A tristeza e a beleza se entrelaçam na descrição das flores 'tristes e baldias' e na alegria que parece não ter um lugar para se apoiar. A música culmina em um apelo emocionado a Deus, mesmo para aquele que não é crente, revelando a profundidade do sentimento de solidariedade para com a 'gente humilde'.

“Gente Humilde” teria surgido durante uma visita de Garoto a um subúrbio carioca. De repente, ao observar aquelas pessoas e suas casas modestas, ele resolveu homenageá-las numa canção. Tempos depois, a gravaria num acetato para o professor mineiro Valter Souto, registro que asseguraria a sobrevivência da composição, mantida inédita em disco comercial.

Finalmente, quase quinze anos após a morte de Garoto, Baden Powell mostrou-a a Vinícius de Moraes que, apaixonando-se pelo tema, deu-lhe uma letra em parceria com Chico Buarque. Aliás, uma letra primorosa que, segundo o próprio Chico, é quase toda de Vinicius: “São casas simples, com cadeiras na calçada / e na fachada escrito em cima que é um lar / pela varanda, flores tristes e baldias / como a alegria que não tem onde encostar...”

Muito antes, porém, houve uma outra letra (“Em um subúrbio afastado da cidade / Vive João e a mulher com quem casou / tem um casebre onde a felicidade / bateu à porta, foi entrando e lá ficou...”) de um poeta mineiro, que preferiu se manter no anonimato. Com esta letra, “Gente Humilde” foi cantada em programas da Rádio Nacional por Zezé Gonzaga e o coral Os Cantores do Céu, em arranjo de Badeco, do conjunto Os Cariocas (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).

Fontes:

Aparecido Raimundo de Souza (Chuva ácida)

VERÔNICA TRAZIA na boca o gosto acre dos infindáveis caraminguás com os quais se relacionara durante toda a vida. No corpo inteiro, as marcas indeléveis dos amores tentados, e, no peito, as dores em virulenta profusão das paixões desfeitas. No frívolo incoerente dos olhos, recordações de figuras que usufruíram de seus melhores momentos no desfrute de infindáveis horas de prazer. Um diletantismo esmaecido e sem o fogo da mocidade, ou pior ainda, um resto dela que ainda insistia em manter uma tênue luz deixada pelo inóspito de uma distância alpestre (grosseira). 

Na alma combalida, estropiada e machucada, lembranças dos que se fartaram e se saciarem a bel prazer dos pecados da carne fraca. No geral, fantasmas iracundos se insurgiam do âmago de suas entranhas como se fossem restos de coisas repugnantes. Seu tato, sua química, seu suor, cheiros e gostos, aromas e olores, não dispunham agora do primor necessário para fazer alguém ficar por vontade própria. Faltava o distinto, o notável e o essencial, o excelente e o basilar.  Cicatrizes aqui e ali, lesões não curadas pareciam brechas profundas sedimentadas em sua armadura. 

Verônica sentia, na verdade, a necessidade de manter a postura dos vinte, mas, o peso da solidão e a carga fastidiosa da casa das sessenta primaveras, não davam tréguas. Ao contrário, magoavam e feriam profundamente. Sua vida se assemelhava à dos covardes e vencidos – os covardes e vencidos não fazem história –, simplesmente passam e seguem em frente, sem deixar vestígios dos feitos realizados. Verônica não tinha feitos memoráveis, nem páginas escritas. Tão somente folhas soltas ao sabor do nada. Rascunhos, debuxos e boquejos absolutamente inúteis que para coisa alguma serviam. Sequer, a bem de algo sólido, poderiam ou deveriam ser conservados ou restaurados. 

Apenas a fraqueza mirrada da covardia franzina e valetudinária (enferma) de não ter tentado coisa melhor. O livro-base da sua existência vazia e débil estava totalmente em branco. Em paralelo, timbres e sons sem ressonâncias harmoniosas, se confundiam numa abstinência de vidas retalhadas em completo e total fracasso. Em caminho igual, gritos e brados, clamores e rogos se perdiam difusos. Seu espírito se deixara ser levado por ruas e estradas tortuosas de inseguras realidades, como as corredeiras de um rio imenso e à esmo, buscando um afluente qualquer para se desaguar em morte lenta. 

Verônica, como essas águas, desejava um canto de sossego onde descarregar as mágoas do longo caminho percorrido. Esquecer o destino inglório e encontrar um pouco de paz. Pelo que sua vida de altos e baixos pagou em tributos, em igual camada de dissabores e desgraças, o amanhã poderia lhe comprar respostas. Ao invés disso, o porvir que se descortinava à frente, se mostrava complicado demais. Era triste aos extremos. Solitário e melancólico em demasia. As pessoas que não tem nenhum tipo de problemas ou questiúnculas pendentes conseguem vislumbrar um porvir colorido. Somente elas gozam desta beatitude e se permitem atingir o Nirvana do privilégio fazendo com que a alma se veja e se sinta em tranquilidade total e ausente de qualquer sentimento pernicioso. 

O resto, portanto, vegetava, malograva, naufragava “desprosperava,” em preto e branco.  Assim se resumia naquele instante o cotidiano de Verônica. Sem cor, sem brilho, sem um pingo de viço. Do acordar até a hora de voltar a dormir: à noite, igualmente longa e pegajosa, não ficava atrás: se fazia feia, hostil, sem sentido, mutilada. O mundo se assemelhava a um bicho pré-histórico de três cabeças a perseguir implacável. Ela, sozinha, se sentia numa espécie de hidrofobia viral. Tinha consciência, à morte, somente a Dama da Foice possuía o antídoto vital para tirá-la, de vez, daquela morbidez sem volta, daquela incerteza degradante, sem sentido lógico. 

Seu universo inteiro parecia que se deslocara da órbita natural. Dava sinais de ter seguido um trilhar secundário que se distanciava a cada minuto do que deveria ser seu hoje-agora. A sintonia meridiana desse planeta, se adumbrava (sombreava) a uma espécie rara de zumbi errante em busca do nada. Literalmente, Verônica fizera um suco de limão, mais que azedo e jogara fora o doce néctar que o destino lhe presenteara. Sem saída, sem bifurcações novas à frente, sem objetivos a serem alcançados, Verônica estancou os passos. Encarcerou seus anseios, abalou seus horizontes. Se interditou. 

Pés e mãos atados, olhou em volta de si e não viu nada. Espiou o céu e só enxergou nuvens negras. Fechou os olhos e também, dentro de si, coisa alguma. Não encontrou razão para continuar vivendo. Viver se resumia em algo sem sentido, sem conformidade ou nexo. O viver se opunha desleal, incômodo e nocivo. Lembrou da rodovia. Havia uma, não muito longe. Uma autovia gulosa que consumia o progresso. Talvez se servisse dos seus insucessos. Caminhou apressada. Como um braço enorme estendido ao “não sei para onde,” uma passarela metálica cruzava para o outro lado. 

Sob ela, carros, caminhões, ônibus e motos iam e vinham numa velocidade estonteante. Carros, caminhões, ônibus e motos passavam com pressa. Voavam ávidos de um destino certo.  Verônica não tinha destino, nem talvez, nem paradeiro. Menos ainda, ponto de chegada. Não dispunha de eira nem beira. Não sabia para onde ir, para onde chegar, para quem voltar. Não tinha o mínimo, ou melhor, um chão para continuar pisando. De repente, pulou num impulso incontido. Saltou do meio da passarela para o centro do desconhecido. Viajou com tudo, num plainar rápido e sem sentido, tão sem lógica como a sua vida sem brilho, sem sabor, sem razão de ser, sem o perfume das flores mais simples. 

Mergulhou de cabeça, esvaneceu, se reduziu a nada para o transito do tudo tresloucado que fluía com uma intensidade cada vez mais sedenta de sangue. No oco frio dos olhos, as recordações de figuras antigas que usufruíram de seu corpo por algumas horas de prazer. Na alma combalida, afundada em transgressões, lembranças caducas dos muitos e milhares que se fartaram e se saciaram a bel prazer do pecado na sua forma. Cicatrizes aqui e ali pareciam cissuras em sua armadura. Os covardes e vencidos não fazem história. Indubitavelmente, os covardes e vencidos não fazem his... 

Fonte: Texto enviado pelo autor

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 51: Opróbrio

 

A. A. de Assis (Camões 500 anos)

Luís Vaz de Camões deixou para todos nós, povos lusófonos, uma herança cultural preciosíssima

Em todos os países de língua portuguesa está em andamento uma série de comemorações alusivas ao quinto centenário de Luís Vaz de Camões. Serão dois anos de congressos, seminários e outros eventos enfatizando a importância do nosso poeta máximo.  

Em verdade, não se sabe exatamente onde e quando ele nasceu: uns dizem que em Lisboa, outros que em Coimbra; uns dizem que em 1524, outros que em 1525. O que se tem por certo é que em Lisboa ele morreu, num bairro humilde, no dia 10 de junho de 1580.

Morreu pobrinho… ele que serviu de modelo para a formatação definitiva do nosso maior tesouro, a língua portuguesa, “última flor do Lácio”, filha caçula do velho latim.

Sabemos também que Luís de Camões foi soldado do Reino e como tal esteve na África, na  Ásia e em outros tantos ondes, fazendo guerras, fazendo versos, fazendo amor. Metonímia perfeita das mais vulcânicas paixões.

Perdeu a visão de um olho, dizem que numa batalha no Marrocos. Mas com o olho que sobrou ele brigou, namorou, navegou, sobreviveu a naufrágios. Consta até que numa dessas escapou nadando com um só braço, enquanto com o outro sobraçava os originais de “Os lusíadas”.

Voluptuoso daquele jeito, Luís Vaz de Camões foi todavia o gênio maior da cultura lusíada. Ponte entre o passado e o futuro; entre os símbolos da mitologia pagã e os valores do pensamento cristão. Porta de saída da Idade Média; porta de entrada para a civilização moderna.  O poeta do Renascimento português, o poeta épico, o poeta filósofo, o poeta lírico. O poeta flama, com quem aprendemos que “amor é fogo que arde sem se ver;/ é ferida que dói e não se sente;/ é um contentamento descontente;/ é dor que desatina sem doer”.

Embora fosse um poeta erudito, inspirou-se com frequência em canções e trovas populares e escreveu poemas que lembram as cantigas medievais, nos quais revela acentuada sensibilidade para os dramas amorosos ou existenciais. A maior parte da sua obra lírica é composta de sonetos e redondilhas.

Em 1572, com ajuda do rei Dom Sebastião, Camões conseguiu finalmente publicar sua obra-prima, “Os lusíadas”, onde sintetiza as principais marcas da história de Portugal: o humanismo e as expedições ultramarinas – em especial a descoberta do caminho para as Índias por Vasco da Gama.

Luís Vaz de Camões deixou para todos nós, povos lusófonos, uma herança cultural preciosíssima. Agora nos convida para celebrar com ele, no parnaso eterno, seus 500 anos de poesia e amor.

Fonte> Portal do Rigon. 27.06.2024, 

Recordando Velhas Canções (Conversa de Botequim)


Compositores: Noel Rosa e Vadico

Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo      e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol

Se você ficar limpando a mesa
     Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão                  
Uma caneta, um tinteiro,
Um envelope e um cartão,
Não se esqueça de me dar palitos 
E um cigarro pra espantar mosquitos 
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas,
Um isqueiro e um cinzeiro

Seu garçom faça o favor de me trazer depressa...
Telefone ao menos uma vez
Para três quatro quatro três três três 
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório

Seu garçom me empresta algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o  bicheiro,
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente

Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
A Crônica Musical do Cotidiano de Noel Rosa
A música "Conversa de Botequim" de Noel Rosa é uma crônica cantada que retrata o cotidiano dos botequins do Rio de Janeiro na década de 1930. A letra descreve um cliente fazendo uma série de pedidos ao garçom, que vão desde uma refeição simples até favores pessoais, como emprestar dinheiro e objetos. Através de uma narrativa humorística e irônica, Noel Rosa critica sutilmente a sociedade da época, expondo a malandragem e a esperteza do carioca comum.

Noel Rosa, conhecido por sua habilidade em compor sambas com letras inteligentes e cheias de duplo sentido, utiliza a figura do garçom como um ouvinte passivo para suas demandas, que são ao mesmo tempo triviais e absurdas. A música também reflete a informalidade das relações sociais nos botequins, onde tudo parece ser possível. Além disso, a canção destaca a cultura do futebol e do jogo do bicho, elementos fortemente enraizados no Rio de Janeiro daquela época.

"Conversa de Botequim" é uma obra que, além de entreter, serve como um documento histórico e cultural. Ela nos permite vislumbrar o estilo de vida e os hábitos dos cariocas nos anos 30, bem como a atmosfera dos botequins, que eram pontos de encontro e socialização importantes naquela sociedade.

Não existe em nossa música popular crônica mais espirituosa sobre uma cena do cotidiano que a realizada por Noel Rosa em "Conversa de Botequim". Localizada em um café, ambiente que o autor conhecia como ninguém, a crônica tem como personagem principal um freguês desabusado que, ao preço de uma simples média com pão e manteiga, acha-se no direito de agir como se estivesse em sua casa.

Assim, em ordens sucessivas, ele exige do garçom atendimento rápido e eficiente : "Seu garçom faça o favor / de me trazer depressa / uma boa média que não seja requentada/ um pão bem quente com manteiga à beça / um guardanapo / um copo d'água bem gelada..." -, que inclui ainda o fornecimento de "caneta, tinteiro, envelope, cartão, cigarro, isqueiro, cinzeiro, revistas, o resultado do futebol" e até "o empréstimo de algum dinheiro", pois deixara o seu com o bicheiro.

Tudo isso fiado, pois, para terminar, o sujeito ordena: "Vá dizer ao seu gerente / que pendure essa despesa / no cabide ali em frente". Completa esta obra-prima uma melodia sincopada de Vadico, que se casa com a letra de forma primorosa, como se as duas tivessem sido feitas ao mesmo tempo, por uma mesma pessoa. Noel Rosa é o melhor intérprete de "Conversa de Botequim", uma de suas composições mais gravadas. No seu jeito simples de cantar, ele "diz" a letra com a naturalidade com que um malandro daria todas aquelas ordens a um garçom de botequim.

Fontes:

segunda-feira, 8 de julho de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 50

 

Newton Sampaio (Desencanto de gente rústica)

Para quem viesse lá das bandas do Laranjinha, com destino à ponta da estrada de ferro, a fazendola de Seu Euzébio das Neves representava um verdadeiro achado naquela zona quase desabitada do sertão paranaense.

Depois de cavalgar horas e horas, suportando o inferno da soleira danada, e vencendo quilômetros e mais quilômetros sem encontrar sequer um ranchinho de caboclo, o viajante, por acostumado que fosse, não podia disfarçar nunca uma ruidosa manifestação de alegria ao ver repontar, no fundo azulado do Pico Agudo, o casarão branco onde morava o generoso Euzébio das Neves. E, pondo no “arre! Até que enfim!” usual todo o desabafo da cansativa, transpunha a porteira entoando mil “graças a Deus” à santa ideia do sertanejo pacato em estabelecer-se por aquelas alturas.

Muita razão tinham, na verdade, os caminhantes em desejar atingir, com tanto ardor, aquele ponto da estrada. Pois, a qualquer hora e em qualquer dia, a casa de Euzébio das Neves recebia a todos com a maior boa vontade, dispensando sempre uma cativante acolhida.

Cama fofa para pouso, se preciso, mesa farta de pitéus simples, mas cheios de sabor e de sustância, palestra agradável, tudo isso era ali encontrado e cedido despretensiosamente a quem passasse. 

Euzébio das Neves era mineiro de nascimento. E, vivendo embora, havia muitos anos, longe do Coroaci inesquecível, jamais perdera aquele jeito hospitaleiro que distingue, que faz estima ao povo das Alterosas.

Sua fama, por isso, corria de boca em boca, naquele pedaço do nordeste paranaense. E era mesmo um gosto a gente aportar à fazendola onde o Seu Euzébio fazia a vida engordando porcos, revolvendo a terra e passava os dias rodeado pelo carinho da mulher e dos filhos.

Num sábado que fora cheio de sol e fora cheio de serviço (o sol já ia mergulhando atrás do Pico Agudo, e o serviço, lá pelas cinco horas fora posto de banda) — num sábado como qualquer outro, a porteira da frente gemeu preguiçosa para deixar passar um cavalo resfolegante e um guapo cavaleiro.

O cavaleiro era Lauzinho, filho do compadre Cornélio. E o cavalo era zaino do mesmo compadre Cornélio. Esse Lauzinho não tinha mais que vinte e três anos. E acusavase, logo à primeira vista, com o tipo do rapagão nascido e criado no sertão. O mundo, para ele, não precisava ir além da ponta da linha de ferro em Barra Bonita (embora, já uma vez, tivesse praticado a violência de chegar até Tomazina, a cabeça da comarca), podia-se resumir na menina de Seu Euzébio — a Maria Rosa — por causa de quem, todo sábado, depois do meio-dia, punha uma roupa melhor, encilhava o zaino, e enveredava pelas estradas ásperas, sob o sol bárbaro.

Seu costume era pousar na fazendola do Euzébio, e só no domingo, de noitinha, retomar o caminho de casa, disposto às lidas da semana, e lavando no coração o alvoroço de uma grande saudade, e nos olhos a imagem sedutora da caboclinha querida.

Maria Rosa representava tudo para Lauzinho, que nunca se afeiçoara a outra moça, e, mesmo, não queria saber de outros amores. 

Uma vez que fora fazer compras em Barra Bonita, uma sirigaita qualquer, de vestidinho curto e beiços vermelhos, tentara, muito sinsinhora, namoricar o coitado do sertanejo. Lauzinho, porém, não quisera saber de histórias. E quando, no sábado seguinte, foi visitar a Maria Rosa, achou-a mais amorável que nunca, na pureza sem par de seus dezoito anos, e no encanto inigualável de sua timidez inata.

Tudo para Lauzinho se resumia em Maria Rosa. Por causa dela vivia a mourejar, de sol a sol, em um promissor pedaço de chão. Por causa dela vinha, toda semana, nem que chovesse canivete, até o casarão branco do Euzébio das Neves gozar algumas horas de convívio com a deusinha de seus sonhos rústicos. E Maria Rosa bem que merecia tudo isso. Seus olhos eram tão bonitos... E seu amor parecia tão grande, tão do fundo do coração...

Naquele sábado Lauzinho chegara mais cedo que de costume. O sol só mostrava um pedaço de sua rodela vermelha, e as primeiras sombras da noite iam avançando, já longas e invencíveis, a leste do Pico Agudo, como que abençoando a faina árdua dos sertanejos valorosos. Estivera percorrendo trechos do terreno de um compadre do pai e, em compensação, trazia no peito mais floridas esperanças de logo conseguir o necessário para o casamento.

Maria Rosa recebeu-o com os mesmos olhos de sempre. Lauzinho não fazia nada por mal. Em nada, portanto, havia razão de zanga.

Um dia, as portas do casarão branco abriram-se para receber um tal de Dr. Ernesto, um engenheiro que andava estudando a região.

O trato do velho Euzébio cativou-o. E como tivesse de permanecer algum tempo naquelas bandas, aceitou a hospitalidade que lhe era oferecida.

— Mas, senhor Euzébio. Creio que o vou cansar com tanta amolação. O meu serviço é um pouco demorado...

— Que nada, seu doutor! A casa de caboclo pobre é rica de bondade. Tudo aqui é seu. Faz de conta que o Dr. Ernesto é agora de minha familiagem. Depois... O que é mais uma concha de feijão na panela. Graças a Deus e a Nossa Senhora da Aparecida, as coisas vão melhorando...

— Fico-lhe muito grato, senhor Euzébio. Quando houver oportunidade, retribuirei seus favores.

— Nem é preciso, doutor. Nem é preciso.

O doutor não pôde ficar indiferente aos encantos caboclos de Maria Rosa. A sertanejinha, no atravessar dos seus dezoito anos banais, estava no auge da floração do sexo.

Beleza espontânea, beleza sem artifícios, beleza que surgira e se aprimorara aos raios de todos os sóis, à umidade de todas as chuvas, ao contato de todo o oxigênio puro do sertão, ao descanso de todas as noites longas e calmas, ao gozo de uma vida sem maiores sensações do que pular da cama às cinco, receber no dorso macio as águas da cachoeirinha, trabalhar numa coisa e noutra, esperar o sábado e a vinda do Lauzinho; beleza amiga da natureza e cheia de castidade, Maria Rosa não tinha conhecimentos das armas irresistíveis que possuía para incendiar o coração dos homens e prendê-los nas malhas das paixões perdidas. Por isso, não levava a mal os olhares do engenheiro quando, de manhãzinha, lhe servia o café. Por isso, não via nas gentilezas extremadas mais do que uma gratidão ao bom acolhimento do pai. 

Insone no leito fofo, o Dr. Ernesto revolvia-se, nervoso:

— Diabo de garota dinamite. E vá um pobre diabo ficar à vontade perto de um abismo destes.

No entanto, era preciso respeitar a casa do velho mineiro. Era preciso.

Certa vez — a vida gosta mesmo de jejuar com a gente, — certa vez, o engenheiro se viu a sós com Maria Rosa. O fogo do sol que lhe escaldara o sangue durante o dia, no meio do mato, deixara fagulhas nas veias. E disse da paixão que lhe andava no peito. E disse das seduções daquelas carnes magníficas. E disse da quebradeira que punha n’alma aquele olhar indefinível...

Maria Rosa, vermelhinha, vermelhinha, libertou as mãos e saiu correndo para o quarto, com o coração aos pulos. Viu-se em frente ao espelho de moldura feia que havia perto da cama da mãe. E só então começou a notar as linhas de seu corpo. E só então o sexo lhe bradou barbaramente do fundo das entranhas.

Quando Lauzinho apeou do cavalo, deu logo de frente com aquele rapaz de terno de casimira, bonito e passadinho, mal pôde disfarçar o enfado. Tinha um rancor invencível aos moços da cidade. Ainda mais no casarão branco do Seu Euzébio das Neves. Durante o domingo, causaram-lhe um aborrecimento imenso as maneiras gentis do doutor. E, pela primeira vez, voltou profundamente triste, montado no zaino do compadre Cornélio, e dentro da noite linda que as estrelas tornavam admirável com seu piscar malicioso.

No sábado seguinte, Lauzinho empurrou a porteira preguiçosa lá pelas quatro horas, quando o sol ainda estava impiedoso. Desencilhou o zaino, passou as costas da mão pela testa salpicada de suor, e ficou esperando a Maria Rosa, que ainda estava no córrego.

Quando chegou, ela lhe deu um cumprimento muito diverso do que ele estava acostumado a receber. A moçoila pareceu-lhe diferente, sem aquele olhar que demonstrava um amor muito sincero, muito do fundo do coração.

— Uai! Maria Rosa. Você parece que não ‘tava com saudade da gente...’

— Saudade? Como não? É que nem todo o dia tem pão quente. Não é toda a vez que eu posso estar aí, mostrando os dentes procê...

O engenheiro vinha chegando. Maria Rosa correu para dentro. E voltou depois com um vestido bonito, com o cabelo muito penteadinho, e até (pareceu a Lauzinho), e até de pintura no rosto.
O domingo foi insuportável. O moço sertanejo tinha ímpetos de esganar o tal Doutor Ernesto. Pois ele é que viera deixar indiferente a Maria Rosa, a deusinha de seus sonhos rústicos.

Ferido em seus brios, Lauzinho amarfanhou no coração o desejo de ser feliz um dia. E a sua despedida foi a coisa mais seca deste mundo. Tanto que saiu mais cedo do que de costume.

Quando a porteira gemeu preguiçosamente para deixar passar, pela última vez, um cavalo e um cavaleiro (o cavalo era o zaino do compadre Cornélio e o cavaleiro era o filho do mesmo compadre Cornélio) — o sol só mostrava um pedaço da rodela vermelha. E as primeiras sombras da noite iam avançando já, longas e invencíveis, a leste do Pico Agudo, como que amortalhando o desencanto que punha luto no coração do Lauzinho.

E o cavalo e o cavaleiro enveredaram pela estrada deserta, que leva pras bandas do Laranjinha, enquanto, lá no céu, as estrelas punham malícia no jeito de piscar...

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.