Para quem viesse lá das bandas do Laranjinha, com destino à ponta da estrada de ferro, a fazendola de Seu Euzébio das Neves representava um verdadeiro achado naquela zona quase desabitada do sertão paranaense.
Depois de cavalgar horas e horas, suportando o inferno da soleira danada, e vencendo quilômetros e mais quilômetros sem encontrar sequer um ranchinho de caboclo, o viajante, por acostumado que fosse, não podia disfarçar nunca uma ruidosa manifestação de alegria ao ver repontar, no fundo azulado do Pico Agudo, o casarão branco onde morava o generoso Euzébio das Neves. E, pondo no “arre! Até que enfim!” usual todo o desabafo da cansativa, transpunha a porteira entoando mil “graças a Deus” à santa ideia do sertanejo pacato em estabelecer-se por aquelas alturas.
Muita razão tinham, na verdade, os caminhantes em desejar atingir, com tanto ardor, aquele ponto da estrada. Pois, a qualquer hora e em qualquer dia, a casa de Euzébio das Neves recebia a todos com a maior boa vontade, dispensando sempre uma cativante acolhida.
Cama fofa para pouso, se preciso, mesa farta de pitéus simples, mas cheios de sabor e de sustância, palestra agradável, tudo isso era ali encontrado e cedido despretensiosamente a quem passasse.
Euzébio das Neves era mineiro de nascimento. E, vivendo embora, havia muitos anos, longe do Coroaci inesquecível, jamais perdera aquele jeito hospitaleiro que distingue, que faz estima ao povo das Alterosas.
Sua fama, por isso, corria de boca em boca, naquele pedaço do nordeste paranaense. E era mesmo um gosto a gente aportar à fazendola onde o Seu Euzébio fazia a vida engordando porcos, revolvendo a terra e passava os dias rodeado pelo carinho da mulher e dos filhos.
Num sábado que fora cheio de sol e fora cheio de serviço (o sol já ia mergulhando atrás do Pico Agudo, e o serviço, lá pelas cinco horas fora posto de banda) — num sábado como qualquer outro, a porteira da frente gemeu preguiçosa para deixar passar um cavalo resfolegante e um guapo cavaleiro.
O cavaleiro era Lauzinho, filho do compadre Cornélio. E o cavalo era zaino do mesmo compadre Cornélio. Esse Lauzinho não tinha mais que vinte e três anos. E acusavase, logo à primeira vista, com o tipo do rapagão nascido e criado no sertão. O mundo, para ele, não precisava ir além da ponta da linha de ferro em Barra Bonita (embora, já uma vez, tivesse praticado a violência de chegar até Tomazina, a cabeça da comarca), podia-se resumir na menina de Seu Euzébio — a Maria Rosa — por causa de quem, todo sábado, depois do meio-dia, punha uma roupa melhor, encilhava o zaino, e enveredava pelas estradas ásperas, sob o sol bárbaro.
Seu costume era pousar na fazendola do Euzébio, e só no domingo, de noitinha, retomar o caminho de casa, disposto às lidas da semana, e lavando no coração o alvoroço de uma grande saudade, e nos olhos a imagem sedutora da caboclinha querida.
Maria Rosa representava tudo para Lauzinho, que nunca se afeiçoara a outra moça, e, mesmo, não queria saber de outros amores.
Uma vez que fora fazer compras em Barra Bonita, uma sirigaita qualquer, de vestidinho curto e beiços vermelhos, tentara, muito sinsinhora, namoricar o coitado do sertanejo. Lauzinho, porém, não quisera saber de histórias. E quando, no sábado seguinte, foi visitar a Maria Rosa, achou-a mais amorável que nunca, na pureza sem par de seus dezoito anos, e no encanto inigualável de sua timidez inata.
Tudo para Lauzinho se resumia em Maria Rosa. Por causa dela vivia a mourejar, de sol a sol, em um promissor pedaço de chão. Por causa dela vinha, toda semana, nem que chovesse canivete, até o casarão branco do Euzébio das Neves gozar algumas horas de convívio com a deusinha de seus sonhos rústicos. E Maria Rosa bem que merecia tudo isso. Seus olhos eram tão bonitos... E seu amor parecia tão grande, tão do fundo do coração...
Naquele sábado Lauzinho chegara mais cedo que de costume. O sol só mostrava um pedaço de sua rodela vermelha, e as primeiras sombras da noite iam avançando, já longas e invencíveis, a leste do Pico Agudo, como que abençoando a faina árdua dos sertanejos valorosos. Estivera percorrendo trechos do terreno de um compadre do pai e, em compensação, trazia no peito mais floridas esperanças de logo conseguir o necessário para o casamento.
Maria Rosa recebeu-o com os mesmos olhos de sempre. Lauzinho não fazia nada por mal. Em nada, portanto, havia razão de zanga.
Um dia, as portas do casarão branco abriram-se para receber um tal de Dr. Ernesto, um engenheiro que andava estudando a região.
O trato do velho Euzébio cativou-o. E como tivesse de permanecer algum tempo naquelas bandas, aceitou a hospitalidade que lhe era oferecida.
— Mas, senhor Euzébio. Creio que o vou cansar com tanta amolação. O meu serviço é um pouco demorado...
— Que nada, seu doutor! A casa de caboclo pobre é rica de bondade. Tudo aqui é seu. Faz de conta que o Dr. Ernesto é agora de minha familiagem. Depois... O que é mais uma concha de feijão na panela. Graças a Deus e a Nossa Senhora da Aparecida, as coisas vão melhorando...
— Fico-lhe muito grato, senhor Euzébio. Quando houver oportunidade, retribuirei seus favores.
— Nem é preciso, doutor. Nem é preciso.
O doutor não pôde ficar indiferente aos encantos caboclos de Maria Rosa. A sertanejinha, no atravessar dos seus dezoito anos banais, estava no auge da floração do sexo.
Beleza espontânea, beleza sem artifícios, beleza que surgira e se aprimorara aos raios de todos os sóis, à umidade de todas as chuvas, ao contato de todo o oxigênio puro do sertão, ao descanso de todas as noites longas e calmas, ao gozo de uma vida sem maiores sensações do que pular da cama às cinco, receber no dorso macio as águas da cachoeirinha, trabalhar numa coisa e noutra, esperar o sábado e a vinda do Lauzinho; beleza amiga da natureza e cheia de castidade, Maria Rosa não tinha conhecimentos das armas irresistíveis que possuía para incendiar o coração dos homens e prendê-los nas malhas das paixões perdidas. Por isso, não levava a mal os olhares do engenheiro quando, de manhãzinha, lhe servia o café. Por isso, não via nas gentilezas extremadas mais do que uma gratidão ao bom acolhimento do pai.
Insone no leito fofo, o Dr. Ernesto revolvia-se, nervoso:
— Diabo de garota dinamite. E vá um pobre diabo ficar à vontade perto de um abismo destes.
No entanto, era preciso respeitar a casa do velho mineiro. Era preciso.
Certa vez — a vida gosta mesmo de jejuar com a gente, — certa vez, o engenheiro se viu a sós com Maria Rosa. O fogo do sol que lhe escaldara o sangue durante o dia, no meio do mato, deixara fagulhas nas veias. E disse da paixão que lhe andava no peito. E disse das seduções daquelas carnes magníficas. E disse da quebradeira que punha n’alma aquele olhar indefinível...
Maria Rosa, vermelhinha, vermelhinha, libertou as mãos e saiu correndo para o quarto, com o coração aos pulos. Viu-se em frente ao espelho de moldura feia que havia perto da cama da mãe. E só então começou a notar as linhas de seu corpo. E só então o sexo lhe bradou barbaramente do fundo das entranhas.
Quando Lauzinho apeou do cavalo, deu logo de frente com aquele rapaz de terno de casimira, bonito e passadinho, mal pôde disfarçar o enfado. Tinha um rancor invencível aos moços da cidade. Ainda mais no casarão branco do Seu Euzébio das Neves. Durante o domingo, causaram-lhe um aborrecimento imenso as maneiras gentis do doutor. E, pela primeira vez, voltou profundamente triste, montado no zaino do compadre Cornélio, e dentro da noite linda que as estrelas tornavam admirável com seu piscar malicioso.
No sábado seguinte, Lauzinho empurrou a porteira preguiçosa lá pelas quatro horas, quando o sol ainda estava impiedoso. Desencilhou o zaino, passou as costas da mão pela testa salpicada de suor, e ficou esperando a Maria Rosa, que ainda estava no córrego.
Quando chegou, ela lhe deu um cumprimento muito diverso do que ele estava acostumado a receber. A moçoila pareceu-lhe diferente, sem aquele olhar que demonstrava um amor muito sincero, muito do fundo do coração.
— Uai! Maria Rosa. Você parece que não ‘tava com saudade da gente...’
— Saudade? Como não? É que nem todo o dia tem pão quente. Não é toda a vez que eu posso estar aí, mostrando os dentes procê...
O engenheiro vinha chegando. Maria Rosa correu para dentro. E voltou depois com um vestido bonito, com o cabelo muito penteadinho, e até (pareceu a Lauzinho), e até de pintura no rosto.
O domingo foi insuportável. O moço sertanejo tinha ímpetos de esganar o tal Doutor Ernesto. Pois ele é que viera deixar indiferente a Maria Rosa, a deusinha de seus sonhos rústicos.
Ferido em seus brios, Lauzinho amarfanhou no coração o desejo de ser feliz um dia. E a sua despedida foi a coisa mais seca deste mundo. Tanto que saiu mais cedo do que de costume.
Quando a porteira gemeu preguiçosamente para deixar passar, pela última vez, um cavalo e um cavaleiro (o cavalo era o zaino do compadre Cornélio e o cavaleiro era o filho do mesmo compadre Cornélio) — o sol só mostrava um pedaço da rodela vermelha. E as primeiras sombras da noite iam avançando já, longas e invencíveis, a leste do Pico Agudo, como que amortalhando o desencanto que punha luto no coração do Lauzinho.
E o cavalo e o cavaleiro enveredaram pela estrada deserta, que leva pras bandas do Laranjinha, enquanto, lá no céu, as estrelas punham malícia no jeito de piscar...
Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
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