quinta-feira, 25 de julho de 2024

O. Henry (Noite Árabe em Madison Square)

 A Carson Chalmers, no seu apartamento perto da praça, Phillips trouxe o correio da tarde. Além da correspondência de rotina, havia dois envelopes tendo o mesmo carimbo postal estrangeiro. 

Em um dos envelopes recém-chegados continha uma fotografia de mulher. O outro, uma carta interminável, em cuja leitura Chalmers se absorveu muito tempo. A carta era de outra mulher, e encerrava farpas envenenadas, adoçadas com mel e emplumadas com insinuações referentes à mulher fotografada.

Chalmers rasgou a carta numa centena de pedacinhos e pôs-se a gastar o seu caro tapete andando de cá para lá sobre ele. Assim age um animal selvagem quando é enjaulado, e assim age um homem enjaulado quando se vê perdido numa selva de dúvidas.

Aos poucos, a inquietação se acalmou. O tapete não era mágico. Podia viajar sobre ele dezesseis pés; três mil milhas estavam além do seu poder.

Phillips surgiu. Nunca entrava; surgia invariavelmente, como um gênio bem azeitado.

– Vai jantar aqui ou fora, senhor? — perguntou.

– Aqui — disse Chalmers — e dentro de meia hora.

Prestou ouvidos, sombriamente, às rajadas de janeiro, que faziam da rua deserta um trombone eólio.

– Espere — disse ao gênio em vias de desaparecer. — Quando vinha para casa, vi no fim da praça, uma porção de homens formando fila. Havia um trepado sobre não sei que, falando. Por que esses homens fazem fila, e por que estão ali?

– São gente sem teto, senhor — respondeu Phillips. — O homem sobre o caixote procura arranjar alojamento para eles passarem a noite. As pessoas vêm ouvi-lo e dão-lhe dinheiro. Então, ele encaminha a alguma casa e cômodos tantos homens quantos o dinheiro possa pagar. Por isso fazem fila; são encaminhados para os alojamentos na ordem em que chegam.

– À hora em que o jantar for servido — disse Chalmers —, traga um desses homens aqui. Jantará comigo.

– Q-q-qual ? - perguntou Phillips, gaguejando pela primeira vez em todo o seu tempo de serviço.

– Escolha a esmo — disse Chalmers. — Veja que esteja razoavelmente sóbrio… e uma certa dose de limpeza não será de desprezar. É tudo.

Era coisa inusitada Carson Chalmers bancar o califa. Mas naquela noite sentia a ineficácia dos antídotos convencionais para a melancolia. A fim de melhorar o humor, carecia de algo caprichoso e chocante, algo de caráter extravagante e arábico.

Em meia hora, Phillips cumpriu os seus deveres de escravo da lâmpada. Os garçons do restaurante embaixo haviam trazido o deleitoso jantar. A mesa, posta para dois, fulgurava festivamente à luz dos círios com pantalhas rosas.

E então Phillips, como se introduzisse um cardeal - ou mantivesse sob custódia um assaltante -, impeliu suavemente para dentro da sala o tiritante conviva, que fora arrancado à fila de hóspedes mendicantes.

É coisa comum chamar-se naufrágios a tais homens;  se a expressão for aqui usada, sê-lo-á no caso específico de um barco desgraçado pelo fogo. Alguma combustão bruxuleante iluminava ainda o casco à deriva. Sua face e suas mãos haviam sido recentemente lavadas — rito no qual Phillips insistira como homenagem póstuma às convenções trucidadas. A luz das velas iluminava o recém-vindo, verdadeira aberração no decoroso ambiente. Sua face era de um branco doentio, coberta até quase os olhos por um restolho que tinha o tom do pelame avermelhado de um setter irlandês. O pente de Phillips não alcançara dominar o cabelo castanho claro, todo emaranhado, que se havia conformado ao contorno de um chapéu usado permanentemente. Seus olhos estavam cheios de desesperançado e ardiloso desafio, como o que se vê nos olhos de um animal acossado pelos seus algozes. O casaco surrado estava abotoado até em cima, mas um quarto de polegada de colarinho redentor se mostrava acima dele. Suas maneiras demostraram ser singularmente isentas de embaraço quando Chalmers se ergueu de sua cadeira do outro lado da mesa circular.

- Se me conceder a honra — disse o anfitrião — ficarei encantado com a sua companhia ao jantar.

— Meu nome é Plumer — disse o conviva estradeiro, em tom áspero e agressivo — Se você for como eu, gostará de saber o nome da pessoa com quem vai jantar.

— Eu estava a pique de dizer — continuou Chalmers, algo apressadamente — que o meu é Chalmers. Quer sentar-se ali?

Plumer, o das plumas amarrotadas, dobrou os joelhos a fim de que Phillips empurrasse a cadeira para ele sentar-se. Tinha aparência de quem frequentara antes mesas servidas por garçons. Phillips apresentou-lhe as anchovas e as azeitonas.

— Bom! — latiu Plumer —, vai ser servido à francesa, pois não? Está bem, meu jovial soberano de Bagdá. Serei sua Xerazade até o fim, até os palitos. Você é o primeiro Califa de sainete genuinamente oriental que encontro em pleno inverno. Que sorte! E eu era o quadragésimo terceiro da fila. Acabara de contar quando o seu bem-vindo emissário veio convidar-me para o festim. Eu tinha tanta possibilidade de arranjar uma cama hoje à noite quanto teria de ser o próximo Presidente. Gostaria de ouvir a triste história da minha vida, Mr. Al-Rachide? Prefere um capítulo a cada prato, ou a edição integral com os charutos e o café?

— A situação não parece ser inédita para você — disse Chalmers com um sorriso.

— Pelo cavanhaque do profeta, não! — respondeu o conviva. — Nova Iorque está tão cheia de Haruns Al-Rachides de fancaria com Bagdá de pulgas. Por causa da minha história, já me vi detido, com um lauto jantar suspenso sobre a cabeça, mais de vinte vezes. Veja se é capaz de descobrir em Nova Iorque alguém que lhe dê algo por nada. Escrevem curiosidade e caridade com o mesmo jogo de letras de armar. A maioria lhe pagará um chop-suey; uns poucos bancarão os califas na base do filé mignon, mas uns e outros não o deixarão em paz enquanto não lhe arrancarem a autobiografia completa, com notas, apêndices e fragmentos inéditos. Oh, já sei o que fazer quando vejo vitualhas à minha frente na velha e querida Bagdá-Sobre-o-Metropolitano. Toco o asfalto três vezes com a fronte e preparo-me para contar patranhas em troca da janta. Declaro-me descendente do falecido Tommy Tucker, que era forçado a propiciar harmonia vocal em troca da sua pré-digerida sopa de trigo com spoopju.

— Não lhe peço que conte a sua história — disse Chalmers — Digo-lhe, com franqueza, que foi um capricho repentino que me fez mandar vir um estranho para jantar comigo. Asseguro-lhe que nada tem a recear da minha curiosidade.

— Ora, que bobagem! — exclamou o conviva, atacando entusiasticamente a sopa — Não me importo nem um pouco. Sou uma revista oriental bastante razoável, com capa vermelha e folhas cortadas quando o Califa viaja. Na verdade, nós, gente que não tem cama para dormir, cobramos uma espécie de tarifa sindical para coisas dessa espécie. Há sempre alguém querendo saber o que nos fez cair tão baixo na vida. Por um sanduíche e um copo de cerveja, digo-lhes que foi a bebida. Por um bife com couve e café, dou-lhes uma dose da história do impiedoso-senhorio-seis-meses-no-hospital-emprego-perdido. Um bom filé e uns cobres para a dormida merecem a tragédia de Wall Street da fortuna evaporada e da progressiva decadência. Este é o primeiro banquete de classe que me acontece. Não tenho pronta nenhuma história que lhe faça jus. Pois, Mr. Chalmers, já lhe digo o que vou fazer: vou contar-lhe, em troca, a verdade, se dispuser a escutá-la. Será mais difícil de acreditar do que as histórias inventadas.

Uma hora mais tarde o conviva árabe recostou-se na cadeira com um suspiro de satisfação, enquanto Phillips trazia o café e os charutos e tirava a mesa.

- Já ouvia falar alguma vez em Sherrard Plumer? — perguntou, com um sorriso estranho.

— Lembro-me do nome — disse Chalmers — Creio que era um pintor bastante proeminente há uns anos atrás.

— Cinco anos — respondeu o convidado. — Desde então, afundei como um pedaço de chumbo. Sou Sherrard Plumer. Vendi o último retrato que pintei por dois mil dólares. Depois disso, não arranjaria quem posasse nem para um quadro grátis.

— Que foi que aconteceu? — não pôde Chalmers deixar de perguntar.

— Engraçado — respondeu Plumer, sombriamente, — Nem eu mesmo entendi bem a coisa. Durante algum tempo, nadei como uma rolha. Meti-me na roda grã-fina e arranjei encomendas a torto e direito. Os jornais me chamavam o pintor da moda. Então começaram a acontecer coisas engraçadas. Sempre que eu terminava um quadro, vinham pessoas vê-lo e punham-se a cochichar e a entreolhar-se.

“Logo descobri qual era o transtorno. Eu tinha uma grande destreza para externar, no retrato, o caráter oculto da pessoa retratada. Não sei como o conseguia... pintava o que via... mas sei que me arruinou. Alguns dos meus modelos ficaram terrivelmente zangados e recusaram seus retratos. Pintei o retrato de uma senhora de sociedade, muito bela e muito popular. Quando estava pronto, o marido dela olhou-o com uma expressão peculiar no rosto, e na semana seguinte entrou com um pedido de divórcio.

“Lembro-me do caso de um conhecido banqueiro que posou para mim. Enquanto o retrato dele estava ainda em exibição no meu atelier, apareceu um conhecido seu para examiná-lo. 'Deus meu', disse, 'ele tem mesmo essa aparência?' Respondi que o retrato fora considerado extremamente fiel. 'Nunca reparara antes nessa expressão nos olhos dele', declarou o visitante. 'Acho que vou dar um pulo até a cidade e transferir o meu depósito bancário.' Foi até a cidade, mas o seu depósito bancário desaparecera, juntamente com o Senhor Banqueiro.

"Não demorou muito para me forçarem a abandonar o negócio. As pessoas não gostam de ver suas mesquinharias secretas mostradas num quadro. Podem sorrir, contorcer as feições, e enganá-lo, mas o retrato não pode. Não houve jeito de eu arranjar encomenda para nenhum outro quadro, e tive de desistir. Trabalhei durante algum tempo como desenhista de jornal , e depois para um litógrafo, mas o meu trabalho com ambos acabou resultando na mesma encrenca. Se eu desenhava sobre uma fotografia, meu desenho mostrava características e expressões que você não poderia encontrar na foto; acho, porém, que estavam no original, sem dúvida alguma. Os fregueses provocavam brigas incríveis, especialmente as mulheres, e nunca consegui manter-me muito tempo num emprego. Assim comecei a repousar a minha fatigada cabeça no seio da Boa Garrafa, em busca de consolo. E não tardou muito, estava eu na fila do leito grátis e praticando ficção oral, por esmolas, nos bazares alimentícios. Será que a expressão da verdade vos entedia, ó Califa? Posso mudar para o desastre de Wall Street, se preferir, mas isso requer uma bebedeira, e receio que não possa suportá-la depois deste excelente jantar.”

— Não, não — disse Chalmers, gravemente —, você me interessa muito. Todos os seus retratos revelavam algum traço desagradável, ou havia alguns que passavam indenes pela prova do seu singular pincel?

— Alguns? Sim — respondeu Plumer. — As crianças, geralmente, muitas mulheres, e um número razoável de homens. Nem todas as pessoas são más, sabe? Quando eram boas, os retratos saíam bons. Como já disse, não sei explicá-los, mas estou-lhe relatando fatos.

Sobre a escrivaninha de Chalmers jazia a foto que recebera naquele mesmo dia na mala estrangeira. Minutos mais tarde, pusera Plumer a trabalhar num esboço, a pastel, da fotografia. Ao cabo de uma hora, o artista ergueu-se e espreguiçou-se fatigadamente.

— Está pronto — bocejou. - Vai perdoar-me por ter demorado tanto. Interessei-me pelo trabalho. Deus, como estou cansado! Não arranjei cama na noite passada, sabe. Acho que vou dar-vos as boas noites agora, ó Comandante dos Fiéis!

Chalmers acompanhou-o até a porta e enfiou-lhe um punhado de notas na mão.

— Oh, aceito! — disse Plumer. — Isso está incluído na queda. Obrigado. Especialmente pelo esplêndido jantar. Vou dormir sobre penas, hoje à noite, e sonhar com Bagdá. Espero que tudo não se revele apenas um sonho, amanhã de manhã. Adeus, excelentíssimo Califa!

De novo pôs-se Chalmers a passear, inquieto, pelo tapete. Mas seu itinerário se afastava da mesa onde jazia o esboço a pastel tanto quanto o permitiam as dimensões do aposento. Duas, três vezes tentou aproximar-se da mesa, mas em vão. Podia enxergar o castanho, o dourado e o marrom das cores, mas havia em torno da mesa uma parede construída pelos seus temores, que o mantinha à distância. Sentou-se e procurou acalmar-se. Ergueu-se e tocou a sineta chamando Phillips.

— Há um jovem artista neste edifício — disse — um certo Mr. Reineman... sabe qual é o seu apartamento?

— Último andar, em frente, sir — respondeu Phillips.

— Vá até lá e peça-lhe por favor que venha até aqui por alguns minutos.

Reineman veio imediatamente. Chalmers apresentou-se.

— Mr. Reineman — disse —, há um pequeno quadro a pastel naquela mesa lá. Ficar-lhe-ia muito grato se pudesse dar-me a sua opinião quanto aos seus méritos artísticos como retrato.

O jovem artista adiantou-se até a mesa e apanhou a pintura. Chalmers voltou-lhe as costas, apoiando-se ao encosto de uma cadeira.

— Que... que acha dele? — perguntou, lentamente.

— Como desenho — respondeu o artista —, não tenho palavras para louvá-lo. É trabalho de um mestre, um mestre audacioso, fino e veraz. Intriga-me um pouco; faz anos que não vejo um pastel tão bom assim.

— O rosto, homem... o tema... o original... que diria dele?

— O rosto — disse Reineman — é a face de um dos mesmos anjos do Senhor. Posso perguntar-lhe quem...

- Minha mulher! — berrou Chalmers, voltando-se, correndo para o atônito artista, agarrando-lhe a mão e batendo-lhe nas costas. — Está viajando pela Europa. Leve esse esboço, rapaz, pinte o melhor quadro de sua vida, e deixe o preço comigo.

Fonte> O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público.

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