O administrador do cemitério de São Geraldo, Alfredo Costa Ximenes, residia há anos, na rua Real Grandeza, quando, em março último, forçado a mudar de casa, foi alugar um prédio de segunda ordem, de que era proprietário o Comendador Augusto Gonçalves Teixeira, que lhe foi dizendo logo, sem circunlóquios:
— O aluguel da casa é quinhentos e vinte mil réis, fora a pena d'água e a taxa sanitária. Além disso para que eu lhe dê a chave, o senhor terá de pagar-me seis contos de réis, de "luvas".
Debalde o honrado funcionário da Morte chorou, suplicou, implorou; o Comendador mostrou-se inabalável na sua exigência, e ele teve de arranjar, mesmo, as "luvas", para não se ver de uma hora para outra, lançado à rua com a família.
Dois meses depois desse episódio, estava o administrador, uma tarde, no seu posto, na secretaria da necrópole, quando parou ao portão, buzinando e rolando, um cortejo funerário. Levada às suas mãos a papeleta fúnebre, o funcionário viu pelo nome, que o morto era, nada mais, nada menos, do que o seu senhorio, o Comendador Gonçalves Teixeira e teve, de repente, a ideia de uma represália: chegou ao portão, onde o esquife já repousava, agaloado, na carreta do cemitério, e recebendo da família a chave do caixão, mandou rodar o ataúde no rumo da sepultura.
Terminadas, ali, entre lágrimas e vertigens, as angustiosas despedidas da praxe, um filho do defunto mandou chamar o administrador, a quem havia dado a chave do esquife, para que fosse identificar o morto, e fechar o caixão.
— Pronto! — apresentou-se Ximenes, apertado na sua sobrecasaca preta. — Que desejam?
— A chave! — explicou um parente do defunto.
— Suspendam a tampa do esquife! — ordenou o administrador.
Um amigo abriu o caixão funerário, onde jazia, inteiriçado, vestido de preto o corpo do desventurado capitalista.
Ximenes passou, meticuloso, a vista sobre o cadáver, e, vendo-lhe as mãos nuas, cruzadas sobre o peito bojudo, reclamou, severo:
— E as "luvas"? Querem, então, que ele desça à derradeira "morada" sem as "luvas"?
E não entregou a chave!
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.
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