quinta-feira, 4 de julho de 2024

Recordando Velhas Canções (Pau de arara)


Compositores: Carlos Lyra e Vinicius de Moraes

Eu um dia cansado que eu tava
Da fome que eu tinha
que eu num tinha nada
que fome que eu tinha
que seca danada no meu Ceará
Eu peguei
e juntei os restinhos de coisas que eu tinha
duas calça velha e uma violinha
e num pau-de-arara toquei para cá

E de noite eu ficava na praia de Copacabana
Zanzando na praia de Copacabana
Dançando o xaxado pra moças oià

Virge Santa que a fome era tanta
Que nem voz eu tinha
Meu Deus quanta moça
Que fome que eu tinha
Que seca danada no meu Ceará

Foi aí que eu resolvi comer gilete. 
Tinha um compadre meu lá de Quixeramobim, que ganhou um dinheirão comendo gilete na praia de Copacabana.
De dia ele ia de casa em casa pedindo gilete velha e de noite ele comia aquilo tudinho pro pessoal ver. 
Eu num sei não Elis, mas eu acho que ele comeu tanto, que quando eu cheguei lá na praia, aquele pessoal já tava até com indigestão, de tanto ver o camarada comer gilete.
Uma vez, eu tava com tanta fome que falei assim prum moço que ia passando:
-Decente, deixa eu cume uma giletezinha, pra vosmecê vê?
Então ele me respondeu assim:
- Sai prá lá pau-de-arara. Tú não te manca não?
- Oh! Distinto, só uma, que eu num comi nadinha inda hoje.
- Tú enche, hein, pau-de-arara?
Aquilo me deixou tão aperriado, que se num fosse o amor que eu tinha na minha violinha, eu tinha arrebentado ela na cabeça daquele pai-d'égua.

Puxa vida não tinha uma vida
pior do que a minha
Que vida danada, que fome que eu tinha
Zanzando na praia pra lá e pra cá.
Quando eu via toda aquela gente
num come que come, eu juro que tinha
saudade da fome, da fome que eu tinha
No meu Ceará
E daí eu pegava e cantava
e dançava o xaxado
E só conseguia porque no xaxado
A gente só pode é mesmo se arrastá

Virge Santa
Que a fome era tanta
que até parecia que mesmo xaxando
meu corpo subia igual se tivesse
querendo voar

Às veiz a fome era tanta, que vorta e meia a gente rumava uma briguinha pra ir comer a bóia no xadrez.
Êta quentinho bom na barriga! Mas, com perdão da palavra, a gente devorvia tudo dispois, porque a bóia já vinha estragada... Mas enquanto ela ficava ali dentro da barriga, quietinha... Que felicidade!
Não, mas agora as coisas estão miorando. Tem uma senhora muito bondosa lá no Leblon, que gosta muito de ver eu comer é caco de vrido. Isso é que é bondade da boa! Com isto eu já juntei uns 500 mil réis.
Quando eu tiver mais um pouquinho, vou simbora, vorto pro meu Ceará.

Vou simbora pro meu Ceará
Porque lá tenho um nome
Aqui num sou nada, sou só Zé com fome
Sou só pau-de-arara, nem sei mais cantá.
Vou picar minha mula, vou antes que tudo arrebente
porque to achando que o tempo tá quente,
Pior do que anda num pode ficar.
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A Jornada de um Migrante Nordestino: A Luta pela Sobrevivência em 'Pau De Arara'
A música 'Pau De Arara', interpretada por Ary Toledo, retrata a dura realidade de um migrante nordestino que, cansado da fome e da seca no Ceará, decide buscar uma vida melhor no Rio de Janeiro. A letra é um relato sincero e doloroso das dificuldades enfrentadas por muitos nordestinos que, na esperança de encontrar melhores condições de vida, se aventuram em outras regiões do Brasil. O 'pau de arara' mencionado no título e na letra é uma referência ao meio de transporte precário utilizado por muitos migrantes, que viajavam em caminhões adaptados, muitas vezes em condições desumanas.

Ao chegar ao Rio de Janeiro, o protagonista se depara com uma realidade igualmente difícil. Ele passa as noites na praia de Copacabana, tentando ganhar a vida dançando e cantando o xaxado, uma dança típica do Nordeste. A fome, que parecia insuportável no Ceará, continua a ser uma presença constante em sua vida, e ele se vê zanzando pela cidade, observando a abundância ao seu redor e sentindo saudades até mesmo da fome que conhecia em sua terra natal. A letra transmite um sentimento de desespero e desilusão, mostrando que a migração não trouxe a solução esperada para seus problemas.

A música também aborda a perda de identidade e dignidade que o migrante enfrenta. No Ceará, ele tinha um nome e uma identidade, mas no Rio de Janeiro, ele se sente como 'só Zé com fome', um ninguém. A decisão final de retornar ao Ceará, apesar das dificuldades, reflete um desejo de recuperar sua identidade e dignidade, mesmo que isso signifique voltar à fome e à seca. 'Pau De Arara' é uma poderosa narrativa sobre a luta pela sobrevivência, a busca por dignidade e a saudade de casa, temas que ressoam profundamente na experiência de muitos migrantes nordestinos.

Carlos Lyra ainda vivia sua fase de maior criatividade — que coincidiu com o melhor período do contemporâneo Tom Jobim — quando começou a sua parceria com Vinícius de Moraes. Então, certo dia, ao entregar ao poeta uma fita com várias melodias para serem letradas, dele recebeu a sugestão de transformarem aquele repertório num musical.

Assim surgiu “Pobre Menina Rica”, com Vinícius criando-lhe as letras, o enredo e os personagens numa estada em Petrópolis, onde também criara os versos de “Garota de Ipanema”. Com o papel título destinado a Nara Leão, a peça narrava a historinha de uma solitária menina rica, que se apaixonava por um mendigo, integrante de uma inacreditável comunidade de desvalidos, estabelecida ao lado de sua casa.

Com tal enredo servindo de pretexto para a apresentação de uma série de belas canções, como “Primavera”, “Maria Moita”, “Sabe Você” e “Samba do Carioca”, a peça foi inicialmente exibida no Teatro Maison de France, sendo depois levada para o Teatro de Bolso, quando vários atores seriam substituídos. Entre estes estava o paulista de Bauru, Ary Toledo, que pediu a Lyra para gravar “Pau de Arara”, a música que cantava no palco.

Essa composição era inspirada num tipo real, um pobre nordestino que sobrevivia dançando xaxado na praia de Copacabana e que, de repente, teve a ideia de melhorar seus rendimentos.., comendo gilete.

Em três longas estrofes, entremeadas por trechos recitados, a canção desfia espirituosamente as desventuras do personagem, que no final promete um sensato retorno às origens: “Vou-me embora pro meu Ceará / porque lá tenho um nome / e aqui não sou nada, sou um Zé-com-Fome.”

Depois de uma gravação realizada em estúdio e lançada num compacto, Ary Toledo voltou a gravar “Pau de Arara”, desta vez ao vivo, no Teatro Record, durante o programa “O Fino da Bossa”, versão que ganhou gargalhadas estrepitosas da plateia e de Elis Regina, o que acabou enriquecendo em alegria e espontaneidade a performance do intérprete.

O sucesso do disco foi tamanho, que fez muita gente pensar que Ary Toledo era realmente “um mísero cearense”, autor de “O Comedor de Gilete”, nome pelo qual a composição ficou conhecida.

Relembrando “Pobre Menina Rica”, Carlinhos Lyra conta que, ao tomar conhecimento do enredo da peça (na qual o mendigo seresteiro), ponderou com o parceiro: “Mas, Vinícius, você não acha assim meio artificial esse negócio de uma menina rica e bonitona se apaixonar por um mendigo?” Ao que o poeta respondeu: “Acontece que esse é um mendiguinho muito simpático, incrementado, arrumadinho”, e, reforçando a argumentação, fulminou: “Além do mais era primavera parceirinho, primavera, entendeu?” (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).

Fontes:

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