Meu irmão Kafat é cego de nascença e era um dos chefes da confraria dos mendigos em Bagdá. Um dia, Alá levou-o a uma mansão. Bateu com seu cajado na porta. Perguntaram do interior da casa: “Quem é?” Meu irmão não respondeu.
Devo dizer-lhe, ó Comandante dos Fiéis, que meu irmão Kafat, que era o mais astucioso dos mendigos, tinha um sistema. Batia na porta, mas nunca respondia a quem perguntasse: “Quem está aí”?” Ficava calado até que alguém abrisse a porta, sabendo que se dissesse: “É um mendigo pedindo esmola”, os moradores não abririam, mas gritariam: “Que Alá tenha pena de ti”, e o mandariam seguir seu caminho.
Assim, quando, naquele dia, alguém perguntou: “Quem é?” meu irmão não respondeu. Após um momento, a porta foi aberta por um homem de cara tão amarrada que, se meu irmão a pudesse ter visto, com certeza teria ido embora sem nada pedir. Mas cada um carrega seu destino pendurado ao pescoço.
O homem perguntou: “Que queres?”
Kafat respondeu: “Alguma esmola em nome do Compassivo.”
– És cego? perguntou o homem.
- Sou cego e muito pobre.
- Dá-me a mão e conduzir-te-ei.
Meu irmão estendeu a mão, e o homem conduziu-o, uma escada após a outra, até um alto terraço. Kafat estava sem fôlego, mas animava-o a esperança de receber as sobras de um grande festim.
Finalmente, o dono da casa perguntou: “Que queres, ó cego?
- Esmolas, pelo amor de Alá, respondeu meu irmão, surpreso.
- Possa Alá abrir outra porta para ti.
- Ó coisa, disse Kafat com indignação, não me podias ter dado essa resposta quando estávamos embaixo?
- Ó sujeira mais vil, retrucou o outro, não podias responder quando perguntei quem estava batendo na porta?
- Se não quiseres ser chutado como uma bola, trata de sair daqui por ti mesmo, ó desastrado conjunto de misérias.
Meu pobre irmão, cego como é, teve que descer as escadas sozinho. Quando faltavam vinte degraus, escorregou, rolou pelo restante da escada e bateu a cabeça no chão. Saiu pela rua, queixando-se amargamente. Breve, dois de seus companheiros juntaram-se a ele e perguntaram-lhe o que tinha. Contou-lhes, e acrescentou: “Agora, meus amigos, devo ir para casa apanhar algum dinheiro para comprar comida neste dia funesto. Terei que mexer em nossas economias, as quais já são bastante gordas, como sabeis, e foram colocadas sob minha guarda.”
Ora, durante todo esse tempo, o homem que havia tratado meu irmão com tanta vileza - e que era um grande bandido seguia-o pela rua sem ser visto nem por ele nem pelos dois amigos cegos que o acompanhavam. Continuou a segui-los até a casa de meu irmão; e quando os três entraram lá, insinuou-se atrás deles antes que fechassem a porta. Meu irmão retirou o dinheiro da confraria do esconderijo, e os três verificaram que já somava 10 mil dinares. Ficaram com algumas moedas e recolocaram o tesouro no seu esconderijo. Só então sentiram a presença do intruso. Pegaram-no e, mesmo cegos, conseguiram dominá-lo e começaram a gritar: “Ladrão! Ladrão! Socorro, ó muçulmanos, socorro!”
Muitos vizinhos acorreram. Vendo isto, o bandido cerrou os olhos, fingindo ser cego também, e começou a gritar: “Por Alá, ó amigos, sou um mendigo cego, sócio destes três. Eles estiveram tentando matar-me para ficarem com minha parte nas economias que fizemos juntos e que já somam 10 mil dinares. Juro-o por Alá, pelo sultão, pelo emir! Levem-me, oh, levem-me ao uáli.”
Nesse ínterim, os guardas já haviam chegado e arrastaram os quatro querelantes até o palácio do uáli. “Quem são esses homens?” perguntou o uáli.
O ladrão respondeu logo: “Justo e penetrante uáli, ouve-me e saberás a verdade. Contudo, como irias acreditar em mim antes de submeter-me à tortura? Manda bater em mim, primeiro, depois nestes três companheiros meus e então contar-te-emos toda a verdade.”
- Estendei este homem no chão e batei nele, já que o deseja tanto, ordenou o uáli.
Os guardas apanharam o homem, estenderam-no no chão e cobriram-lhe o corpo com chicotadas. Após um momento, o homem começou a gemer e abriu um olho. Após outros golpes, abriu deliberadamente o outro olho.
Vendo isso, o uáli gritou furioso: “Que vergonha é essa!”
O ladrão gemeu: “Parai de bater em mim, e contarei tudo.”
O uáli deu as ordens devidas, e o homem pôs-se de pé e disse:
“Somos quatro ladrões que fingimos ser cegos para extorquir esmolas e entrar nas casas e olhar as mulheres na intimidade. Então, corrompemo-las e agarramos elas. Depois, roubamo-las e preparamos planos para os assaltantes. Estivemos fazendo isso por muito tempo, e já juntamos 10 mil dinares. Hoje, pedi minha parte; mas eles se recusaram a entregá-la e teriam batido em mim até me matar se os guardas de nosso senhor uáli não me tivessem socorrido. Essa é toda a verdade que meus companheiros confirmarão quando forem submetidos à tortura. Eles são bastante duros e manterão os olhos fechados por muito tempo.”
Enganado pelo audacioso ladrão, o uáli mandou bater em meu irmão até que perdeu os sentidos. Quando voltou a si, recebeu mais trezentas chicotadas, não obstante seus gritos de que era cego de nascença. Seus dois companheiros foram submetidos ao mesmo tratamento, sem abrir, naturalmente, os olhos. Por excesso de perversidade, o ladrão exortava-os a abrir os olhos, repetindo:
“Respeitai nosso senhor uáli. Abri os olhos. Confessai a verdade.”
O uáli mandou apanhar o dinheiro da confraria na casa de Kafat, entregou a quarta parte, isto é, 2.500 dinares, ao bandido e ficou com o saldo.
Finalmente, dirigiu-se a meu irmão e a seus dois companheiros nestes termos:
“Miseráveis embusteiros, comeis o pão que é uma dádiva de Alá e cometeis os piores delitos em seu santo nome, fingindo ser cegos. Dai o fora daqui e não sejais mais vistos em qualquer parte de Bagdá.”
Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
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