sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Roberto Tchepelentyky (Trovas em Preto & Branco)


1
Amor, estranha magia,
do coração e da mente.
Com toda sua alquimia,
nos faz um adolescente.
2
À noite, em frente à TV,
a vovó e o manto dela...
Ela dorme e nada vê,
o manto assiste à novela…
3
"Bate" a inspiração na gente...
Verso nenhum se aquieta,
quando Deus, onipotente,
nos permite ser poeta!
4
Deixa o que passou "de lado",
a vida é um ensinamento...
Pois lamentar o passado
é correr atrás do vento!…
5
E o velhinho gritou: “Opa!...”
Depois de tanta procura...
no prato de sua sopa,
encontrou a dentadura.
6
O amargor da despedida
de alguém que amamos demais,
é ter o sabor na vida
do “gosto de nunca mais”!…
7
O destino escreve a escolha
do amor de nós dois assim:
Páginas da mesma folha...
Tu... de costas para mim!…
8
O teatro é fantasia,
mas, às vezes, como tal,
ninguém o diferencia
da nossa vida real…
9
Partiste... E a nossa amizade
no infinito se enternece...
Tu me mandas a saudade,
eu te mando a minha prece!…
10
Pra aquela visita chata,
o que me deixa mais louco,
é ouvir a frase insensata:
"Já vai? Fica mais um pouco"!…
11
Teu “jogo de amor” peralta,
por ciúme, nos devora:
- tu cobraste a minha falta,
batendo o “pênalti” fora! …
12
Vive a "página da vida"
nem que seja a "solavanco"!...
Pior é quem na "partida",
carimba a página: "Em branco"!

Trovas de Roberto Tchepelentyky em Preto & Branco
por José Feldman

As trovas uma a uma: temas, análise, relação com poetas brasileiros e estrangeiros e suas características. 

As trovas de Roberto Tchepelentyky são uma bela expressão da poesia popular, capturando emoções e situações cotidianas com humor e reflexões profundas.

Trova 1. 
Tema: O amor como uma força transformadora.
A magia do amor é apresentada como um fenômeno que afeta tanto o coração quanto a mente. A metáfora da "alquimia" sugere que o amor tem o poder de criar algo novo e maravilhoso, comparando os sentimentos ao estado de adolescência, onde tudo é intenso e vibrante. Destaca a magia do amor e sua capacidade de nos fazer sentir jovens e cheios de vida.

Vinicius de Moraes: é conhecido por sua poesia lírica sobre o amor, frequentemente explorando sua beleza e complexidade. Seus versos transmitem a intensidade e a magia do amor, assim como a transformação que ele provoca nas pessoas.

Adélia Prado: também aborda o amor de maneira profunda, ligando-o à espiritualidade e à experiência humana, com uma linguagem simples, mas repleta de emoção.

Pablo Neruda (Chile, 1904-1973): reconhecido por sua poesia apaixonada e intensa, frequentemente explorando o amor em suas diversas facetas. Ex: Soneto XVII. Neruda foi influenciado pelo modernismo latino-americano, especialmente na busca por novas formas de expressão poética. A técnica surrealista de imagens vívidas e sonhos se reflete em sua poesia, especialmente em seus poemas amorosos e políticos.

Elizabeth Barrett Browning (Reino Unido, 1806-1861): é famosa por sua obra lírica sobre o amor, especialmente em seu soneto que expressa a profundidade do sentimento amoroso. Ex: Sonhos de Amor (Soneto 43). A emotividade e a valorização da individualidade caracterizam sua obra, típica do movimento romântico. Também incorpora referências a mitologia e literatura clássica em seus sonetos.

Trova 2. 
Tema: A vida familiar e a rotina.
A cena retratada é comum e íntima, mostrando a avó, símbolo de sabedoria e tradição, em um momento de descontração. O contraste entre a avó adormecida e o "manto" que "assiste" à novela sugere uma crítica sutil ao tempo que passa, onde até os objetos têm vida própria nas narrativas da televisão.

Carlos Drummond de Andrade: frequentemente retrata o cotidiano e a vida familiar em suas obras, utilizando uma linguagem coloquial para capturar a essência da experiência humana.

Cecília Meireles: explora temas familiares e a passagem do tempo, refletindo sobre a vida em suas nuances. Sua poesia combina lirismo e simplicidade.

Walt Whitman (EUA, 1819-1892): geralmente retrata a vida cotidiana e a experiência humana em sua poesia, celebrando a simplicidade e a beleza do comum. Ex: Leaves of Grass. Foi profundamente influenciado pelo transcendentalismo, enfatizando a conexão entre o indivíduo, a natureza e o divino. Seu amor pela democracia e pela diversidade da experiência americana permeia sua poesia.

Langston Hughes (EUA, 1902-1967): explorou a vida da comunidade afro-americana, abordando temas cotidianos e familiares com uma voz autêntica. Ex: The Weary Blues. Hughes foi uma figura central no Harlem Renaissance, refletindo as experiências da comunidade afro-americana em sua obra. O ritmo e a musicalidade do jazz e do blues influenciaram seu estilo poético, criando um som único.

Trova 3. 
Tema: O ato de criar e a inspiração.
Aqui, a inspiração é personificada como uma força que "bate" na pessoa, quase como uma intervenção divina. A referência a Deus sugere que a criatividade é um presente e uma responsabilidade, enfatizando a relação entre o divino e o humano na arte.

Fernando Pessoa: é famoso por suas reflexões sobre a criação poética e a inspiração, muitas vezes abordando a busca por significado e a relação entre o poeta e o divino.

Mário Quintana: trata da inspiração de maneira leve e divertida, muitas vezes refletindo sobre a simplicidade e a beleza do ato de criar.

Rainer Maria Rilke (Áustria, 1875-1926): é conhecido por suas reflexões sobre a arte e a inspiração, frequentemente ligando a criação poética à espiritualidade. Ex: Poema: Cartas a um Jovem Poeta. Rilke foi influenciado pelo romantismo e pelo simbolismo, explorando a espiritualidade e a busca por significado. As reflexões filosóficas sobre a condição humana e a solidão estão presentes em sua obra.

Robert Frost (EUA, 1874-1963): aborda a vida rural e a criação poética, explorando a inspiração que vem da natureza e da experiência. Ex: The Road Not Taken. Frost foi influenciado pela paisagem rural dos Estados Unidos, que permeia sua poesia. Seu estilo realista e acessível reflete a vida cotidiana e os dilemas humanos.

Trova 4. 
Tema: Aceitação e aprendizado.
Esta trova fala sobre a importância de viver no presente e aprender com o passado, em vez de se prender a ele. A metáfora de "correr atrás do vento" ilustra a futilidade de lamentar o que não pode ser mudado, incentivando uma visão mais otimista da vida.

Cecília Meireles: além de abordar a vida familiar, Cecília frequentemente fala sobre o tempo e a aceitação, enfatizando a importância de viver no presente. 

Clarice Lispector: embora prosaísta, Lispector explora a psicologia e a aceitação do passado em seus textos, refletindo sobre a experiência humana e o aprendizado.

William Wordsworth (Reino Unido, 1770-1850): fala sobre a importância do presente e da natureza como fonte de inspiração e aprendizado. Ex: I Wandered Lonely as a Cloud. É um dos principais poetas românticos, enfatizando a natureza, a emoção e a experiência pessoal. A busca pelo sublime na natureza e nas emoções humanas é um tema central em sua obra.

T.S. Eliot (Reino Unido, 1888-1965): explora temas de tempo e memória, refletindo sobre a experiência humana e a aceitação do passado. Ex. de poema: The Love Song of J. Alfred Prufrock. Eliot é uma figura central do modernismo, refletindo o desespero e a fragmentação da sociedade moderna. Suas obras são influenciadas por suas leituras de filosofia, religião e literatura clássica.

Trova 5. 
Tema: Surpresas da vida cotidiana.
O tom humorístico destaca a simplicidade da vida e como situações inesperadas podem trazer alegria. A imagem da dentadura na sopa é uma representação da fragilidade da vida e da memória, mas, ao mesmo tempo, da leveza que o humor pode proporcionar.

Manuel Bandeira: combina humor e melancolia, frequentemente utilizando elementos do cotidiano para explorar a fragilidade da vida e o riso como forma de enfrentar a realidade.

Gregório de Matos: Conhecido como o "Boca do Inferno", ele usava o humor e a sátira para abordar a vida e suas ironias, refletindo sobre a condição humana de forma cômica.

Ogden Nash (EUA, 1902-1971): sua poesia humorística e satírica, frequentemente retrata cenas cotidianas com leveza e ironia. Ex: The Cow.

Shel Silverstein (EUA, 1930-1999): usa humor e simplicidade em sua poesia, abordando temas da vida cotidiana de forma divertida. Ex: Where the Sidewalk Ends.

Trova 6. 
Tema: A dor da separação.
Esta trova capta a tristeza e a nostalgia de uma despedida. O "gosto de nunca mais" evoca uma sensação de perda permanente, refletindo a profundidade das emoções ligadas ao amor e à saudade.

Adélia Prado: Adélia explora a saudade e a perda em sua poesia, capturando a dor das despedidas e a profundidade dos sentimentos humanos.

Alfredo Bosi: aborda a experiência da perda e da memória em sua obra, trazendo uma reflexão sobre o que nos deixa saudade.

John Keats (Reino Unido, 1795-1821): explora a beleza e a tristeza das emoções humanas, frequentemente abordando a dor da perda e da despedida. Ex. de poema: Ode to a Nightingale. Keats é um representante do romantismo, explorando a beleza, a emoção e a mortalidade. Referências à mitologia e à literatura clássica são comuns em seus poemas.

Emily Dickinson (EUA, 1830-1886): Dickinson lida com temas de morte, saudade e o efêmero, criando imagens poderosas e intimistas. Poema: Because I could not stop for Death. Dickinson combina elementos do romantismo com o transcendentalismo, refletindo sobre a natureza, a espiritualidade e a individualidade. Seu estilo único foi influenciado pelo seu isolamento e pela introspecção.

Trova 7. 
Tema: Amor e separação.
A metáfora das "páginas da mesma folha" sugere que, embora dois amantes estejam juntos, suas vidas podem se desenrolar em direções diferentes. A ideia de estar "de costas para mim" expressa a dor da desconexão, mesmo quando o amor ainda

Carlos Drummond de Andrade: também explora o destino e as relações amorosas em sua obra, refletindo sobre a condição humana e a separação.

Elias José: suas poesias frequentemente lidam com a temática do amor e do destino, abordando a conexão entre os amantes e as vicissitudes da vida.

Johann Wolfgang von Goethe (Alemanha, 1749-1832): Goethe explora o destino e as relações amorosas em sua obra, refletindo sobre a interconexão entre os amantes. Ex: Fausto. 

Mikhail Lermontov (Rússia, 1814-1841): trata do amor e da separação, frequentemente refletindo sobre o destino e a inevitabilidade das escolhas. Poema: The Demon.

Trova 8. 
A linha entre realidade e ficção.
Esta trova provoca uma reflexão sobre a vida cotidiana como um teatro, onde os papéis que desempenhamos podem ser indistinguíveis da realidade. A ideia de que, por vezes, não se consegue diferenciar entre as duas esferas sugere a complexidade da experiência humana.

Augusto dos Anjos: apesar de mais sombrio, reflete sobre a vida e a morte, questionando a realidade e a fantasia em suas poesias.

Fernando Pessoa: também trata da dualidade entre a realidade e a fantasia em sua obra, especialmente através de seus heterônimos.

Tennessee Williams (EUA, 1911-1983): embora tenha sido dramaturgo, explorou a linha entre realidade e fantasia em suas peças, refletindo sobre a vida humana. Obra: A Streetcar Named Desire.

Eugène Ionesco (Romênia, 1909-1994): é conhecido pelo teatro do absurdo, que discute a fantasia e a realidade de maneira provocativa. Obra: The Bald Soprano.

Trova 9. 
Tema: Amizade e saudade.
A conexão entre amigos é expressa através de um tom de melancolia. A troca de saudade e prece indica que, mesmo na ausência, há um desejo de proteção e carinho, mostrando a profundidade das relações interpessoais.

Casimiro de Abreu: aborda a amizade e a saudade em seus versos, refletindo sobre a conexão emocional e a dor da separação.

Cecília Meireles: novamente, Cecília é relevante por suas meditações sobre amizade, saudade e a profundidade das relações humanas.

Khalil Gibran (Líbano, 1883-1931): aborda temas de amor, amizade e saudade em sua obra, refletindo sobre a conexão emocional entre as pessoas. Poema: O profeta.

Rainer Maria Rilke (Áustria, 1875-1926): também trata de amizade e saudade, utilizando uma linguagem profunda e lírica. Poema: Cartas a um jovem poeta.

Trova 10. 
Tema: Relações sociais e desconforto.
O humor nesta trova aborda a frustração que muitos sentem durante visitas indesejadas. A frase "Já vai? Fica mais um pouco!" é uma ironia, refletindo a falta de percepção do outro sobre o desconforto da situação.

Carlos Drummond de Andrade: usa humor e ironia para abordar situações cotidianas e sociais, muitas vezes retratando a vida urbana e suas peculiaridades.

Mário Quintana: também utiliza o humor em sua poesia, explorando a vida e as relações sociais de maneira leve e bem-humorada.

W. H. Auden (Reino Unido, 1907-1973): usa o humor e a ironia para explorar as relações sociais, frequentemente comentando sobre a vida moderna. Poema: Funeral Blues

Dorothy Parker (EUA, 1893-1967): conhecida por seu humor ácido e críticas sociais, abordando situações de desconforto com sagacidade. Poema: Resume. Parker foi influenciada por movimentos de vanguarda e pelo modernismo, refletindo uma visão crítica da sociedade. Seu estilo mordaz e humorístico foi moldado por suas observações sociais e experiências pessoais.

Trova 11. 
Tema: Ciúmes e desentendimentos.
A metáfora do "jogo" é uma maneira inteligente de descrever a dinâmica do amor, onde os ciúmes podem causar conflitos. O "pênalti" perdido simboliza oportunidades desperdiçadas e a dor que resulta de mal-entendidos.

Vinicius de Moraes: explora as complexidades do amor e do ciúme, usando metáforas e imagens para retratar as dinâmicas amorosas.

Adélia Prado: também aborda a complexidade das relações amorosas com uma linguagem clara e poética, refletindo sobre emoções intensas.

W. B. Yeats (Irlanda, 1865-1939): explora a complexidade das relações amorosas e os conflitos que surgem delas, usando metáforas ricas. Poema: When You Are Old.

Sylvia Plath (EUA, 1932-1963): aborda a dinâmica das relações amorosas com intensidade e emoção, explorando ciúmes e conflitos. Poema: Lady Lazarus. Plath explora questões de identidade feminina e a luta contra as expectativas sociais. A influência da psicanálise e suas experiências pessoais permeiam sua obra, refletindo angústia e complexidade emocional.

Trova 12. 
Tema: Plenitude e realização.
Aqui, a ideia de viver plenamente é central. A metáfora da "página em branco" representa a falta de experiências significativas. A ênfase na "solavanco" sugere que, mesmo as dificuldades, são parte importante da jornada.

Mário Quintana: fala sobre a vida de forma leve e filosófica, incentivando a vivência plena e a apreciação do cotidiano.

Fernando Pessoa: reflete sobre a vida e suas experiências, instigando o leitor a refletir sobre a plenitude e o significado de cada momento.

Walt Whitman (EUA, 1819-1892): encoraja a vivência plena da vida e a apreciação da experiência humana em sua obra. Poema: Song of Myself

Mary Oliver (EUA, 1935-2019): celebra a vida e a natureza, incentivando a apreciação do presente e a vivência autêntica. Poema: The Summer Day. Oliver é fortemente influenciada pela natureza, explorando a conexão entre o ser humano e o mundo natural. Seu estilo é marcado pela simplicidade, com uma linguagem clara que transmite profundidade.

CONCLUSÃO
As trovas de Roberto Tchepelentyky representam uma intersecção rica entre a tradição poética e as inquietações contemporâneas, revelando a relevância contínua da poesia na compreensão da experiência humana. Em um mundo marcado pela velocidade das interações e pela superficialidade das relações, suas trovas ressoam com a profundidade emocional e a sabedoria que muitas vezes se perdem na correria do cotidiano.

As trovas são, em essência, uma celebração da vida em suas nuances. Elas abordam temas universais como amor, saudade, amizade, perda e as ironias do dia a dia. Cada verso serve como um espelho que reflete não apenas as alegrias e tristezas da vida, mas também as complexidades das relações humanas. Em um tempo em que a comunicação se dá predominantemente por meio de mensagens instantâneas e redes sociais, suas palavras poéticas nos lembram da importância da reflexão e da conexão emocional genuína.

Influenciado por uma rica tradição poética brasileira e pela cultura popular, Tchepelentyky incorpora uma linguagem acessível que dialoga com o leitor. Ele utiliza metáforas e trocadilhos que, embora simples à primeira vista, carregam uma profundidade significativa. Através de suas trovas, ele nos convida a reconsiderar nossas vivências, a valorizar os momentos simples e a aprender com os desafios da vida.

As temáticas que ele aborda são essenciais para o entendimento das dinâmicas sociais contemporâneas. A saudade, por exemplo, é uma emoção profundamente enraizada na cultura latina, e o trovador explora com sensibilidade, permitindo que os leitores se conectem com suas próprias experiências de perda e lembrança. O humor presente em suas trovas também desempenha um papel crucial, proporcionando alívio e uma nova perspectiva sobre as situações cotidianas que, muitas vezes, podem parecer pesadas.

Em um mundo onde a superficialidade frequentemente prevalece, as trovas de Tchepelentyky nos convidam a uma reflexão mais profunda sobre nossas relações e experiências. Elas nos lembram que, apesar das dificuldades e das ironias da vida, há beleza na simplicidade e na autenticidade. Através de sua poesia, Tchepelentyky reafirma a importância da arte como um meio de expressão e conexão, salientando que as emoções humanas são universais e atemporais.

Assim, suas trovas não são apenas um tributo à tradição poética, mas também um chamado à consciência e à apreciação das nuances da vida. Em um mundo contemporâneo que frequentemente busca a instantaneidade, suas trovas nos ensinam a valorizar o que é profundo, significativo e humano.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. vol.1. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Francisca Júlia (Vaidade)

Estavam reunidas cinco meninas no campo, a conversar, abrigadas à sombra de uma velha árvore, onde as cigarras cantavam.

Todo o resto da campina estava inundado de sol. Fazia um calor estival.

Como eram meninas ricas, e a vaidade é para a maior parte delas a preocupação constante, falavam a respeito da beleza de cada uma.

Dizia a primeira:

— Eu sou a mais bela de vós todas, porque tenho os cabelos claros e quando o sol os ilumina dá-lhes um reflexo dourado. 

E para mostrá-los, ficou em pé de encontro ao sol, cujos raios formaram uma auréola de ouro em torno à sua cabeça.

A segunda disse:

— Não sou menos bela que tu; tenho a cútis fina e rosada como a polpa de um pêssego.

— Eu tenho as mãos encantadoras.

E assim cada qual enumerava seus encantos, fazendo-os sobressair do melhor modo possível, em vez de ocultá-los ou disfarçá-los como manda a boa educação e a modéstia.

Minhas meninas, nunca vos blasoneis de vossos encantos físicos e do vosso aspecto externo, por mais notáveis que vos pareçam, porque a beleza com que a natureza vos dotou desaparece facilmente com as moléstias que se adquirem, com os inúmeros acidentes da vida e com a idade.

Deveis ser modestas, educar o vosso espírito nas boas leituras, nos exemplos bons, nos atos nobres, que sereis mais belas ainda e a simpatia, que decorre da elevação do espírito, dará um imperecível realce aos vossos encantos.

Fonte: Francisca Júlia. Livro da infância. 1899. Disponível em Domínio Público

Recordando Velhas Canções (Madalena)

(samba/carnaval, 1951) 

Compositores: Ari Macedo e Aírton Amorim

Chorar, como eu chorei
Ninguém deve chorar
Amar, como eu amei
Ninguém deve amar

Chorava que dava pena
Por amor a Madalena
E ela, me abandonou
Diminuindo num jardim
Uma linda flor

Ela, que para mim
Era um anjo de bondade
Partiu, me deixando saudade
Eu que era feliz
Tornei-me um sofredor
Porque perdi, um grande amor

A Dor de um Amor Perdido em 'Madalena'
A música 'Madalena', é uma expressão lírica da dor e da intensidade do amor perdido. A letra revela a profundidade do sofrimento do eu-lírico, que chora e ama com uma força que considera incomparável. As frases 'Ninguém pode chorar' e 'Ninguém deve amar' sugere que o amor vivido foi tão profundo que ultrapassa os limites do que é comum ou aconselhável.

A personagem Madalena é retratada como um ser quase divino, um 'anjo salvador', indicando que o amor que o eu-lírico sentia por ela tinha um caráter de adoração e dependência. A perda desse amor é sentida como um abandono devastador, que deixa o eu-lírico à deriva, comparado a um 'barco sem timão perdido em alto mar'. Essa metáfora reforça a ideia de desorientação e desamparo que o fim de um relacionamento pode causar.

A canção, portanto, não apenas fala de amor, mas também da fragilidade humana diante da perda e da solidão. Transmite através de 'Madalena' uma emoção universal que ressoa com qualquer um que já tenha sentido a dor de um amor que se foi.

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 59: Vivendo e aprendendo

 

Dicas de escrita (O Conto de Fadas)


O conto de fadas passou por uma evolução significativa ao longo dos séculos, refletindo mudanças culturais, sociais e literárias. Aqui estão alguns dos principais aspectos dessa evolução:

Começaram como histórias orais, transmitidas de geração em geração. Essas narrativas muitas vezes continham ensinamentos morais e eram utilizadas para entreter e educar.

No século XVII e XVIII, com a escrita, autores como Charles Perrault e os irmãos Grimm começaram a coletar e formalizar essas histórias. Perrault, em particular, adaptou contos como "Cinderela" e "Chapeuzinho Vermelho", acrescentando uma moral explícita.

Nos primeiros contos de fadas escritos, a moralidade era um aspecto central. As histórias frequentemente traziam lições sobre virtudes e comportamentos desejáveis.

No século XIX, durante o Romantismo, os contos de fadas passaram a explorar temas mais profundos, como a psicologia dos personagens e a luta interna entre o bem e o mal. Autores como Hans Christian Andersen introduziram elementos mais sombrios e complexos.

Nos séculos XX e XXI, com o advento do cinema e da televisão, os contos de fadas foram reinterpretados em novas mídias. Disney, por exemplo, transformou muitos contos clássicos em animações, suavizando temas sombrios e enfatizando finais felizes.

Nos últimos anos, muitos autores têm reimaginado contos de fadas, subvertendo suas narrativas tradicionais. Obras como "Ferro e Sangue" de Philip Pullman e "A Rainha Vermelha" de Victoria Aveyard oferecem novas perspectivas e críticas sociais.

Contos de fadas de diversas culturas começaram a ganhar destaque, mostrando a riqueza e a diversidade das narrativas ao redor do mundo. Isso levou à inclusão de novas vozes e experiências na tradição dos contos de fadas.

A análise feminista trouxe uma nova luz aos contos de fadas, questionando as representações de gênero e propondo versões que empoderam as personagens femininas, como em "As Crônicas de Nárnia" de C.S. Lewis.

A evolução dos contos de fadas reflete não apenas as mudanças nas expectativas e valores sociais, mas também a adaptação dos contos às novas realidades e à diversidade cultural. Essa forma literária continua a se reinventar, mantendo sua relevância ao longo do tempo.

São profundamente influenciados por elementos culturais específicos de diferentes regiões do mundo. Aqui estão alguns dos principais fatores que moldam essas narrativas:

1. Tradições e Mitos Locais
Contos de fadas frequentemente incorporam mitos e lendas locais. Por exemplo, os "Contos de 1001 Noites" refletem a rica tradição oral do Oriente Médio.

2. Valores e Moralidades
Os valores culturais, como respeito à família, honra e coragem, são frequentemente refletidos nas lições morais dos contos. Na cultura africana, muitos contos enfatizam a sabedoria dos anciãos.

3. Religião e Espiritualidade
Elementos de crenças religiosas podem aparecer, como em contos europeus que incluem figuras como fadas ou demônios, muitas vezes simbolizando o bem e o mal.

4. Estruturas Sociais e Hierarquias
A representação de classes sociais e papéis de gênero varia amplamente. Em muitos contos ocidentais, princesas são frequentemente salvas por príncipes, enquanto contos de outras culturas podem apresentar heroínas mais ativas.

5. Clima e Ambiente Natural
O ambiente natural também influencia o desenvolvimento das histórias. Contos nórdicos, por exemplo, frequentemente incluem elementos da natureza rigorosa, como florestas densas e invernos rigorosos.

6. História e Política
Eventos históricos, como guerras ou colonizações, muitas vezes moldam as narrativas. Contos de fadas da Europa medieval refletem as tensões sociais e políticas da época.

7. Interação Cultural
A globalização e a troca cultural levaram à adaptação de contos de fadas. Por exemplo, versões ocidentais de contos orientais podem incorporar elementos de diferentes tradições.

8. Estilo e Forma Literária
Diferentes regiões têm estilos únicos de contar histórias. A oralidade é mais prevalente em algumas culturas, enquanto outras possuem uma rica tradição escrita.

9. Simbolismo e Arquétipos
Certos símbolos, como a maçã em "Branca de Neve", podem ter significados variados em símbolos, como a maçã em "Branca de Neve", podem ter significados variados em diferentes culturas, refletindo crenças e valores locais.

Esses elementos culturais não apenas enriquecem os contos de fadas, mas também ajudam a transmitir a identidade e a moral das sociedades em que essas histórias são contadas. A diversidade dos contos de fadas ao redor do mundo é um testemunho da criatividade humana e da complexidade das experiências culturais.

Escritores que abordam os Contos de Fadas

Charles Perrault (1628-1703)
Introduziu a forma escrita dos contos de fadas. Suas histórias, como "Cinderela" e "Chapeuzinho Vermelho", são conhecidas por suas lições morais e finais didáticos.

Irmãos Grimm (1786-1859, 1789-1863)
Coletaram e adaptaram contos populares da tradição oral alemã. Suas versões, como "Branca de Neve" e "Rapunzel", frequentemente contém elementos sombrios e moralidades complexas.

Hans Christian Andersen (1805-1875)
Conhecido por suas histórias poéticas e emocionais, como "A Pequena Sereia" e "A Rainha da Neve". Seus contos muitas vezes exploram temas de amor, sacrifício e transformação.

Oscar Wilde (1854-1900)
Escreveu "O Príncipe Feliz" e outros contos que misturam humor e crítica social, apresentando personagens trágicos e reflexões sobre a natureza humana.

Monteiro Lobato (1882-1948)
Criou contos de fadas adaptados ao contexto brasileiro, como "A Menina do Narizinho Arrebitado". Suas histórias combinam elementos da cultura popular com críticas sociais.

Ana Maria Machado (1941-)
Autora contemporânea que escreveu contos de fadas modernos, como "O Mágico de Oz" adaptado. Suas narrativas muitas vezes incorporam temas de empoderamento e diversidade.

Ruth Rocha (1931-)
Escreveu contos que misturam fantasia e realidade, como "A História de Páscoa". Seus textos são acessíveis e educativos, com foco em valores como amizade e solidariedade.

Lia Zatz (1944-)
Conhecida por suas adaptações e criações originais de contos de fadas que abordam questões sociais e emocionais, trazendo uma perspectiva contemporânea para a narrativa.

Como escrever um conto de fadas

Escrever um conto de fadas envolve a combinação de elementos clássicos com criatividade e originalidade. Aqui estão algumas etapas, exemplos e dicas para ajudar nesse processo:

1. Escolha um Tema Central
Exemplo: O amor verdadeiro, a coragem, ou a luta entre o bem e o mal.

Dica: Defina a mensagem ou moral que você deseja transmitir. Por exemplo, um conto sobre coragem pode contar a história de um personagem que enfrenta seus medos.

2. Crie Personagens Arquetípicos
Príncipe, princesa, vilão, ajudante mágico.

Dica: Utilize arquétipos clássicos, mas adicione profundidade. Por exemplo, crie uma princesa que não espera ser salva, mas que luta por seu próprio destino.

3. Estabeleça um Mundo Mágico
Florestas encantadas, castelos, reinos distantes.

Dica: Descreva o ambiente de forma vívida. Um reino pode ser cercado por uma névoa mágica que esconde perigos e maravilhas.

4. Introduza um Conflito
Um vilão que ameaça o reino ou um encantamento que precisa ser quebrado.

Dica: O conflito deve ser claro e motivar a jornada do protagonista. Por exemplo, uma bruxa que sequestra a irmã do herói.

5. Desenvolva a Jornada do Herói
 O herói deve superar desafios e aprender lições ao longo do caminho.

Dica: Inclua ajudantes e testes. Por exemplo, o herói pode encontrar um animal falante que lhe dá conselhos ou um objeto mágico que o ajuda em sua missão.

6. Inclua Elementos Mágicos
Feitiços, objetos encantados, criaturas mágicas.

Dica: Use a magia para avançar a trama e criar surpresas. Um espelho mágico que mostra o futuro pode ser um ótimo recurso.

7. Conclua com uma Resolução Clara
O bem triunfa sobre o mal, ou o herói aprende uma importante lição.

Dica: A conclusão deve oferecer satisfação e reforçar a moral da história. Por exemplo, a princesa se torna rainha e governa com justiça após derrotar a bruxa.

Dicas Finais

Use uma linguagem simples e poética: Contos de fadas muitas vezes têm um ritmo lírico.

Incorpore repetição: Frases repetidas podem criar um efeito encantador.

Seja criativo com a moral: Evite lições óbvias; busque nuances que convidem à reflexão.

Seguindo essas etapas e dicas, você pode criar um conto de fadas envolvente e significativo que ressoe com leitores de todas as idades.
==========================================

EXEMPLO DA ESTRUTURA DO CONTO ABAIXO:

Título: A camundonga corajosa

Tema: Coragem e autoafirmação.

Personagens:
Camundonga Matilda (protagonista)
Bruxa Maligna Clotilde (vilã)
Corvo Tomás (sábio)

Mundo: Um reino cercado por uma floresta mágica e misteriosa.

Conflito: A Bruxa Maligna lança um feitiço que transforma os animais em pedra.

Jornada: Matilda decide enfrentar a bruxa. Na floresta, ela encontra o corvo Toby, que lhe dá um conselho. Ela enfrenta desafios, criados pela bruxa.

Resolução: Com coragem, Matilda derrota a bruxa. Ela aprende que a verdadeira força vem de dentro,.

Fonte: José Feldman. Dissecando a magia dos textos: Contos e Crônicas. Maringá/PR: IA Poe.  Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

José Feldman (Conto de Fadas) A Camundonga corajosa



Nota: Veja a estrutura do Conto de Fadas no texto acima.
Era uma vez...
Em um reino distante, havia uma pequena aldeia cercada por uma floresta mágica e misteriosa. Nessa aldeia, vivia uma camundonga chamada Matilda. Embora fosse pequena e frequentemente ignorada, Matilda tinha um coração valente e sonhava em fazer grandes coisas.

O Problema
Certa manhã, os habitantes da aldeia acordaram assustados. Uma bruxa malvada chamada Clotilde havia lançado um feitiço, transformando todos os animais da floresta em pedras. Ela estava furiosa porque os animais não a acatavam e decidiu punir a aldeia por sua desobediência.

Matilda, percebendo que seus amigos, como o sábio corvo Tomás e a gentil raposa Flora, estavam petrificados, decidiu que era hora de agir. Com coragem, ela se aproximou do ancião da aldeia e perguntou como poderia ajudar.

A Jornada
O ancião contou que a única maneira de quebrar o feitiço era encontrar o Cristal da Coragem, escondido na montanha mais alta do reino. Matilda sabia que a jornada seria perigosa, mas não podia deixar seus amigos assim.

Com um pequeno manto feito de folhas e um pedaço de queijo na mochila, Matilda partiu em direção à montanha. No caminho, encontrou Tomás, que, mesmo petrificado, ainda podia falar.

"Se você deseja quebrar o feitiço, não se esqueça de ser corajosa e gentil", aconselhou o corvo. Matilda prometeu que não se deixaria abalar, e continuou sua jornada.

O Encontro com a Bruxa
Ao chegar à montanha, ela encontrou a entrada de uma caverna escura. Com o coração acelerado, ela entrou e se deparou com Clotilde, que estava guardando o Cristal da Coragem.

"Quem ousa entrar em meu domínio?" gritou a bruxa, com um olhar maligno.

"Eu sou Matilda, e vim quebrar o feitiço que você lançou sobre os animais", respondeu a camundonga, tremendo, mas determinada.

Clotilde riu. "Você, uma simples camundonga? O que pode fazer contra um feitiço poderoso?"

Matilda respirou fundo e, em vez de medo, falou com firmeza: "Eu posso mostrar que a verdadeira coragem vem do coração, não do tamanho."

O Desfecho
A bruxa, intrigada pela bravura de Matilda, decidiu testá-la. "Se você realmente tiver coragem, enfrente três desafios, e então eu considerarei libertar os animais."

Os desafios eram perigosos: atravessar um rio cheio de crocodilos, resolver um enigma mágico e, por fim, encontrar uma flor rara que crescia em uma montanha íngreme.

Com a ajuda de sua astúcia e a coragem que brotava de seu coração, Matilda superou cada desafio. Ela usou seu pequeno corpo para se esgueirar entre os crocodilos, pensou cuidadosamente para resolver o enigma e, com determinação, escalou a montanha até encontrar a flor.

Impressionada, Clotilde finalmente entregou o Cristal da Coragem a Matilda. Com um gesto gentil, a camundonga quebrou o feitiço, e todos os animais voltaram à vida.

Matilda voltou à aldeia como uma heroína, e Clotilde, ao ver a bondade e coragem da pequena camundonga, decidiu mudar seu comportamento. Ela não mais usou magia para causar medo, mas sim para ajudar a aldeia.

E assim, a aldeia aprendeu que a verdadeira coragem não é medida pelo tamanho, mas pela força do coração.

Moral: 
A coragem e a bondade podem superar até mesmo os maiores desafios.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Recordando Velhas Canções (Meu sonho é você )

(samba, 1951) 

Compositores: Altamiro Carrilho e Átila Nunes

Quando eu passo
Pela rua onde mora
Aquela que eu perdi
Numa noite de verão
Ainda hoje, eu sei que ela chora
Ao recordar com saudade
Aquela amizade
Que o tempo levou, levou 

Meu desejo, era ser bem feliz
Mas o destino não quis
Vivo sofrendo afinal
Meu sonho é você
Que é todo o meu mal
Tudo terminou
De um modo banal
Tudo terminou
De um modo banal

A Melancolia de um Amor Perdido em 'Meu Sonho É Você'
A música 'Meu Sonho É Você', é uma balada melancólica que explora a dor de um amor perdido. A letra começa com o eu lírico passando pela rua onde mora a pessoa amada, que ele perdeu em uma noite de verão. Esse cenário evoca uma sensação de nostalgia e tristeza, sugerindo que o término foi abrupto e inesperado. A menção de que a pessoa amada ainda chora relembrando a amizade que o vento levou reforça a ideia de que ambos ainda estão presos ao passado e às memórias do relacionamento.

O eu lírico expressa seu desejo de ser feliz, mas lamenta que o destino não quis assim. Essa linha sugere uma resignação à fatalidade, como se o amor deles estivesse condenado desde o início. A repetição da ideia de sofrimento e a declaração de que seu sonho é a pessoa amada, que também é a causa de todo o seu mal, cria um paradoxo emocional. O amor, que deveria ser fonte de alegria, se torna uma fonte de dor insuportável. A conclusão de que tudo terminou de um modo banal adiciona uma camada de frustração, indicando que o fim do relacionamento foi trivial e sem sentido, o que torna a dor ainda mais aguda.

Dick Farney, conhecido por sua voz suave e interpretação emotiva, consegue transmitir a profundidade dessa tristeza através de sua performance. A música, com sua melodia suave e letra introspectiva, é um exemplo clássico do estilo romântico e melancólico que marcou a carreira do artista. A combinação de melodia e letra cria uma atmosfera de saudade e arrependimento, convidando o ouvinte a refletir sobre seus próprios amores perdidos e as voltas que a vida dá.

domingo, 29 de setembro de 2024

Newton Sampaio (Espetáculo)

Damião desce correndo aquele pedaço de rua.

— A campainha já parou de tocar. Vai começar a coisa.

Cruza com o Durvalino. Vai pras bandas da Amelinha, com certeza.

— Que pressa é essa, menino?

Nem responde. Estuga mais o passo.

— Tomara que ainda não tenha começado.

Atravessa a porta grande. Estranha o velho Gregório ainda na bilheteria.

— Pronto, padrinho. Ele mandou dizer que sim.

Entra no salão, com o pulso alterado.

Não. A função não começara ainda.

— Que sorte!

Ninguém quase. No reservado da direita, o Doutor Paiva, soleníssimo. Na terceira fila o seu Pernambuco, mais a família, gozando a delícia da permanente. Um pouco para trás, uma dúzia de espectadores. Lá em cima, como sempre, o negro Fabiano com a molecada. E bem na frente, rente à boca do palco, o Joca, afinando o instrumento.

— Coisa engraçada! Por que será que o pessoal não veio?

Juquita não compreende que o povo deixe de comparecer ao espetáculo do mágico.

— Ah! Quem sabe foi por causa da morte do Amâncio?

Acha que a razão é muito besta.

— Meu Deus! Morre um homem e agora ninguém mais se diverte?

Pela cabeça do Damião passa, de atropelo, um punhadão de pensamentos. Tem ímpeto de sair à rua e gritar:

— Pessoal! Ô, pessoal! Venha assistir ao espetáculo. Eu sei que o homem faz mágicas. Umas mágicas bonitas, eu sei.

E logo sente desejo de xingar o povo com os nomes mais feios do mundo. Detesta colossalmente, nesse momento, a gentalha da cidadezinha.

— Éguas! Bobalhões! Filhos da mãe!

Primeiro sinal. Música.

Segundo sinal. Silêncio.

Terceiro sinal. Aparece a cena, que é simples. Duas cadeiras. Uma mesa, com dois copos em cima. A caixa de papelão encardida. Vem o artista, desenxabido, vestindo uma roupa de gala muito surrada. A mulher é deselegante. Mais gorda ainda que dona Vitória. 

O homem parlenga dois minutos. Damião não entende bem. Só sabe que, a cada passo, ele solta:

— Cavalheiros... Damas...

As mágicas são bem bobas.

Umas coisas mais sem efeito, gastas, repetidas. O relógio que passa, invisivelmente, do bolso do espectador para a caixa de papelão. 

Um lenço branco que fica vermelho. O chapéu que vira passarinho.

No fim do espetáculo vêm aplausos tímidos, sem vontade. O homem se curva uma, duas vezes. A mulher agradece também.

Damião quer mais é derrubar o barracão, à custa de palmas. Só pra alegrar o mágico, que tem uns olhos muito tristes.

Diante da gaveta semiaberta, o velho Gregório, levantando a gola do casaco preto, aceita o fiasco com a resignação de sempre. E ainda troça, conferindo a aritmética da noitada:

— Está vendo? 25 pessoas. O delegado, o promotor, o Fabiano, os cinco moleques, o Pernambuco mais a família. Ao todo, treze pessoas que não pagaram. Doze entradas vendidas a 1$500 somam 18$000.

Conta redonda.

E articula, pausadamente:

— Dezoito mil réis.

O ilusionista foi ter com o empresário, no dia seguinte.

— O senhor ontem foi um pouco infeliz, não? — diz o velho.

— É. Não tive sorte, quase.

Faz um gesto de desalento:

— Já me aconteceu coisa parecida mais de dez vezes. Mas não faz mal.

— Paciência, amigo. A morte do Amâncio estragou a frequência. O senhor sabe. Povo do interior é assim. É muito respeitador.

O homem das mágicas tinha no rosto uma sombra de amargura infinita.

— Parece que não dá nem pra pagar o aluguel do teatro, não, seu Gregório?

Gregório levanta os ombros.

— Não importa. Perdoo o aluguel.

E fica pensando na coragem do homem em chamar aquilo de “teatro”.

Damião, no ângulo da saleta, espia com piedade a figura miserável do ilusionista. Tenta justificar consigo mesmo.

— Ele sabe fazer mágica. Sabe mesmo. O desastre foi a falta de assistência. Povo besta!

O artista solta um suspiro longo.

— Muito obrigado, seu Gregório, por sua boa vontade.

— Não há de quê. Disponha.

Já na porta, o homem volta-se. Fala, com brandura, humilde:

— Quando fui à sua casa, vi lá, num canto, uma pequena mala desocupada. O senhor não poderia fazer presente dela?

— Pois não. Pode ir buscar.

— É só carregar as bugigangas. A minha está tão velha...

Fica atrapalhado. Não sabe como explicar.

— Desculpe, senhor. Desculpe.

Damião aproxima-se discretamente do velho. E cochicha.

— Padrinho. Dê vinte mil réis ao coitado. Dê.

Gregório atende o menino. O artista ambulante agradece comovidíssimo. E abala rua acima.

No trem das quatro, Damião vai à estação.

Lá estão, no carro de segunda classe, quietinhos, o mágico e a mulher.

Damião se despede.

— Felicidades, amigo.

— Obrigado, menino.

O trem apita. Arranca, devagar. E logo desaparece, soltando fumaça, do lado do paredão.

Fonte:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.  (Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 17/12/1936)

Dicas de escrita (Tipos de contos)

Os contos são uma forma literária rica e diversificada, e podem ser classificados em várias categorias.

1. Conto Fantástico
Apresenta elementos sobrenaturais, instigando o leitor a questionar a lógica da narrativa.

Jorge Luís Borges — seus contos frequentemente exploram temas de labirintos e realidades alternativas, como em "A Biblioteca de Babel".

2. Conto de Horror
Foca em provocar medo ou angústia, frequentemente envolvendo o sobrenatural ou o grotesco.

Edgar Allan Poe — conhecido por contos como "O Corvo" e "O Gato Preto", que exploram a psicologia do terror.

3. Conto Realista
Foca na representação fiel da vida cotidiana e das experiências humanas.

Anton Tchekhov — seus contos, como "A Dama do Cachorrinho", retratam a vida comum com profundidade emocional.

4. Conto de Fadas
Inclui elementos mágicos e geralmente possui uma moral ou lição.

Hans Christian Andersen — conhecido por contos como "A Pequena Sereia", aborda temas de amor, sacrifício e transformação.

5. Conto Policial
Narrativas que giram em torno de um crime ou mistério, com a resolução sendo um elemento central.

Agatha Christie — seus contos e romances, como "O Assassinato de Roger Ackroyd", são famosos por suas intrincadas tramas de mistério.

6. Conto de Amor
Foca nas relações amorosas, suas complexidades e nuances, geralmente com um desfecho emocional.

Guy de Maupassant — seus contos, como "Bola de Sebo", exploram a natureza do amor e do desejo.

Carolina Maria de Jesus – "Quarto de Despejo", narra experiências de amor e desamor em um contexto de pobreza.

7. Conto de Humor
Busca provocar riso e divertimento, muitas vezes através de situações absurdas ou personagens caricatos.

Mark Twain — contos como "As Aventuras de Tom Sawyer", combinam humor com crítica social.

8. Conto Social
Aborda questões sociais, políticas ou culturais, muitas vezes com um viés crítico.

Machado de Assis — contos como "A Cartomante" refletem as tensões sociais e morais do Brasil do século XIX.

9. Conto Surrealista
Apresenta imagens e situações que desafiam a lógica e a razão, muitas vezes explorando o inconsciente.

Franz Kafka - contos como "A Metamorfose" exploram realidades absurdas e a alienação humana.

Julio Cortázar — em "A Casa Tomada", utiliza uma narrativa não linear e surrealista.

10. Conto de Aprendizado 
Foca no crescimento e desenvolvimento do protagonista.

J.D. Salinger — "O Apanhador no Campo de Centeio" é um exemplo de crescimento emocional e autodescoberta.

11. Conto de Viagem
Envolve aventuras em locais exóticos, refletindo sobre cultura e experiência.

Jack Kerouac — "On the Road" (embora um romance, tem elementos de conto de viagem) captura o espírito da exploração.

12. Microconto
 Narrativa extremamente curta, onde cada palavra conta.

Augusto Monterroso — "Quando acordei, o dinossauro ainda estava lá." é um exemplo famoso de microconto.

13. Conto histórico
Ambientado em um período histórico específico, explorando eventos, figuras ou contextos do passado.

José Saramago - contos que, embora não sejam sempre históricos, frequentemente refletem em suas narrativas as questões do tempo e da memória.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Na continuação, explanaremos mais profundamente sobre cada um dos tipos de contos e seus expoentes.

Fonte: José Feldman. Dissecando a magia dos textos: Contos e Crônicas. Maringá/PR: IA Open.  Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.