sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Eduardo Martínez (Erasto, o entediado)

Erasto, velho que era há tanto tempo, afundado na poltrona da sala, aguardava pela finitude chegar. Incomodado pela demora, de vez em quando procurava algo para fazer. Um livro, que não poderia ser muito grosso, pois não suportava a ideia de não terminar de lê-lo antes da derradeira batida do coração. 

Contos e crônicas, até pela pouca extensão, eram seus preferidos. No entanto, arriscava uma ou outra poesia, ainda mais do seu autor favorito, Daniel Marchi. Perdia-se nos versos, enquanto os dias se tornavam mais leves, mas sem afastá-lo por completo da ideia de que precisava morrer. Aliás, era uma questão de honra deixar a vida para quem tivesse sede, e não para um idoso carcomido de lamúrias por saudosismos inexistentes. 

Enquanto folheava o livro "A verdade nos seres", Erasto escutou uma sonora gargalhada vinda lá debaixo na calçada, bem em frente à praia de Arapuama, na cidade do Cabo de Santo Agostinho-PE. Curioso, foi ver do que se tratava, quando viu uma bela mulher conversando com um vendedor de picolé. O que seria tão engraçado? Ele ficou ali na janela tentando imaginar, até que o telefone tocou.

— Alô!

— Erasto?

— Sim. Quem é?

— Sou eu, a Sofia.

Sofia era uma amiga, dessas que somem e aparecem sem motivo aparente. Na verdade, ela e Erasto tiveram um caso extraconjugal há quase duas décadas. Não mais do que duas ou três saídas, até que ela, talvez sem esperança por algo além do que possuía em casa, resolveu não dar corda ao adultério. 

— Oi, Sofia! Há quanto tempo!

— Pois é. Muito tempo mesmo!

— O que tem feito da vida?

— Depois que me aposentei, algumas viagens. E você?

— Quase não saio de casa, ainda mais depois que a minha mulher se foi.

— Não sabia que você ficou viúvo.

— Não fiquei. A Ruth simplesmente foi embora. 

— Ah, tá!

— E o seu marido?

— Está bem. Adora pescar com os amigos.

— Hum...

— Tá fazendo o quê agora?

— Nada.

— Então, desce aqui.

— Como assim?

— Desce aqui. Estou debaixo do seu prédio tomando um picolé. Quer um?

Erasto, por um instante, deixou o desejo de terminar o dia dentro de um caixão. Já no elevador, pensou: "Pois não é que, de vez em quando, o tempo passeia por aqui!”

Vereda da Poesia = 158 =


Trova de
NEI GARCEZ
Curitiba/PR

A justiça nos ensina
o equilíbrio que nos deu:
o teu direito termina,
bem onde começa o meu!
= = = = = =

Folclore Brasileiro em Versos de
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

O Lobisomem

Na lua cheia um uivo a ressoar,
o Lobisomem surge, a besta a vagar,
filho da maldição em dor a se transformar,
nas noites sombrias sua fúria a despertar.

Homem e lobo em luta a se tornar,
os instintos primais, a razão a ofuscar,
entre as sombras da floresta, um ser a errar,
a busca por paz, que nunca vai encontrar.

Mas há quem o veja como trágico ser,
uma vida marcada, um amor a perder,
e em cada transformação, um grito de dor,

que ecoa na bruma em busca de amor.
Na solidão da noite, um lamento a crescer,
o Lobisomem, na sombra, anseia por viver.
= = = = = = 

Trova de
FLÁVIO ROBERTO STEFANI
Porto Alegre/RS

Abaixo a guerra entre irmãos!
Plantemos a paz somente.
- Quem tem sementes nas mãos
não tem granadas na mente.
= = = = = = 

Soneto de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP

Tropeço

Vejo-me agora no final da estrada
e as consequências de uma vida aflita
a procurar afoito a mais bonita
virtude altiva, joia lapidada.

As mãos vazias cheias de desdita
não afagaram outras sem ter nada.
E a consciência viva, tão pesada,
arrasta o fardo que a ambição incita.

Peço perdão para mim mesmo, eu sei
que para evoluir existe lei
da semeadura e sua consequência.

Queira ou não queira o fim faz o começo
para engendrar a escala sem tropeço;
ser mais humilde na nova existência!
= = = = = = 

Trova de
ÂNGELA TOGEIRO
Belo Horizonte/MG

Nesta minha caminhada
não me horroriza a violência,
mas a boca que calada
alimenta-lhe a existência.
= = = = = = 

Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Há nesta recorrente dolência 
um preparo para o saber
barreiras a quebrar fronteiras
a adivinhar o acontecer 

Ciente desta real irrealidade, 
desta minha inconformidade  
anulo a envolvência do espaço
à dimensão retemperadora dum abraço

Há beleza e encanto
no dia onde espreita o pranto
da nuvem carregada d' incerteza 
esparjo água límpida e fecunda

Existo na pureza utópica
revelando anseios secretos
na essência harmoniosa dos afetos 

Na beleza deste amar
quero em gratidão levitar!
= = = = = = 

Quadra Popular

Diga, meu benzinho, diga,
com tua boca, confesse,
se no mundo já encontrou
quem tanto bem lhe quisesse.
= = = = = = 

Poema de
NELIO CHIMENTO
Rio de Janeiro/RJ

Gentileza

A gentileza anda tão pálida
Quão fagulha apagada
Perdida na poeira bruta
Que envolve essa era de gente afobada.

Gente que vive no corre-corre sem fim,
Competindo entre si e com o tempo,
Que não para uma prosa
E acha que a vida é mesmo assim.

Mas assim não é, isso o tempo dirá,
Precisamos do afeto e da energia humana...
Para alimentar o ânimo que nos elevará
Ao patamar que a alma reclama.

Temos a primazia de saber sorrir
E o privilégio de se emocionar,
Para desenvolver a arte de se relacionar
E aprender a viver e se divertir.

Nesses tempos de afeto precário,
Encoberto pelo encanto do novo,
Bom seria que a gentileza desse povo,
Não virasse joia inativa de relicário.

Quero me ver nos olhos dos outros,
Dizer algo a alguém, para ouvir meu pensamento,
Ceder o lugar, para ter um lugar na vida,
Fazer da trilha rude, uma alameda florida.
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

A justiça humana é falha!
E reconheço isto a custo...
Se é rico, livra o canalha!
Se é pobre, condena o justo...
= = = = = = 

Poema de
CRIS ANVAGO
Lisboa/Portugal

Vê para lá do nevoeiro
Não te deixes cegar
Fechar os olhos
Não te leva a nenhum lugar

A canção foi feita para ser compreendida
Preciso de ouvir todas as palavras
Só assim percebo as frases
E com elas o pensamento
Que, de repente passou por ti

Não vejas só o nevoeiro
Vê com o coração
Eu estou para lá do que não vês…
= = = = = = = = = 

Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

A estrela da mocidade,
que em minha infância brilhou;
brilha em meu céu de saudade,
depois que a infância passou!
= = = = = = 

Poema de 
SEBASTIÃO ALBA
Braga/Portugal, 1940 – 2000

Ninguém, Meu Amor

Ninguém, meu amor
 ninguém como nós conhece o sol
 Podem utilizá-lo nos espelhos
 apagar com ele
 os barcos de papel dos nossos lagos
 podem obrigá-lo a parar 
 à entrada das casas mais baixas
 podem ainda fazer
 com que a noite gravite
 hoje do mesmo lado
 Mas ninguém meu amor
 ninguém como nós conhece o sol
 Até que o sol degole
 o horizonte em que um a um
 nos deitam
 vendando-nos os olhos.
= = = = = = 

Trova de
FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Quantos banquetes regados
a vinho, trufa e salmão...
quantos irmãos relegados
sem água, sem luz, sem pão!
= = = = = = 

Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Clausura 

Reclusa no próprio 
tempo, seu sorriso
é seu sentimento.

Ora transborda paz, um alento, 
às vezes um leve contratempo. 
Atada em utopias, é momento, 
ou somente uma página virada
levada por folhagens no vento.
= = = = = = 

Trova de 
MARA MELINNI
Caicó/RN

Uma família sem teto,
repartia o mesmo pão...
Mas sobrava sempre afeto,
no final da divisão...!
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Será?

Tal qual a juriti de canto triste,
que enfrenta a vida solitariamente,
mas mesmo assim tão só, jamais desiste
de esperar que um amor se lhe apresente...

Também minha alma que é tristonha e crente,
no aguardo de seu par, por muito insiste...
E tal e qual a juriti, não sente
vontade de cantar e ainda resiste.

Será que a juriti tristonha, um dia
terá o trinado de uma cotovia,
de tão feliz, por encontrar seu par?

Se acontecer tal sorte, algo me diz,
minha alma vai também ser tão feliz,
que ao certo vai cantar, e muito amar!
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Com que suave ternura 
tece a canária o seu ninho! 
– Mãe é assim, dengosa e pura... 
a nossa e a do passarinho. 
= = = = = = 

Poema de
SONIA CARDOSO
Curitiba/PR

Finitude 

Não mereces a finitude 
No duro calcário 
Mereces o acolhimento 
Da terra mãe, que te 
Acolheu, te fez germinar 
E crescer em tamanho e beleza.
= = = = = = 

Trova de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Tenham todos terra e teto,
sem preconceito ou fronteira
e que haja amor, não decreto,
para a inclusão verdadeira!
= = = = = = 

Poema de 
PEDRO EMÍLIO 
São Fidélis/RJ (1936 – 2013)

Canção Finita

Do primeiro canto da primavera
serão teus:
- o pássaro e a canção

Da primeira flor da primavera
serão teus:
- a cor e o perfume

Do primeiro verso da primavera
serão teus:
- o poeta e o poema.

Do último canto da primavera
de quem serão:
- o pássaro e a canção?

Da última flor da primavera
de quem serão:
- a cor e o perfume?

Do último verso da primavera
de quem serão:
- o poeta e o poema?

Murcha a flor...
quieto o pássaro...
morto o verso...

De quem será a primavera?
= = = = = = 

Trova Humorística de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

O meu sonho é uma tapera
que nenhum caminho corta;
e assim mesmo ainda espera
que alguém bata à sua porta!
= = = = = = 

Hino de 
TREZE TÍLIAS/SC

Erguendo os braços co´as algemas rotas
Na data augusta da libertação
O escravo outrora vil e acorrentado
Enflora as armas deste teu brasão.

Deixando ao longe a escravatura branca
Louro imigrante aqui chegou
Liberto da opressão e agora livre
Semente, flor e fruto ele plantou.

Teu signo é herança de um falaz passado,
Mas hoje é lema do Brasil inteiro
A liberdade à sombra da Bandeira
Os pés na terra e os olhos no Cruzeiro.

Por sobre os troncos e os grilhões em sangue
E o azorrague de uma mão cruel
Colocou Deus as régias mãos bondosas
E a imagem redentora de Isabel.

Caminha, juventude, e acende a chama
E mostra ao mundo escravo o teu perfil.
És filho desta terra quem a ama.
A liberdade é filha do Brasil.

Não olhes nunca, heroica juventude
Lá no passado as marcas dos grilhões,
Há no futuro uma esperança nova
Tu és da primavera as florações.
= = = = = = 

Poetrix de
CECY BARBOSA CAMPOS
Juiz de Fora/MG

Retrospecto

Relógio antigo
ecoa passado
em badaladas musicais.
= = = = = = 

Poema de
ELCIANA GOEDERT
Curitiba/PR

En(frente)

Como disse outro poeta
Sim, "a vida vale a pena"
Tá difícil nesse planeta
Mas tento me manter serena
Sigo firme com minha meta
Se preciso rezo uma novena
Repito um mantra, discreta
Sei que logo tudo se engrena.
= = = = = =

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Sozinha, num desvario,
sem concretude, meus braços,
traçam, sobre um leito frio
o perfil dos teus abraços.
= = = = = = 

Recordando Velhas Canções
CONSTRUÇÃO (DEUS LHE PAGUE) 
(1971)
Chico Buarque de Holanda 
Rio de Janeiro/RJ

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo por tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
E agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo por tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
E agonizou no meio do passeio náufrago

Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe

E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
Deus lhe pague

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague

Newton Sampaio (Irmandade)

O moço de cinzento abriu os olhos. Espiou a folhinha.

No alto, bem negro, um nome.

— Dezembro.

Mais abaixo, em encarnado, um algarismo.

— 4.

Leu. E repetiu baixinho:

— Quatro...

Caminhou na diagonal do aposento. Deteve-se, frente à luxuosa secretária.

Dezembro... Quatro...

Espetou o dedo no ar.

— O que é isto?

(O espelho copiou o gesto, com absoluta fidelidade).

— O que é isto, moço do espelho?

O moço do espelho estava de cinzento também. E tinha o cabelo loiro, encaracolado, bonito.

Fitaram-se longamente.

— Então, nada?

Pôs a mão no bolso. Tirou-a, rápido. O outro repetiu, simultaneamente, ambos os gestos.

— Você é louco?

O do espelho mexeu os lábios.

— Você é louco?

Virou-se sobressaltado. Que voz seria aquela?

Reparou que a janela estava aberta. Por ela entrava o sol medonho do verão.

Contemplou a rua. Algum movimento. Na calçada fronteira, três crianças coradinhas, trêfegas, brincando de roda. Na casa vizinha, a velha de chinelos de couro despachava o vendedor de frutas com dois desaforos. Um gato indolente não quis saborear os desaforos. E foi esfregar o dorso na areia morna.

Alguém parou embaixo da janela. E a velha de chinelos, na porta da frente:

— Glorinha. Pode me dizer que horas são?

— Onze e pouco. Saí da missa neste instante.

— Já? Virgem Maria! Como atrasei o almoço!

Fez menção de se recolher. Arrependeu-se em tempo.

— Sabe? Espero hoje o primo Justino, aquele do norte.

— Ahn!

Arriscou ainda:

— Como vai o mano, Glorinha?

Glorinha levantou os olhos desalentados até a janela.

— Naquilo mesmo.

— Coitado!

A velhota entrou correndo, bradada pelo cheiro ruim de cereal estorricado.

As crianças pararam de rodar, suadas, coradinhas.

O gato ali de perto sentiu a quentura da areia da rua. E rosnou, contente.

A moça, ainda uma vez, subiu a escada, com bandeja tomada inteira por novo almoço. Norberto não percebeu logo a entrada da irmã. Continuou de cócoras, a remexer a comida derramada.

— Vamos almoçar?

Levantou-se, possesso. Num segundo, porém, teve a fisionomia mais serena deste mundo.

— Como não, Glorinha? Deixe-me ajudá-la.

— Sente-se aí. Assim, quietinho.

Serviu-o, com imensa brandura.

— Glorinha...

— Diga.

— Quem foi que sujou o assoalho, ali?

— Não sei. Desde ontem que o assoalho está manchado...

— Ontem? Não estava, não. Eu apalpei... É comida quente.

— Talvez.

E acrescentou, amável:

— A negrinha vem cá limpar, logo mais.

— A negrinha pode vir. O que eu não quero ver dentro do quarto é o Ciro...

— Descanse. O Ciro não virá nunca mais. O Ciro já morreu.

— Porque, se ele vier, rasgo-lhe o pescoço com esta faca. Deste jeito. Veja.

E ensaiou o ato no ar, com os olhos brilhando.

— Sim. Estou vendo.

Glorinha compôs melhor a cama. Cerrou um pouco a janela, por causa do sol.

— O dia hoje está bonito, não?

— Muito.

Tomou um dos pratinhos.

— Quer mais disto?

Norberto não respondeu. Não respondeu, mas perguntou:

— Vamos passear hoje?

— Mais tarde.

— Só nós dois?

— Só nós dois.

— E mais ninguém?

— Mais ninguém.

— E Ciro?

— Ora bobo! O Ciro está viajando.

— Viajando?! Você me disse que ele morreu...

— É a mesma coisa. Morrer. Viajar...

Disse e foi saindo. Desceu a escada, desoladíssima.

Na varanda ensombrada, dona Guiomar acariciava o filho Ciro.

Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.

Estante de Livros (3 Livros de Simone de Beauvoir)


As obras de Simone de Beauvoir são fundamentais para a filosofia existencialista e o feminismo moderno. Seu olhar crítico sobre a opressão das mulheres, a busca por identidade e a complexidade das relações humanas oferece uma rica contribuição ao entendimento da condição feminina. Beauvoir não apenas desafia as normas sociais, mas também inspira a busca pela liberdade e pela autenticidade.

1. O Segundo Sexo

"O Segundo Sexo" é uma obra seminal que examina a condição feminina ao longo da história e nas diversas esferas da vida social, cultural e psicológica. Dividido em duas partes, "Fatos e Mitos" e "A Experiência Vivida", o livro aborda como as mulheres foram historicamente definidas em relação aos homens, sendo frequentemente vistas como "o Outro". Beauvoir analisa a construção social do gênero, explorando temas como a biologia, a psicanálise, a literatura e a filosofia.

Ela argumenta que a opressão das mulheres é resultado de uma construção social que perpetua a ideia de que o homem é o sujeito e a mulher é objeto. Beauvoir não apenas critica essas construções, mas também propõe que as mulheres devem se libertar dessas limitações e assumir sua própria identidade. A famosa afirmação "Não se nasce mulher, torna-se mulher" encapsula sua ideia de que a feminilidade é uma construção social.

A obra é um marco do feminismo moderno e um dos textos fundacionais da teoria de gênero. A análise de Beauvoir é abrangente e interdisciplinar, combinando filosofia, sociologia e psicologia para tratar da opressão das mulheres. Seu estilo é ao mesmo tempo acessível e rigoroso, abordando questões complexas com clareza.

Beauvoir não apenas critica a opressão, mas também explora as possibilidades de emancipação. Ela enfatiza a importância da liberdade e da escolha, argumentando que as mulheres devem se autodeterminar em vez de aceitar papéis impostos pela sociedade. Sua obra continua a ser relevante, oferecendo uma perspectiva crítica sobre as desigualdades de gênero e inspirando movimentos feministas contemporâneos.

2. A Convidada

"A Convidada" é um romance que aborda as complexidades das relações amorosas e a dinâmica de poder entre homens e mulheres. A história gira em torno de Françoise, uma jovem mulher que se envolve com o casal Pierre e Xavière. Françoise se sente atraída por Pierre, mas logo se vê em um triângulo amoroso que desafia suas noções de amor, liberdade e possessividade.

Ao longo da narrativa, Françoise luta com suas próprias inseguranças e desejos, enquanto Pierre e Xavière tentam manter um equilíbrio em seu relacionamento aberto. O romance explora temas como ciúmes, liberdade sexual e a busca por identidade em um contexto de normas sociais restritivas.

"A Convidada" reflete as ideias de Beauvoir sobre a liberdade e a complexidade das relações humanas. A obra examina a tensão entre o desejo individual e as expectativas sociais, destacando a luta de Françoise para encontrar sua própria identidade em meio às pressões externas.

A narrativa é rica em simbolismo e revela as nuances das interações entre os personagens. Beauvoir utiliza seus personagens para discutir questões filosóficas sobre a liberdade e a autenticidade, desafiando as convenções do amor romântico. O romance é uma exploração profunda da condição humana, destacando as contradições do desejo e a necessidade de autoconhecimento.

3. Memórias de uma Moça Bem-Comportada

"Memórias de uma Moça Bem-Comportada" é uma autobiografia em que Beauvoir narra sua infância e juventude, refletindo sobre sua formação intelectual e suas experiências pessoais. A obra é marcada por suas observações sobre a sociedade e a educação da época, explorando como essas influências moldaram sua identidade.

Beauvoir descreve sua família, suas amizades, e suas primeiras descobertas sobre sexualidade e amor. A narrativa revela suas lutas internas e externas, destacando a pressão que sentia para se conformar aos padrões de gênero da sociedade. A obra é tanto uma crônica pessoal quanto uma análise crítica da educação e do papel da mulher na sociedade.

As « Memórias de uma moça bem-comportada » oferecem uma visão íntima de sua formação como pensadora e feminista. A obra é rica em reflexões sobre a liberdade, a escolha e a opressão, revelando como a experiência pessoal é entrelaçada com questões socioculturais mais amplas. A narrativa é marcada por uma honestidade brutal, à medida que Beauvoir questiona as normas que moldaram sua vida.

O estilo autobiográfico de Beauvoir permite uma conexão profunda com o leitor, ao mesmo tempo em que ilustra a luta de uma mulher para se afirmar em um mundo dominado por homens. Sua análise crítica das instituições educacionais e da sociedade é atemporal, e suas reflexões continuam a ressoar com as experiências de muitas mulheres contemporâneas.

Fonte: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Luiz Poeta (Nuvens de Sonhos) 01

 

A. A. de Assis (Relógio de bolso)

Um amigo meu confessou que um dos seus bons sonhos é um dia dispor de tranquilidade para usar um desses mimos no bolso do colete

Nunca me esqueço de uma crônica publicada há mais de meio século na revista “O Cruzeiro” pela célebre jornalista Rachel de Queiroz. Falava de um homem que passou a usar relógio de pulso porque não tinha tempo para ver as horas no relógio de bolso.

Já naquela época as pessoas começavam a tornar-se escravas dos ponteiros. Para dar uma olhada no Omega pataca de bolso você perderia alguns valiosos segundos. No fim do dia, esses segundos, somados, quantos bons minutos dariam? Já pensou?…

O relógio de pulso tem a vantagem de ser funcional. Você pode ver as horas sem interromper o que está fazendo. Por isso ele se adaptou tão bem ao ritmo do homem moderno, aposentando o elegante “colega” outrora carregado na algibeira com direito a correntinha.

Um desses sujeitos superorganizados decidiu medir o tempo que a gente perde durante o dia. Aqueles segundos gastos à espera de que o semáforo nos dê passagem: cada semáforo é um atraso de vida; cada tartaruga, cada quebra-molas… quantos segundinhos desperdiçados nesse stop-start do trânsito urbano…

A espera pelo sinal do telefone, a espera pelo elevador, a espera da vez de falar com o gerente no banco… Espera aqui, espera acolá, espera isso, espera aquilo…

No final da tarde, com o mapa da cronometragem rigorosamente montado, o sujeito chegou à calamitosa conclusão de que um homem de negócios perde, durante o espaço útil de um dia, nada menos que sessenta e cinco minutos e quarenta e dois segundos.

São cerca de quatrocentas horas por ano, gastas em esperas. Transforme essas quatrocentas horas em dinheiro e veja o tamanho do prejuízo… Mas quer saber de uma coisa? Se a gente pega a mania de medir o tempo perdido nisso ou naquilo, acaba enlouquecendo.

Todos estamos hoje esmagados pela necessidade de aproveitar cada minuto em alguma “coisa prática”. De manhã à noite é essa correria maluca. Daí todo mundo fica se queixando de estresse. Mas todo mundo continua na mesma pressa.

Por que? Por causa de uns dinheirinhos a mais? Será que os seus compromissos são assim de tal modo urgentes? Ou é você que não sabe mais parar?

Que saudade do relógio de bolso… Um amigo meu confessou que um dos seus bons sonhos é um dia dispor de tranquilidade para usar um desses mimos no bolso do colete. Quem sabe acerte na mega sena e possa dar-se o luxo de não mais se preocupar com as horas.

Disse que outro dia viu um numa vitrine, igual ao do seu avô. Falou ao dono da relojoaria: “Guarde esse bacanudo aí, que ele ainda vai ser meu…”

O homem olhou meio desconfiado e foi atender outro freguês. Ele também não podia perder de forma alguma o seu precioso tempo. Aliás, nem relógio de pulso usava mais. Via as horas no celular.

(Crônica publicada no Jornal do Povo)

Fonte: Texto enviado pelo autor