sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Newton Sampaio (Irmandade)

O moço de cinzento abriu os olhos. Espiou a folhinha.

No alto, bem negro, um nome.

— Dezembro.

Mais abaixo, em encarnado, um algarismo.

— 4.

Leu. E repetiu baixinho:

— Quatro...

Caminhou na diagonal do aposento. Deteve-se, frente à luxuosa secretária.

Dezembro... Quatro...

Espetou o dedo no ar.

— O que é isto?

(O espelho copiou o gesto, com absoluta fidelidade).

— O que é isto, moço do espelho?

O moço do espelho estava de cinzento também. E tinha o cabelo loiro, encaracolado, bonito.

Fitaram-se longamente.

— Então, nada?

Pôs a mão no bolso. Tirou-a, rápido. O outro repetiu, simultaneamente, ambos os gestos.

— Você é louco?

O do espelho mexeu os lábios.

— Você é louco?

Virou-se sobressaltado. Que voz seria aquela?

Reparou que a janela estava aberta. Por ela entrava o sol medonho do verão.

Contemplou a rua. Algum movimento. Na calçada fronteira, três crianças coradinhas, trêfegas, brincando de roda. Na casa vizinha, a velha de chinelos de couro despachava o vendedor de frutas com dois desaforos. Um gato indolente não quis saborear os desaforos. E foi esfregar o dorso na areia morna.

Alguém parou embaixo da janela. E a velha de chinelos, na porta da frente:

— Glorinha. Pode me dizer que horas são?

— Onze e pouco. Saí da missa neste instante.

— Já? Virgem Maria! Como atrasei o almoço!

Fez menção de se recolher. Arrependeu-se em tempo.

— Sabe? Espero hoje o primo Justino, aquele do norte.

— Ahn!

Arriscou ainda:

— Como vai o mano, Glorinha?

Glorinha levantou os olhos desalentados até a janela.

— Naquilo mesmo.

— Coitado!

A velhota entrou correndo, bradada pelo cheiro ruim de cereal estorricado.

As crianças pararam de rodar, suadas, coradinhas.

O gato ali de perto sentiu a quentura da areia da rua. E rosnou, contente.

A moça, ainda uma vez, subiu a escada, com bandeja tomada inteira por novo almoço. Norberto não percebeu logo a entrada da irmã. Continuou de cócoras, a remexer a comida derramada.

— Vamos almoçar?

Levantou-se, possesso. Num segundo, porém, teve a fisionomia mais serena deste mundo.

— Como não, Glorinha? Deixe-me ajudá-la.

— Sente-se aí. Assim, quietinho.

Serviu-o, com imensa brandura.

— Glorinha...

— Diga.

— Quem foi que sujou o assoalho, ali?

— Não sei. Desde ontem que o assoalho está manchado...

— Ontem? Não estava, não. Eu apalpei... É comida quente.

— Talvez.

E acrescentou, amável:

— A negrinha vem cá limpar, logo mais.

— A negrinha pode vir. O que eu não quero ver dentro do quarto é o Ciro...

— Descanse. O Ciro não virá nunca mais. O Ciro já morreu.

— Porque, se ele vier, rasgo-lhe o pescoço com esta faca. Deste jeito. Veja.

E ensaiou o ato no ar, com os olhos brilhando.

— Sim. Estou vendo.

Glorinha compôs melhor a cama. Cerrou um pouco a janela, por causa do sol.

— O dia hoje está bonito, não?

— Muito.

Tomou um dos pratinhos.

— Quer mais disto?

Norberto não respondeu. Não respondeu, mas perguntou:

— Vamos passear hoje?

— Mais tarde.

— Só nós dois?

— Só nós dois.

— E mais ninguém?

— Mais ninguém.

— E Ciro?

— Ora bobo! O Ciro está viajando.

— Viajando?! Você me disse que ele morreu...

— É a mesma coisa. Morrer. Viajar...

Disse e foi saindo. Desceu a escada, desoladíssima.

Na varanda ensombrada, dona Guiomar acariciava o filho Ciro.

Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.

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