No alto, bem negro, um nome.
— Dezembro.
Mais abaixo, em encarnado, um algarismo.
— 4.
Leu. E repetiu baixinho:
— Quatro...
Caminhou na diagonal do aposento. Deteve-se, frente à luxuosa secretária.
Dezembro... Quatro...
Espetou o dedo no ar.
— O que é isto?
(O espelho copiou o gesto, com absoluta fidelidade).
— O que é isto, moço do espelho?
O moço do espelho estava de cinzento também. E tinha o cabelo loiro, encaracolado, bonito.
Fitaram-se longamente.
— Então, nada?
Pôs a mão no bolso. Tirou-a, rápido. O outro repetiu, simultaneamente, ambos os gestos.
— Você é louco?
O do espelho mexeu os lábios.
— Você é louco?
Virou-se sobressaltado. Que voz seria aquela?
Reparou que a janela estava aberta. Por ela entrava o sol medonho do verão.
Contemplou a rua. Algum movimento. Na calçada fronteira, três crianças coradinhas, trêfegas, brincando de roda. Na casa vizinha, a velha de chinelos de couro despachava o vendedor de frutas com dois desaforos. Um gato indolente não quis saborear os desaforos. E foi esfregar o dorso na areia morna.
Alguém parou embaixo da janela. E a velha de chinelos, na porta da frente:
— Glorinha. Pode me dizer que horas são?
— Onze e pouco. Saí da missa neste instante.
— Já? Virgem Maria! Como atrasei o almoço!
Fez menção de se recolher. Arrependeu-se em tempo.
— Sabe? Espero hoje o primo Justino, aquele do norte.
— Ahn!
Arriscou ainda:
— Como vai o mano, Glorinha?
Glorinha levantou os olhos desalentados até a janela.
— Naquilo mesmo.
— Coitado!
A velhota entrou correndo, bradada pelo cheiro ruim de cereal estorricado.
As crianças pararam de rodar, suadas, coradinhas.
O gato ali de perto sentiu a quentura da areia da rua. E rosnou, contente.
A moça, ainda uma vez, subiu a escada, com bandeja tomada inteira por novo almoço. Norberto não percebeu logo a entrada da irmã. Continuou de cócoras, a remexer a comida derramada.
— Vamos almoçar?
Levantou-se, possesso. Num segundo, porém, teve a fisionomia mais serena deste mundo.
— Como não, Glorinha? Deixe-me ajudá-la.
— Sente-se aí. Assim, quietinho.
Serviu-o, com imensa brandura.
— Glorinha...
— Diga.
— Quem foi que sujou o assoalho, ali?
— Não sei. Desde ontem que o assoalho está manchado...
— Ontem? Não estava, não. Eu apalpei... É comida quente.
— Talvez.
E acrescentou, amável:
— A negrinha vem cá limpar, logo mais.
— A negrinha pode vir. O que eu não quero ver dentro do quarto é o Ciro...
— Descanse. O Ciro não virá nunca mais. O Ciro já morreu.
— Porque, se ele vier, rasgo-lhe o pescoço com esta faca. Deste jeito. Veja.
E ensaiou o ato no ar, com os olhos brilhando.
— Sim. Estou vendo.
Glorinha compôs melhor a cama. Cerrou um pouco a janela, por causa do sol.
— O dia hoje está bonito, não?
— Muito.
Tomou um dos pratinhos.
— Quer mais disto?
Norberto não respondeu. Não respondeu, mas perguntou:
— Vamos passear hoje?
— Mais tarde.
— Só nós dois?
— Só nós dois.
— E mais ninguém?
— Mais ninguém.
— E Ciro?
— Ora bobo! O Ciro está viajando.
— Viajando?! Você me disse que ele morreu...
— É a mesma coisa. Morrer. Viajar...
Disse e foi saindo. Desceu a escada, desoladíssima.
Na varanda ensombrada, dona Guiomar acariciava o filho Ciro.
Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
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