quinta-feira, 3 de julho de 2025

Contos e Lendas do Japão (O gato assombrado de Nabeshima)


As folhas de momiji (acer), que da cor verde passaram para o amarelo e depois para o laranja, agora ganhavam uma cor vermelho vivo. Não só as árvores como o chão, forrado de folhas caídas, davam a impressão de que todo o jardim do castelo de Nabeshima havia pegado fogo. Era final de outono no Japão.

O príncipe de Hizen, um membro da família honrada de Nabeshima, tinha como sua concubina favorita uma mulher charmosa, cujo nome era Otoyo. Certa ocasião, os amantes passeavam no jardim do castelo e permaneceram apreciando as flores até o pôr-do-sol. No retorno, sem que eles percebessem, foram seguidos por um enorme gato negro.

Otoyo dirigiu-se para o seu quarto e sentiu uma inesperada indisposição. Tentou manter-se acordada, mas logo dormiu. À meia-noite, foi despertada por uma estranha sensação e viu dois olhos enormes que a fixavam brilhando na escuridão. Prestando bastante atenção, percebeu que se tratava de um enorme gato negro. Porém, antes que ela pudesse gritar pedindo ajuda, o animal saltou em sua garganta e mordeu-a profundamente, estraçalhando seu pescoço até a morte. O gato, então, foi lambendo o sangue da moça e adquirindo forma humana, ficando igual a sua vítima. Então, arrastou Otoyo para baixo do assoalho e enterrou o corpo sob a varanda.

O príncipe, que de nada sabia, não desconfiou nem um pouco da bela mulher que naquela noite o procurou para fazer amor. Assim, nos dias seguintes, como um ritual, ela o procurava no meio da noite e ia sugando seu sangue sem que a vítima percebesse. Em poucos dias, o príncipe de Hizen perdeu toda a força e seu rosto estava mais pálido que uma vela. Permanecia o dia todo deitado, pois já não tinha força para se levantar.

Os médicos do palácio prescreveram vários medicamentos, mas nenhum fez o efeito desejado. Suspeitaram então que alguém estava envenenando o príncipe.

Vários samurais montaram guarda ao redor de seu quarto. Porém, quando chegou o meio da noite, todos pegaram no sono e só acordaram na manhã seguinte. Nas noites que se seguiram, as mesmas coisas aconteceram. Nenhum soldado conseguia ficar acordado.

Os conselheiros concluíram que alguma força estranha, de poder sobrenatural, estava agindo naquela alcova. Chamaram monges budistas e sacerdotes xintoístas para fazer exorcismo no quarto, já que a saúde do príncipe ia piorando dia a dia. Foram semanas de orações e rituais diversos, mas de nada adiantou, a saúde do príncipe de Hizen ia de mal a pior.

Naquela ocasião, um samurai de nome Ito Soda, que serviu na infantaria de Nabeshima, atravessou o jardim de inverno e invadiu as proximidades do quarto do príncipe. Ele solicitou aos conselheiros que permitissem a ele permanecer escondido no quarto do enfermo, para desvendar como agia o espírito maligno que estava prejudicando seu senhor.

Seu pedido foi prontamente aceito, já que todas as tentativas tinham se mostrado infrutíferas. Ito ficou firme em seu posto, no entanto, como aconteceu com os guardas que o antecederam, a partir das dez horas, começou a sentir um sono irresistível. Para espantar seu sono, espetou sua faca profundamente em sua coxa, de modo que a dor aguda o mantivesse acordado.

De repente, as portas deslizantes do quarto do príncipe abriram-se, e uma linda mulher entrou e dirigiu-se ao leito. Ela agachou na cabeceira do príncipe e esticou o pescoço como quem vai beijar o adormecido. Porém, a mulher, pressentindo a presença de mais alguém no quarto, virou a cabeça e, com olhos brilhantes, disse:

– Tem alguém aí?

Ito permaneceu escondido e em silêncio, espiando pela fresta da porta do quarto ao lado. Percebendo que alguém a observava, ela levantou e saiu do quarto às pressas.

Na noite seguinte, a cena se repetiu. Assim, por não ter sido subjugado por duas noites seguidas enquanto dormia, a saúde do príncipe melhorou consideravelmente. Para Ito Soda, ficou claro que Otoyo era alguma entidade maligna tentando acabar com a vida do príncipe de Hizen. Diante disso, traçou um plano para acabar com ela.

Fingindo ser um mensageiro do príncipe, foi até o quarto dela, para entregar um bilhete que sua alteza lhe enviara. Ao aproximar-se da falsa Otoyo para entregar o suposto bilhete, Ito sacou da espada e desferiu um golpe na direção dela. Porém, com percepção felina, ela esquivou-se da lâmina pulando para trás. Na sequência, assumiu a forma de um gato preto e saltou pela janela. Ganhou o telhado do castelo e, segundos depois, fugia em direção à montanha.

Esse gato que gostava de lamber sangue humano passou a incomodar os habitantes da montanha. Tempos depois, o príncipe de Hizen, completamente recuperado, organizou uma caçada ao gato maldito de Nabeshima. Um exército com milhares de samurais vasculhou a montanha. Somente no oitavo dia, finalmente, o gato maldito foi liquidado e a paz voltou à região.
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Comentário:
Os primeiros gatos foram introduzidos no Japão por Fujiwara-no-Sanesuke, um nobre da corte do imperador Ichijo (987–1011). Trazidos da China, esses animais de estimação eram vistos com reserva pelos japoneses. Além de não serem obedientes como os cachorros, eram considerados destrutivos por natureza, por rasgarem tatami de palhas (tablado que servia de assoalho) e fazerem furos no shoji (parede de papel) para apanhar insetos que vinham as casas atraídos pelas lamparinas. Na época, a iluminação das casas era à base de lamparina a óleo, e os gatos gostavam de lamber esse óleo combustível, muitas vezes causando incêndio. Assim como a raposa, o texugo e a serpente, o gato era considerado um animal assombrado no antigo Japão.

Fonte: 
http://www.nippobrasil.com.br/

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Asas da Poesia * 43 *

 

Trova de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Ao operar seu nariz
perdeu um olho, o Batista.
Vem outro louco e, então, diz
que o pagamento era... a vista!
= = = = = = = = =  

Poema de
MARIA SABINA DE ALBUQUERQUE
Barbacena/MG (1898 – 1991) Rio de Janeiro/RJ

Cartas de amor

Quando recebo as minhas cartas cada dia,
tenho um lindo momento de alegria! 
São notícias diversas
das criaturas amigas que, dispersas
por este mundo, aos quatro ventos,
recordam-se de mim com amizade
e, para suavizar a distância e a saudade,
vêm conversar comigo alguns momentos.
E alguém me disse um dia:
“Se tens tamanho encanto
em receber cartas amigas simplesmente,
tu que te alegras tanto,
certamente
enlouquecias de alegria,
estremecias de fervor
se estas cartas comuns fossem Cartas de Amor!

E então me recordei que no lindo romance
que foi o meu amor,
tive tudo o que estava ao meu alcance,
todo o esplendor,
a beleza, a ternura, o encanto, a ânsia,
mas não tive a Distância
nem as Cartas de Amor.

E hoje que a Eterna Ausência nos separa
e que a Distância que ninguém transpôs,
como uma Via Láctea imensa e clara
se estende entre nós dois,
como seria bom se as estrelas cadentes,
riscando a noite com seu fulgor,
pequeninos correios refulgentes,
trouxessem lá do céu minhas Cartas de Amor!
= = = = = = = = =  

Trova de
ARTHUR THOMAZ
Campinas/SP

Uma foto amarelada
foi, no passado, importante.
Hoje, nem sequer notada,
é esquecida numa estante…
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Janela azul

Na pausa do olhar
A poesia, devagarzinha
Alisa e desliza
Na janela de madeira azul
De nós trabalhados pela
Passagem do tempo
São imóveis olhares...
Há uma rústica e desbotada
Interação entre os tons de azul
Que se mesclam à madeira-
Na pausa do olhar
A delicadeza
Das mãos, agora, invisíveis
Que tantas vezes
Entreabriram a janela...
= = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

- Este bolso é meritório,
nunca viu nada roubado!
Perguntam lá do auditório:
- Terno novo, Deputado?
= = = = = = 

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Onde só haja espuma sal e vento
(Sophia de Mello Breyner Andresen in "Mar novo")

Onde só haja espuma, sal e vento
Irei plantar o germe da Poesia
Deixando que ela cure essa anemia
Que mói lugar tão ermo e avarento.

Por efeito do lírico fermento
Que a pobreza do chão e ar vencia
O verso cometeu a ousadia
De florir onde não havia alento.

A frase tudo vence quando prima
Pela pujança forte dessa rima
Que é gerada na verve de um poeta.

E o poema faz-se arma de batalha
Que peleja no chão por onde espalha
O Belo que na alma se arquiteta.
= = = = = = = = = 

Triverso de
EDSON KENJI IURA
São Paulo/SP

Chuva de primavera —
O casal na correria
rindo sem parar.
= = = = = = 

Poema de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Rei destronado

O teu lugar vazio!... E esteve cheio,
Cheio de mocidade e de ternura!
Como brilhava a tua formosura!
Que luz divina te dourava o seio!

Quando a camisa tépida despias,
- Sob o reflexo do cabelo louro,
De pé, na alcova, ardias e fulgias
Como um ídolo de ouro.

Que fundo o fogo do primeiro beijo,
Que eu te arrancava ao lábio recendente!
Morria o meu desejo... outro desejo
Nascia mais ardente.

Domada a febre, lânguida, em meus braços
Dormias, sobre os linhos revolvidos,
Inda cheios dos últimos gemidos,
Inda quentes dos últimos abraços...

Tudo quanto eu pedira e ambicionara,
Tudo meus dedos e meus olhos calmos
Gozavam satisfeitos nos seis palmos
De tua carne saborosa e clara:

Reino perdido! glória dissipada
Tão loucamente! A alcova está deserta,
Mas inda com o teu cheiro perfumada,
Do teu fulgor coberta...
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

No instante da despedida, 
arquivei no pensamento 
a tristeza da partida
e a dor do meu sofrimento.
= = = = = = 

Poema de
EFIGÊNIA COUTINHO
Balneário Camboriú/SC

Cupido

Sendo eu mulher, muito mulher,
confesso (e me penitencio, se é mister),
que não nasci para ser pobre!
Está no meu feitio desejar que a existência
se desdobre na magnificência, jamais em privações.
.
Tenho gostos, requintes de caprichos,
ambições, e, sem razão, não nego aos meus
sentidos, os gozos com que a Vida me agracia,
enaltecendo a dor apenas em teoria!

Porem, nada possuo em realidade!
Nem fausto, nem poder...
Porque, para seguir um velho ditado,
do Grande Livro, Santo e Consagrado,
o meu despotismo deve ser restrito,
e pertence, inda assim, ao meu Amado!

Em meio ao destino que me impõe,
entretanto, eu duvido, haver outra
mulher a quem Cupido generoso ofertasse
um lindo trono, com mais magnificência do que
o meu, onde governo só, como a depositaria
de um tesouro de Amor, que tocou o apogeu!

E, por muito que conte e reconte,
meu Capital de multimilionária,
eu nunca chego ao fim, porquanto de
uma fonte fecunda e inexorável se origina.

Cresce dentro de mim esta riqueza ilimitada,
sólida e genuína, que me empresta atitudes de
Princesa! E, entre as Fortunas de que tomo
a nota, a minha é que mais vale e mais ressalta,
pois dos meus bens a renda não se esgota!
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Peixinho mais mascarado 
do que aquele eu nunca vi:
- só belisca anzol marcado, 
"minhoca com... pedigre"…
= = = = = = 

Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Os parceiros

Sonhar é acordar-se para dentro:
de súbito me vejo em pleno sonho
e no jogo em que todo me concentro
mais uma carta sobre a mesa ponho.

Mais outra! É o jogo atroz do Tudo ou Nada!
E quase que escurece a chama triste...
E, a cada parada uma pancada,
o coração, exausto, ainda insiste.

Insiste em quê? Ganhar o quê? De quem?
O meu parceiro... eu vejo que ele tem
um riso silencioso a desenhar-se

numa velha caveira carcomida.
Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce...
Como também disfarce é a minha vida!
= = = = = = 

Trova de
CAMPOS SALES
Lucélia/SP, 1940 – 2017, São Paulo/SP

Nosso amor foi tão verdade,
que mesmo tendo acabado,
há uma ponte de saudade,
ligando o nosso passado!
= = = = = = 

Hino de
INAJÁ/PE

Coroada esta bela cidade
Por teus filhos criados por ti
és amada e adorada por todos
esta terra de esperanças mil.

Inajá Palmeiras Pequenas
Na ribeira do Rio Moxotó
O teu nome, gravado na história
se enfeita ao clarão do luar.

És o coração deste mapa
És a estrela D'alva no céu
Esse torrão que irradia
nessa pátria imortal de harmonia.

Inajá Palmeiras Pequenas
Na ribeira do Rio Moxotó
O teu nome, gravado na história
se enfeita ao clarão do luar.

Os Raios do Sol que iluminam
os campos verdes desta terra
entre todas és a mais encantada
no Brasil Luz que brilha ao nascer.

Inajá Palmeiras Pequenas
Na ribeira do Rio Moxotó
O teu nome, gravado na história
se enfeita ao clarão do luar.

Dois que data que marca
A vitória de uma liberdade
Auriverde nas margens do rio
Nova luz ao nascer do amanhã.

Inajá Palmeiras Pequenas
Na ribeira do Rio Moxotó
O teu nome, gravado na história
se enfeita ao clarão do luar.
= = = = = = = = =  

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

A vida é um túnel estreito
que à eternidade conduz.
- Só o amor nos dá o direito
ao desembarque na Luz.
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

A passagem

Quando já se passaram muitos anos,
Deus vai nos preparando este caminho.
Não somente as tristezas, desenganos,
Mas colocando a vida em desalinho.

Pouco a pouco as ações e atos humanos,
Vai tirando de nós, também carinho.
Uma febril tristeza e desenganos
Transforma nossa vida em torvelinho.

Já não faz falta mais nossa presença,
Somos transtornos sempre a qualquer hora,
É melhor a partida que a doença.

Mas, Deus que é nosso pai muito bondoso,
Vai nos mostrando aos poucos vida a fora,
Uma nova visão do eterno gozo.
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Abro a porta e a janela 
do meu coração em festa 
quando a manhã tagarela 
põe voz na densa floresta.
= = = = = = = = =

Spina de
VERA SALVIANO
Raul Soares/MG

Abandono

Sentindo agora, abandonada,
retira-se deveras entristecida.
Coisas da vida!

Sem saber o que pensar,
lá foi ela sem entender,
mais que triste, magoada, ferida!
As horas tombam, mortas agora.
Mais uma vez solitária, desiludida.
= = = = = = = = =  

35 Trovadores em preto & branco (E-book gratuito)


E-book de 200 páginas, com análise das trovas de 35 trovadores de diversos estados do Brasil. 


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Eduardo Martínez (A treta do amigo do meu amigo)

 
  Tenho alguns amigos muito próximos, que conheço há décadas. No entanto, vou falar aqui de um que, apesar do pouco tempo de amizade, já o guardo em alta estima. As circunstâncias que nos aproximaram são tão esdrúxulas, que prefiro deixar para um futuro improvável se falarei como nos conhecemos. Seja como for, para a história que vou contar, esse detalhe é irrelevante. Mas adianto que ele nasceu em Visconde do Rio Branco, pequena cidade da Zona da Mata, mas mora em São Paulo desde o final dos anos 1970, além de ser palmeirense quase tão chato que nem a minha mulher, a Dona Irene. Seu nome? Isso posso lhe dizer: Cleidson.

    Estávamos conversando um dia desses em Porto Alegre, na casa da Dona Irene. Aliás, falar que estávamos conversando é força de expressão, pois o Cleidson parece que tem o DNA do Fidel Castro, já que, quando começa a discursar aqueles falas longas, somos, literalmente, só ouvidos. Às vezes, nos perdemos em pensamentos paralelos, tamanhos são os causos contados por ele. Mas uma nos chamou a atenção, que era sobre uma aventura em que ele praticamente foi desafiado a enfrentar: rapel em uma cachoeira muito alta. 

    Mas antes que você imagine que o meu amigo é um indivíduo que adora esportes radicais, vou logo avisando: o Cleidson é do tipo que prefere passar o dia inteiro no sofá jogando paciência no celular. E, quando deseja sentir mais emoção, ele busca um filme de terror tipo B, desses que você não sabe se fica com medo ou se ri, de tão absurda que é a história. Ou seja, o meu amigo é provavelmente o último ser vivo que poderíamos esperar que se aventurasse descer pendurado por uma corda em uma cachoeira, com sério risco de despencar e se esborrachar todo nas pedras e, por conseguinte, virar comida de piranhas assassinas. Mas lá foi ele!

    Enquanto descia pela corda, que rangia como se fosse partir a qualquer momento, o nosso quase herói se deparou com um vão na cachoeira, que o obrigava a ficar de ponta-cabeça. No entanto, a água, que descia muito forte, antes na sua cabeça, passou a atingir as partes mais sensíveis do Cleidson, que começou a gritar de dor. Com a boca aberta, acabou bebendo forçosamente litros de água. 

    Desesperado e sem ar, ele voltou a ficar na posição quase em pé, o que provocou uma forte batida da sua testa numa pedra. O sangue, obviamente, escorreu por seu rosto, tampando ainda mais a sua visão. Desesperado, o meu amigo já imaginou que aquele seria o seu adeus deste mundo, quando, após vários minutos, que pareceram séculos, foi socorrido por um amigo que estava nas proximidades.

    Logo após terminar essa história, a Dona Irene e eu notamos que o Cleidson tremia e suava, como se tivesse passado novamente por essa situação tão perigosa. Ficamos em silêncio não sei por quanto tempo, até que a minha esposa se virou para ele e perguntou: "O que esse seu amigo tinha contra você?”
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Contos e Lendas do Japão (O cavalo das cores e as sete berinjelas)


No Japão, existe um dito que diz: “Se ama seu filho, permita que ele viaje”. O imigrante japonês no Brasil conhece bem o sentido dessa frase.

Há muitos e muitos anos, numa aldeia rural do Japão, viviam dois inseparáveis amigos. Eisuke era filho do chefe da aldeia, uma família abastada, dona das terras daquela região. Goro era filho de pobres lavradores, que trabalhavam nas terras do pai de Eisuke. Apesar da diferença social econômica das famílias de ambos, eles viviam sempre juntos, desde quando pequeninos.

Certa ocasião, os dois, cansados de viverem dentro dos limites da aldeia, resolveram conhecer outras paragens e ganharam a estrada.

Caminhavam alegremente, ora cantando, ora tirando músicas assoprando folhas de bambu esticadas nos lábios. Prosseguiam a viagem despreocupados.

Dias depois, na travessia de uma montanha, perderam-se no meio da mata. A noite caiu, e a floresta transformou-se em completa escuridão. Apesar do medo, continuaram caminhando, pois permanecer ali parecia por demais perigoso. De repente, avistaram uma luz no meio da mata. Os dois rumaram apressados em direção à luz, pois devia, com certeza, ser uma casa. Por sorte, era uma hospedaria. Os meninos ficaram animados e pediram uma pousada para uma velha dona da pensão. Cansados que estavam, logo Eisuke adormeceu. Goro, que nunca tinha dormido numa hospedaria, apesar de exausto, não conseguia pegar no sono.

De repente, percebeu que uma pessoa estava atrás de um shoji (parede móvel de papel), então fechou os olhos e fingiu que estava dormindo. De olhos semi-cerrados, viu que a dona da pensão olhou para dentro do quarto e, vendo que os dois estavam dormindo, deu uma risada horripilante e se afastou do corredor. Goro ficou arrepiado de medo, aquela não era uma situação normal.

Da porta corrediça que a velha deixou semi-aberta, Goro podia vê-la na sala no fim do corredor. A velha sentou-se perto do irori (fogareiro), mexeu as cinzas com dois palitos de ferro e acendeu o fogo assoprando as brasas no centro do irori. Em seguida, depositou algumas sementes nas cinzas. Goro não estava entendendo nada do que estava acompanhando.

Para a surpresa do menino, como sementes plantadas começaram a brotar e a crescer em segundos. Como folhas finas e compridas denunciavam que eram pés de arroz, que incrivelmente vieram a soltar cachos, que  carregados, fizeram como hastes curvarem. Segundos depois, os cachos pendentes ficaram amarelos e prontos para ser colhidos.

A velha colheu o arroz, tirou a casca esfregando-o em uma peneira de bambu e cozinhou-o no fogareiro. Depois, amassou-o num pequeno pilão e fez quatro motis (bolinhos de arroz glutinoso). Goro, que assistiu a tudo, pensou em contar para o amigo, mas vendo Eisuke roncando, resolveu deixar para o dia seguinte. Cansado, Goro também acabou pegando no sono.

No dia seguinte, quando Goro despertou, o sol já estava alto. Olhou para o leito ao lado e viu que Eisuke já havia se levantado. Então, levantou-se depressa e correu para a sala. A dona da hospedaria estava oferecendo os bolinhos para Eisuke. Goro gritou para que ele não comesse aquele moti, porém, era tarde. Eisike havia posto o bolinho na boca e degustou-o com satisfação.

– Nossa, que bolinho gostoso. Quero mais.

– Sim, coma! – disse a dona da pensão.

– Não coma! – gritou Goro.

Mas era tarde. Eisuke botou as mãos sobre a barriga, começou a se contorcer e, por mais incrível que possa parecer, transformou-se num cavalo. Um cavalo bonito, mas diferente de todos os cavalos que o homem tinha visto até então. Um cavalo todo colorido, como se fosse um cavalo de circo. Goro ficou paralisado de susto. Compreendeu que era a velha dona da pensão, na verdade, uma Yamanbá (bruxa da montanha), que transforma todos os viajantes que se hospedam. Já havia ouvido qualquer coisa a respeito, mas não acreditou que pudesse ser verdade. No entanto, seu amigo Eisuke era agora um cavalo de sons, com colorido impressionantemente belo e maluco.

– É sua vez. Coma os motis, garoto – disse a velha, esticando o prato com dois bolinhos ao garoto.

Goro estava paralisado de medo, mas numa reação desesperada, derrubou o prato dos bolinhos com um mão e saiu correndo da casa. Correu desesperado, sem rumo, até que avistou uma casa de lavrador no vale.

Quando Goro abriu os olhos, estava estirado sobre um tatame (esteira de palha) na casa do vale. Um velho com barba e cabelos compridos, que observava seu desespero, sorriu e disse:

– Vejo que está melhor. Você bateu na minha porta e desmaiou de canseira.

– Estou com sede. Muita sede – disse Goro, percebendo que estava diante de um Sennin (sábio imortal), e que só ele poderia ajudá-lo a salvar seu amigo.

Depois que tomou várias tigelas de água, Goro contou o ocorrido ao bom velhinho e pediu ajuda para salvar seu amigo. O ancião ensinou, então, que o único modo de salvar seria fazer Eisuke comer sete berinjelas de um mesmo pé.

– Só assim seu amigo voltará a ser humano. 

Em seguida, o velho fez um mapa ensinando o homem onde poderia encontrar uma grande plantação de berinjelas e como chegar de volta à casa da Yamanbá. 

Assim, Goro, agradecendo ao velhinho, seguiu o que indicava o mapa. Uma plantação de berinjela era enorme. Goro saiu contando pé por pé quantas berinjelas tinha cada um. Depois de muitas horas, finalmente achou um pé com as sete berinjelas. Então, arrancou o arbusto e foi em direção à casa da Yamanbá.

O cavalo estava amarrado em uma árvore ao lado da “hospedaria”. Goro aproximou-se sorrateiramente, desamarrou a corda e disse:

– Eisuke, escute, sou eu, Goro.

O cavalo olhou-o como se reconhecesse o amigo e balançou a cabeça no sentido vertical.

– Olha, você tem que comer estas sete berinjelas. Assim que comer, o encanto se quebrará, e você voltará a ser gente – o cavalo fez movimento horizontal com a cabeça, como quem desaprova uma ideia.

– Puxa, agora lembrei que você não gosta de berinjelas. Sua mãe vive dizendo para você comer berinjelas, mas você detesta. Só que, desta vez, você vai ter de comer estas sete, se não quiser ser cavalo para o resto da vida. Essas berinjelas foram sugeridas por um Sennin, não tem erro.

Assim, fazendo cara de poucos amigos, o cavalo começou a comer as berinjelas. Depois, ao digerir a última, como num passe de mágica, voltou a ser Eisuke. Os dois se abraçaram de alegria e trataram de fugir do local o mais rápido possível. 

De volta à aldeia, cada um foi para sua casa e, durante bom tempo, tiveram histórias para contar. Anos depois, tornaram-se sócios em uma plantação de berinjelas e continuaram bons amigos para sempre.

Fontes: 
http://www.nippobrasil.com.br
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Leandro Silva (A vida me quebrou)


NÃO FOI de uma vez — foi aos poucos.

Fui me rachando em silêncios não ouvidos, em promessas quebradas, em noites longas sem respostas.

As rachaduras começaram como pequenas linhas no reboco da alma.

Quase invisíveis.

Mas profundas demais para serem ignoradas.
 
E eu? Eu era como um muro.
Feito para proteger.
Feito para sustentar.
Feito para ser firme.
 
Mas que começou a ceder com o tempo… com o peso… com a chuva.
 
No começo, eu temi as rachaduras.
Achei que eram sinal de fraqueza.
Achei que significavam o fim da minha força.
 
Mas o que eu não sabia…
É que através delas, a luz começou a entrar.
 
Aquelas fissuras viraram janelas para a esperança.
O sol passou a bater onde antes era sombra.
Pássaros fizeram ninho nas fendas que o tempo abriu.
Aqueles pequenos — os que ninguém vê — encontraram abrigo em mim.
E, quando percebi, flores começavam a nascer ali.
 
Não flores raras, nem premiadas.
Mas flores reais, como a erva-de-passarinho ou a samambaia-de-muro,
que se agarram às fendas, se enraízam nos espaços tortos
e ajudam o muro a respirar, a sustentar-se de novo,
a reencontrar equilíbrio com a própria imperfeição.
 
“O Senhor está perto dos que têm o coração quebrantado
e salva os de espírito abatido.”
(Salmo 34:18)
 
A vida me quebrou…
Mas não me derrubou.
Porque Deus me fez assim:
com estrutura de barro,
mas fundamento de graça.
 
Foi ali — no concreto rachado da alma — que descobri um Deus que não me reconstruiu de imediato,
mas me deixou florescer primeiro.
Me ensinou que algumas flores nascem justamente onde ninguém esperava beleza.
 
E se hoje alguém olhar para mim e disser:
“Você está cheio de marcas.”
Eu respondo:
Sim. Mas estou de pé.
E minhas rachaduras contam história.
Histórias de luta, de acolhimento, de transformação.
Histórias de um muro que não caiu.
Histórias de quem aprendeu que há vida —
até mesmo onde a estrutura parecia ruir.
 
Hoje entendo:
Deus não usou cimento pra me tampar.
Ele usou flores, ninhos e luz.
Porque Ele sabia que a reconstrução mais sólida
é aquela feita de dentro pra fora.
 
Se você se sente rachado, inseguro, instável…
Não desanime.
Flores podem nascer aí também.
Deus ainda usa muros marcados para proteger.
E rachaduras… para semear graça.
 
A vida me quebrou…
Mas eu floresci nas rachaduras.
E hoje, sou abrigo.
Sou muralha viva.
Sou testemunho.
* * * * * * * * * * * * * 
Leandro Silva é de Vila Velha/ES

Fontes:
Enviado por Aparecido Raimundo de Souza
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Aparecido Raimundo de Souza (A tristeza da lâmpada queimada)


EM UM CANTO esquecido da sala enorme, jogada dentro de uma caixa de papelão cheia de bugigangas, a pobre e indefesa lâmpada queimada se flagra derreada, totalmente entristecida, o coração repleto de lembranças imorredouras. Até pouco tempo, coisa de um mês, pendurada no bocal no meio da sala gigantesca, a belezura iluminava o ambiente deixando-o totalmente claro, onde uma agulha, se caísse no chão, seria achada com a maior facilidade. Hoje, queimada, à mercê das garras do abandono e a sanha do “salve-se quem puder,” espera pelo fatídico de uma partida sem adeus, sem as alacridades dos aplausos dos seres humanos que nunca, em nenhum momento, deixou ficassem nas edacidades (voracidades) das trevas do menosprezo. 

A lâmpada (ou melhor, a fluorescência que dela restou) relembra com tristeza as histórias de quando a sua robustez se fazia viril, não permitindo que nenhum canto da peça tivesse um tantinho assim que fosse, de obumbração (sombras). Ela foi, por muito tempo, o sol de um universo doméstico, iluminando histórias e aquecendo corações. Foi testemunha de amores que vingaram, de corações apaixonados que se entrelaçaram, bem ainda partícipe de brigas acirradas, de xingamentos descomedidos e lágrimas derramadas em vão pelo amor de um parente doente que partiu. Cada filamento de seu corpo, tinha seu destino traçado e o dela, fora feito para brilhar, fulgurar, reluzir sobressair, chamejar, raiar, ascuar (chamejar), até o fim. 

De repente, do nada, com um estalo sutil, num último lampejo de vida, ela se reduziu à obscuridade de um apagão inexorável, interminável, vitimada por uma pancada quase imperceptível como se a companhia de luz lhe apunhalasse, sem motivos aparentes, a caixa de barramento de todo o prédio. Sua chama se fez extinta, suprimida, eliminada, apagada, como se o dedo de uma mão invisível apertasse o interruptor de forma irrefletida e impulsiva. Desde esse instante, a pobre lâmpada não mais se viu altaneira, com a sua fonte de luz plena e percuciente (penetrante), apenas um lembrete (ainda assim muito vago) de que a mais brilhante estrela poderia, num piscar de olhos, desvanecer. Agora, a coitadinha jazia numa casca de vidro repletas de memórias. 

A repetidoria disturbiada (perturbada) de um ontem não totalmente fora de foco, ainda se faz prisioneira na imensidão da sua dor. Um grito tênue e abafado, retido e sentido, a todo momento insiste em desanimá-la e deixa-la para baixo, não permitindo que descanse em paz. Assim que foi esquecida e atirada dentro daquela caixa de papelão até o pescoço de escumalhas (escória) sem valor, a sua alma se empobreceu. Ela sabe que foi empurrada escadas abaixo para o mais infame das misérias, ou seja, aquele patamar inglório que Marx rotulou de lumpesinato (marginalizado). A espera do fim, sem forças para voltar a ser o que outrora a colocou no auge, a pobre lâmpada se vê martirizada às calamidades de uma camada social sem forças de ocupar o seu antigo estado de destaque e postura. 

Com seus botões, pensa se tivesse forças, possivelmente se quebraria, fosse se atirando de cabeça no piso daquele ambiente que tantas alegrias lhe propiciou, ou se esmagaria até se ver em pequenos estilhaços em face de um daqueles objetos que lhe serviam de companhia à espera, possivelmente, de um saco de lixo a ser atirado de qualquer jeito num desses caminhões recolhedores de entulhos. Se pararmos para avaliar o que o presente texto tenta focar, chegaremos à conclusão que assim somos nós. Sem tirar, nem por, nós, humanos, nos assemelhamos a uma lâmpada colocada num bocal em meio a um teto da sala ou de uma cozinha. Não importa. Enquanto alimentamos com a luz que vem de dentro de nossa alma, todos nos querem por perto. 

Ao perdermos o viço, a vida, ou seja, ao nos pegarmos queimada, seremos arremessados aos rebotalhos (refugos) do desuso.  Não podemos nos esquecer, jamais, que viramos, em questão de segundos, em algo obsoleto e sem valor. Somos também, sem tirar nem pôr, como essas lâmpadas em postes espalhadas pelas ruas da cidade. Até o dia em que qualquer coisa não prevista, o nosso corpo se deteriorará e apagaremos. E ao nos tornarmos ultrapassados, superados, antiquados, nos postaremos à mercê de um simpático latão de lixo que nos levará para algum lugar desconhecido, um futuro negro que nos espera. A nossa luz é como a vida humana. Passageira, embora a esperança seja eterna e não desfaleça. 

O que acontece, dia após dia, é que vem um engraçadinho com uma lâmpada nova em folha e nos deixa, por conta, jogado num canto, “e agora?!”, enquanto uma outra ofuscação incandescente tomará nosso lugar e fará com que o bocal que se entrelaçava mavioso, se torne um objeto ainda mais cobiçado e, pior, de rara beleza e esplendor.  A tristeza de uma lâmpada queimada talvez esteja em sua incapacidade de fazer aquilo para o qual nasceu, isto é, iluminar, tornar tudo às claras. Mas a lâmpada queima porque cumpriu a sua função, ainda que brilhara enquanto pôde. E assim somos nós, inquestionavelmente, na nossa jornada cotidiana. 

Se a grosso modo pensarmos em nossas vidas como lâmpadas, talvez o importante não seja evitar o momento em que deixemos de clarificar ou engalanar, mas sim aproveitar ao máximo o tempo em que a nossa luz brilhou. Cada um de nós, humanos, como seres viventes, deixamos nosso brilho de forma única, impactando os espaços ao redor. E, quando queimamos, nada mais justo que sejamos trocados. Lembrem que até os defuntos enterrados, são nos cemitérios substituídos por novos, de cinco em cinco anos. Nesses momentos meio que trágicos, poderemos até servir de inspiração para novas ideias — assim como a nossa essência e legado podem continuar subsistindo, mesmo quando não estivermos mais aqui.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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