domingo, 7 de setembro de 2025

Charles Dickens (O Barão de Grogzwig)

O barão Von Koëldwethout, de Grogzwig, na Alemanha, era tão parecido com um jovem barão quanto podia ser. Não preciso dizer que ele morava num castelo, pois isso é óbvio; desnecessário também dizer que num castelo antigo, pois qual barão alemão alguma vez morou num castelo novo? A venerável construção era envolta por muitas circunstâncias estranhas, entre as quais algumas nem um pouco misteriosas ou assustadoras. Por exemplo, quando o vento soprava, ribombava no interior das chaminés, ou mesmo uivar por entre as árvores da floresta vizinha; quando a lua brilhava, era para se infiltrar pelas seteiras da muralha, deixando bem-iluminados alguns trechos dos amplos corredores abertos e terraços, enquanto outros ficavam tristemente imersos nas sombras. Creio que, na falta de dinheiro, um dos ancestrais do barão certa noite cravou uma adaga em um cavalheiro que, em busca de informações quanto a que trajeto tomar, batera-lhe à porta, e supunha-se que, em decorrência disso, aquelas ocorrências miraculosas passaram a se manifestar. Todavia, para mim ainda permanece obscuro como isso pode ser, já que o ancestral do barão, tido como homem afável, terrivelmente compungido por sua impetuosidade, arrebatou de um barão menos importante certa quantidade de pedras e madeira, e com esses materiais erigiu uma capela em sinal de arrependimento por seu ato, ganhando assim um recibo do céu por saldar todas as suas dívidas.

Falar daquele ancestral do barão traz-me à lembrança o rigor com que o barão exigia respeito diante da grandeza de sua estirpe. Temo não poder afirmar com toda a certeza o número de ancestrais do barão, mas sei que esses eram em número bem maior do que os de qualquer contemporâneo seu. Pena ele não viver nos dias de hoje, pois poderia ter feito mais. Como é duro para os grandes homens de idos séculos terem vindo ao mundo tão precocemente! Não se pode querer, nem com um mínimo de plausibilidade, que um homem nascido há trezentos ou quatrocentos anos tenha tantos antepassados quanto um homem que nasce hoje. O último homem, quem quer que seja – tanto quanto sabemos, pode ser um sapateiro, ou um vil e vulgar vagabundo –, terá uma árvore genealógica muito maior do que o maior dentre todos os mais importantes nobres hoje vivos; e quero argumentar que isso não é justo.

Pois bem, retornando ao barão Von Koëldwethout de Grogzwig! Era um sujeito galhardo, de pele morena, cabelos escuros e farto bigode, que saía para caçar usando seu traje de montaria de sarja verde de Lincoln, botas de burel e uma corneta pendurada no ombro, parecendo um cocheiro. Quando soprava a corneta, 24 outros cavalheiros de linhagem inferior, em sarjas verdes de Lincoln um pouco mais grosseiras e botas de burel com solas um pouco mais grossas, surgiam de imediato; a comitiva toda saía a galope, iam juntos, segurando lanças que mais pareciam as barras laqueadas de um gradil, para caçar javalis – ou talvez campear um urso; neste caso, era o barão quem o matava, e mais tarde engraxava os bigodes na gordura do bicho.

Era boa a vida do barão de Grogzwig, e melhor ainda a vida de seus agregados, que bebiam vinho do Reno todas as noites até escorregarem para debaixo da mesa, quando então largavam as garrafas no chão e ali mesmo pediam cachimbos. Nunca houve espadachins tão alegres, prazenteiros, folgazões e fanfarrões como os do jovial grupo de Grogzwig.

Mas os prazeres da mesa, ou melhor, os prazeres de debaixo da mesa pediam um pouco de variedade, especialmente quando as mesmas 25 pessoas sentavam-se diariamente para saborear o mesmo banquete, discutir os mesmos assuntos e contar as mesmas histórias. Pois o barão acabou por se enfadar com tanta mesmice e queria novidade. Ele passou a se atracar com seus cavalheiros e experimentou chutar dois ou três deles todas as noites após a ceia. A princípio, a coisa foi divertida, mas a monotonia voltou a reinar depois de uma semana ou pouco mais, e o barão ficou mal-humorado e passou a procurar aqui e ali, em desespero, por algum novo passatempo.

Certa noite, ao fim de um dia de caça em que conseguira superar Nimrod (*) e Gillingwater (**) e abatera “mais um magnífico urso”, o barão Von Koëldwethout trouxe o animal para casa em triunfo, sentou-se taciturno à cabeceira de sua mesa e ficou a mirar o teto sujo de fuligem de seu salão com desgosto. Entornou enormes copos de vinho, cheios até as bordas, mas, quanto mais bebia, mais franzia o cenho. Os cavalheiros que haviam sido honrados com a perigosa distinção de sentarem-se à direita e à esquerda do anfitrião imitaram-lhe no prodígio de beber o mesmo tanto, e franziam o cenho um para o outro.

– Vou – gritou o barão de súbito e acrescentou, com a mão direita dando um tapa na mesa e a esquerda torcendo o bigode: – erguer um brinde à lady de Grogzwig!

Os 24 sarjas-verdes empalideceram, com exceção dos 24 narizes, estes imutáveis.

– Um brinde à lady de Grogzwig, eu disse – repetiu o barão, olhando ao redor.

– Um brinde à lady de Grogzwig! – gritaram os sarjas verdes; e 24 goelas abaixo foram 24 quartilhos de um vinho alemão tão precioso que fez 48 lábios estalarem, e seus olhos voltaram a piscar.

– A bela filha do barão Von Swillenhausen! – disse Koëldwethout e, condescendente, esclareceu: – Pediremos sua mão em casamento ao pai, antes que o sol se ponha amanhã. Se ele recusar, deceparemos o seu nariz.

Um murmúrio surdo veio de seus confrades, e todos, num gesto pleno de aterradora significação, tocaram, primeiro, o cabo de suas espadas e, depois, as pontas de seus narizes.

Que coisa linda de se ver, a devoção de nossos rebentos! Se a filha do barão Von Swillenhausen tivesse alegado ter outro em seu coração, ou se tivesse caído de joelhos diante do pai, salgando-lhe os pés com suas lágrimas, ou se tivesse apenas caído desfalecida e tivesse dirigido ao velho senhor seu pai os brados mais frenéticos, as chances seriam de uma em cem que o Castelo Swillenhausen voasse pela janela, ou antes, que o barão voasse pela janela e o castelo fosse demolido. Contudo, a donzela observou em silêncio diante do mensageiro que, ainda cedo na manhã seguinte, levou a proposta de Von Koëldwethout e, recatada que era, recolheu-se a seus aposentos, de cuja janela assistiu à chegada do seu pretendente e da comitiva que o acompanhava. Tão logo certificou-se de que o cavalheiro com farto bigode era quem viera pedir-lhe a mão em casamento, a jovem precipitou-se à presença do pai para expressar sua prontidão a sacrificar-se pela tranquilidade de seu pai. O venerável barão abraçou a filha e deixou rolar uma lágrima de alegria.

Naquele dia, o castelo foi palco de grande comemoração. Os 24 sarjas-verdes de Von Koëldwethout trocaram votos de eterna amizade com os 12 sarjas-verdes de Von Swillenhausen e prometeram ao velho barão que beberiam de seu vinho até tudo tingir-se de rosa – o que provavelmente significava que beberiam até seus rostos adquirirem o mesmo tom de seus narizes. Na hora da despedida, todos deram-se tapinhas nas costas, e o barão Von Koëldwethout cavalgou contente de volta para o seu castelo, acompanhado de seus amigos.

Por seis intermináveis semanas, os ursos e javalis tiveram uma trégua. As casas Von Koëldwethout e Von Swillenhausen estavam unidas; as lanças enferrujaram-se, e a corneta do barão enrouqueceu por falta de uso.

Aqueles foram tempos maravilhosos para os 24 sarjas-verdes. Mas, ai que lástima! Seus dias de fartura e deleites estavam contados.

– Meu querido – disse a baronesa.

– Meu amor – disse o barão.

– Esses homens barulhentos e rudes...

– Quem, minha senhora? – disse o barão, num sobressalto.

A baronesa apontou, do alto da janela onde os dois estavam, para o átrio do castelo, onde os sarjas-verdes sorviam distraídos um trago de conhaque em preparação para a caçada de um ou dois javalis.

– Minha comitiva de caçada, senhora. – disse o barão.

– Dispense-os, amor. – sussurrou a baronesa.

– Dispensá-los? – gritou o barão, perplexo.

– Para me agradar, amor. – respondeu a baronesa.

– Para agradar ao Diabo, senhora! – retrucou o barão.

Com isso, a baronesa deu um grito e caiu desfalecida aos pés do marido.

O que ele poderia fazer? Chamou a dama de companhia da baronesa e berrou pelo médico; e então, irrompendo no átrio, chutou os dois sarjas-verdes mais acostumados a levar pontapés e, amaldiçoando os outros à volta, mandou-lhes que fossem à... não interessa onde. Não sei como se diz em alemão. Se soubesse, eu diria... delicadamente, é claro.

Não cabe a mim dizer por que meios ou em quantas etapas algumas esposas logram controlar alguns maridos da maneira como o fazem, mesmo que eu tenha lá minha opinião pessoal sobre o assunto e pense que nenhum membro do nosso Parlamento deveria se casar, já que três de cada quatro de nossos políticos casados são forçados a abandonar suas convicções para votar segundo os ditames da consciência de suas esposas (se é que tal coisa existe). Por ora, tudo que preciso dizer é que a baronesa Von Koëldwethout, não importa como, obteve grande controle sobre o barão Von Koëldwethout e, pouco a pouco, de bocado em bocado, dia após dia e ano após ano, o barão passou a ser derrotado nas discussões domésticas e ardilosamente afastado de seus velhos passatempos; e quando por fim tornou-se um sujeito gordo e robusto de 48 anos ou coisa que o valha, já não dava mais suas festas e banquetes, não participava de grandes farras e não tinha uma comitiva de caçada, nem sequer caçava mais. Em resumo, não lhe sobrou nada do que ele gostava, nada do que fazia; e, apesar de continuar feroz como um leão e audaz como uma águia, passara a andar debaixo do cabresto de sua esposa, esnobado e menosprezado em seu próprio Castelo de Grogzwig.

Mas os infortúnios do barão não pararam por aí. Cerca de um ano depois de suas bodas, veio ao mundo um faminto barãozinho, em cuja honra queimaram-se muitos fogos de artifício e esvaziaram-se muitas dúzias de garrafas de vinho, mas no ano seguinte veio uma baronesinha e, no outro, mais um barãozinho, e assim por diante, a cada ano era um barão ou uma baronesa (e teve um ano em que foram dois juntos), até que o barão Von Koëldwethout viu-se pai de uma pequena família de doze filhos. A cada um desses nascimentos, a venerável baronesa Von Swillenhausen era acometida dos nervos, preocupada com o bem-estar de sua filha, a baronesa Von Koëldwethout e, muito embora a boa senhora não contribuísse em nada para a recuperação de sua filha, ainda assim ela fazia questão de ficar o mais nervosa possível no Castelo de Grogzwig, dividindo seu tempo entre fazer observações moralizadoras sobre como o barão administrava sua propriedade e lamentar os infortúnios de sua pobre filhinha, tão infeliz. E, se o barão de Grogzwig, um pouco magoado e irritado com isso, tomava coragem e arriscava-se a sugerir que sua esposa estava melhor do que as esposas de outros barões, a baronesa Von Swillenhausen pedia a todos que notassem como ela – e apenas ela – condoía-se dos sofrimentos da sua querida filha, diante do que seus parentes e amigos observavam que, de fato, a velha baronesa chorava bem mais do que o genro e que, se havia um bruto de coração empedernido neste mundo, esse era o barão de Grogzwig.

O pobre barão suportou tudo isso o tempo que pôde e, quando não aguentou mais, perdeu o apetite e o ânimo e afundou-se numa poltrona, soturno e abatido. Contudo, problemas mais graves ainda lhe estavam reservados e, à medida que se lhe apresentavam, cresciam sua melancolia e sua tristeza. Os tempos eram outros. Ele se endividara. Os cofres de Grogzwig estavam esvaziados, apesar de um dia terem sido vistos pela família Swillenhausen como inexauríveis; e, bem quando a baronesa estava a ponto de contribuir com um 13. nome para a linhagem dos Von Koëldwethout, o barão descobriu que não havia meios de voltar a encher os cofres.

– Não sei o que fazer. – disse o barão. – Acho que vou me matar.

Aquela foi uma ideia brilhante. O barão pegou uma velha faca de caça de um armário próximo e, depois de afiá-la na sola de sua bota, foi para cima do próprio pescoço, como dizem os jovens.

– Hmm! – disse o barão, interrompendo-se. – Talvez não esteja afiada o bastante.

O barão afiou a faca de novo e foi para cima outra vez, quando sua mão se paralisou por uma gritaria entre barõezinhos e baronesinhas, que tinham seu quarto de brincar numa das torres mais altas, com grades de ferro nas janelas para impedi-los de caírem no fosso.

– Se eu fosse solteiro, – disse o barão, num suspiro – podia ter dado cabo da minha vida umas cinquenta vezes sem ser interrompido. Ei! Ponham uma garrafa de vinho e o maior dos meus cachimbos na sala pequena, atrás do vestíbulo, aquela com abóbada no teto.

Um dos criados, passada meia hora ou tanto, muito gentilmente executou a ordem do barão. Uma vez informado de que sua ordem fora cumprida, o barão Von Koëldwethout dirigiu-se a passos largos para a dita saleta, de paredes revestidas com um escuro e lustroso lambri que brilhava à luz das achas de lenha que ardiam empilhadas na lareira. A garrafa e o cachimbo estavam prontos, e, no geral, o cômodo parecia bastante confortável.

– Deixe a lâmpada! – disse o barão.

– Deseja algo mais, senhor? – perguntou o criado.

– A sala para mim. – respondeu o barão.

O criado obedeceu, e o barão trancou a porta.

– Vou fumar um último cachimbo, – disse – e então me despeço deste mundo.

Com isso, descansou a faca sobre a mesa até o instante em que fosse precisar dela e, engolindo de uma só vez uma generosa dose de vinho, o senhor de Grogzwig afundou-se na sua poltrona, esticou as pernas em frente à lareira e fumou o seu cachimbo.

Seus pensamentos ocuparam-se de muitas coisas: as dificuldades do presente, os idos tempos de solteiro, os sarjas-verdes há muito dispensados, espalhados pelo país, ninguém sabia onde, com exceção de dois que infelizmente foram decapitados e quatro que se mataram de tanto beber. O pensamento do barão vagava por ursos e javalis quando, no processo de esvaziar o copo, ergueu os olhos e viu, pela primeira vez, e com ilimitada surpresa, que não estava só.

Não, ele não estava só; pois, do outro lado da lareira, sentada de braços cruzados, estava uma criatura hedionda e encarquilhada, olhos injetados e muito encovados, rosto cadavérico meio encoberto por mechas de um cabelo preto, grosso, emaranhado e cheio de pontas irregulares. Usava uma espécie de túnica num tom de azul desbotado que, como notou o barão ao observá-lo em detalhe, tinha na frente, de alto a baixo, fazendo as vezes de botões ou atavios, alças de ataúdes. As pernas da criatura também estavam encerradas em placas metálicas de ataúdes, o que lembrava uma armadura e, sobre o ombro esquerdo, ele usava uma capa curta, escura, que parecia ter sido feita com uma sobra de pano de mortalha. Ele nem olhou para o barão, mas tinha o olhar fixo na lareira.

– Olá! – disse o barão, batendo o pé no chão para atrair-lhe a atenção.

– Olá! – retrucou o estranho, virando os olhos para o barão sem virar o rosto ou o corpo. – E então?

– E então! – respondeu o barão, nem um pouco intimidado por aquela voz cavernosa e pelos olhos opacos. – Eu é que pergunto. Como foi que você entrou aqui?

– Pela porta. – respondeu a criatura.

– O que é você? – perguntou o barão.

– Um homem. – respondeu a criatura.

– Não acredito! – diz o barão.

– Então não acredite. – diz a criatura.

– Pois não acredito mesmo! – reiterou o barão.

A criatura fitou o corajoso barão de Grogzwig por um instante e então disse, num tom bem à vontade:

– Estou vendo que não tem como enganá-lo. Não sou um homem.

– Então o que você é? – perguntou o barão.

– Um espírito. – respondeu a criatura.

– Você não se parece muito com um espírito. – retorquiu o barão com escárnio.

– Eu sou o Espírito do Desespero e do Suicídio. – disse a aparição. – Agora você já sabe quem eu sou.

Com essas palavras, a aparição voltou-se para o barão, como se ele estivesse se compondo para uma conversa – e o mais notável de tudo foi que ele jogou para um lado a capa e, revelando uma lança que lhe atravessava o centro do corpo, arrancou-a de um puxão e depositou-a sobre a mesa com toda a tranquilidade, como se aquilo fosse uma bengala.

– E agora, – disse a criatura, olhando para a faca de caça – você está pronto para mim?

– Ainda não! – respondeu o barão. – Primeiro eu preciso terminar de fumar o meu cachimbo.

– Apresse-se, então. – disse a criatura.

– Você parece impaciente. – disse o barão.

– Sim, estou com pressa. – respondeu a criatura. – Os negócios vão muito bem para mim na Inglaterra e na França no momento, e ando muito ocupado.

– Você bebe? – perguntou o barão, batendo na garrafa com o fornilho do cachimbo.

– Em nove de cada dez vezes e, quando bebo, bebo bastante. – respondeu a criatura, ríspida.

– Nunca com moderação?

– Nunca. – disse a criatura, com um tremor. – Beber faz a alegria.

O barão deu mais uma olhada em seu novo amigo, achando-o um vizinho extraordinariamente esquisito e, por fim, perguntou-lhe se tomava parte ativamente naqueles pequenos procedimentos como o que ele mesmo tinha em mente.

– Não. – respondeu a criatura de modo evasivo. – Mas me faço sempre presente.

– Só para garantir que tudo corra bem, suponho eu. – disse o barão.

– Exatamente! – retrucou a criatura, brincando com a sua lança, examinando-lhe a virola. – Seja o mais rápido possível, por favor, pois há um jovem cavalheiro que tem dinheiro e diversão em excesso e isso o aflige, e ele precisa de mim, pelo que me consta.

– Vai se matar porque tem dinheiro demais! – exclamou o barão, bastante incomodado. – Rá, rá, rá, essa é boa! (Aquela era a primeira vez que o barão ria em muito, muito tempo.)

– Eu lhe peço, – disse a criatura, parecendo estar muito assustada – não faça mais isso.

– Por quê? – quis saber o barão.

– Porque me faz doer todinho. – respondeu a criatura. – Suspire o quanto quiser; isso me faz bem.

O barão suspirou à menção da palavra, a criatura, reanimando-se, alcançou-lhe a faca de caça com a mais cativante cortesia.

– Não é má ideia, – disse o barão, sentindo o fio da arma – um homem se matar porque tem dinheiro demais.

– Pfui! – disse a aparição de modo petulante. – Não é nem melhor nem pior do que um homem se matar porque tem dinheiro faltando.

Se o espírito sem querer comprometeu-se ao dizer isso, ou se ele pensou que o barão estava tão decidido que não importava o que ele dissesse, isso eu não tenho como saber. Só sei que o barão deteve sua mão de repente, arregalou os olhos, e parecia que uma nova luz fazia-se sobre ele pela primeira vez.

– Ora, – disse Von Koëldwethout – com certeza nada é tão ruim que não possa ser remediado.

– Exceto cofres vazios! – gritou o espírito.

– Bem... mas um dia podem estar cheios de novo. – disse o barão.

– Esposas ranzinzas. – rosnou o espírito.

– Ah, pode-se fazê-las calarem-se. – disse o barão.

– Treze filhos! – berrou o espírito.

– Impossível serem todos uns imprestáveis. – disse o barão.

Era evidente que o espírito estava ficando cada vez mais furioso com o barão por argumentar tudo assim de uma só vez, mas ele tentou rir da situação e disse ao barão que ficaria grato se o avisasse quando tivesse terminado de fazer piadas.

– Mas eu não estou fazendo piadas, nunca falei tão sério! – protestou o barão.

– Bem, fico feliz de ouvir isso, – disse o espírito, muito sinistro – porque as piadas me matam, e isso não é piada. Vamos lá! Despeça-se de uma vez deste mundo cruel.

– Não sei. – disse o barão, brincando com a faca. – É um mundo cruel, com certeza, mas acho que o seu não é muito melhor, pois você não tem uma aparência de quem esteja lá muito à vontade. Isso me faz pensar... que garantias tenho eu, afinal, de que vou ficar melhor deixando este mundo? – gritou ele e, num sobressalto: – Eu não tinha pensado nisso.

– Mate-se! – gritou a criatura, rilhando os dentes.

– Afaste-se! – disse o barão. – Não vou mais me lamentar, vou encarar com otimismo os meus pesares, vou experimentar o ar puro e os ursos de novo e, se isso não der certo, vou ter uma conversa séria com a baronesa e vou passar a ignorar os Von Swillenhausen.

Com isso, o barão deixou-se cair em sua poltrona e riu uma risada tão alta e tão violenta que a sala reverberou.

A criatura recuou um passo ou dois, ao mesmo tempo fitando o barão com intenso terror, e quando este parou de rir, pegou sua lança, cravou-a com violência no corpo, soltou um uivo horripilante e desapareceu.

Von Koëldwethout nunca mais o viu. Decidido a reagir, tratou de chamar à razão a baronesa e os Von Swillenhausen. Morreu muitos anos depois não um homem rico, que eu saiba, mas com certeza um homem feliz, deixando uma família numerosa, por ele mesmo treinada com rigor e dedicação na caça aos ursos e aos javalis. O conselho que dou a todos os homens é que, se um dia ficarem deprimidos e sorumbáticos por motivos semelhantes (como ocorre a muitos), que examinem os dois lados da questão, usando uma lupa no melhor lado; se, ainda assim, sentirem-se tentados a retirar-se sem licença, que antes fumem um cachimbo bem grande, bebam uma garrafa inteira e mirem-se no louvável exemplo do barão de Grogzwig.
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* Nimrod, traduzido para o português como Ninrode ou Nemrod: “Foi valente caçador diante do Senhor; daí dizer-se: ‘Como Ninrode, poderoso caçador diante do Senhor’” (Gênesis: 10.9); Bíblia Completa.
** Gillingwater, perfumista e cabeleireiro da Bishopsgate Street de Londres, notório por manter ursos presos no porão de sua loja e por exibir placas dizendo: “Abatemos outro urso jovem hoje”. Na época de Dickens, era moda os homens passarem gordura de urso no cabelo.
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Charles Dickens (Potsmouth/Inglaterra, 1812 – 1870, Higham/Inglaterra) foi um romancista, jornalista e crítico social inglês, conhecido pelas suas obras literárias como Oliver Twist e Um Conto de Natal. Nascido em Portsmouth, enfrentou a pobreza na infância e trabalhou em condições precárias, o que influenciou a sua escrita, que retratava a vida das classes baixas da era vitoriana, utilizando humor, ironia e suspense. As suas obras foram publicadas originalmente em folhetins mensais, tornando-o o romancista mais popular da sua época. Morreu em 1870 e está sepultado na Abadia de Westminster. 
Após a prisão do pai por dívidas, Dickens teve de abandonar os estudos e trabalhar numa fábrica, experiência que o marcou e que se refletiria em romances como David Copperfield.  Começou como jornalista, ganhando notoriedade com o romance As Aventuras do Sr. Pickwick (1836). Entre os seus romances mais célebres encontram-se Oliver Twist, David Copperfield, Um Conto de Natal, Tempos Difíceis e Grandes Esperanças. Dickens é reconhecido por denunciar as condições de vida dos pobres, da classe trabalhadora e das crianças na sociedade industrial. Misturava o humor com o trágico e o suspense, tornando-se um mestre na criação de personagens vívidas e inesquecíveis. Além da escrita, organizou campanhas de caridade e fez discursos públicos em defesa dos mais pobres e das crianças. É considerado um dos maiores e mais influentes romancistas do século XIX, tendo deixado uma vasta obra literária que ainda é lida e adaptada para o teatro e cinema.

Fontes:
Charles Dickens. Histórias de fantasmas. Publicado originalmente em 1866. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

sábado, 6 de setembro de 2025

Asas da Poesia * 86 *


Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

A existência é dividida
em dois extremos da idade:
um, alvorada da vida,
outro, arrebol de saudade!
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Hino de 
BENTO GONÇALVES/RS

Bento Gonçalves querida,
Bordada de parreirais,
Terra estuante de vida
Origem de nossos pais.

Bento Gonçalves querida,
Bordada de parreirais,
Onde o vinho borbulhante
Jorra jorra em cascatas reais.

Salve esta terra fecunda,
Que a mão divina criou
E com trabalho e fé profunda
O imigrante desbravou.

Bento Gonçalves querida,
Meu desejo é teu progresso
É ver-te de fronte erguida, Altiva,
No tribunal do universo!

Nome de grande vulto,
Que o Rio Grande soube honrar,
Meu rincão é meu culto
Do Brasil é meu altar.

Uvas de várias castas,
Enriquecem a região,
Com teu doce vinho afastas
As mágoas do coração.

A ti meu melhor carinho,
Linda Capital do Vinho.
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Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Chega bêbado… sequer
distingue um rosto e malogra:
dá alguns tapas na mulher
e muitos beijos na sogra!
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Poema de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

Ars poética

Nesse afago do meu fado afogado
as águas já me sabem nadador.
A rês na travessia marejada
gado da grei de um mar revelador.

Vou e volto lambendo o sal do fardo
língua no labirinto, ardendo em cor
furtiva, enquanto messe temperada,
da tribo das palavras sou cantor.

Procuro em frio exílio tipográfico
o verbo mais sonoro em melodia
o ritmo para a cal de um pasto cáustico.

Sou boi e sou vaqueiro dia a dia
no laço entrelaçado fiz-me prático
catador de capins nas pradarias.
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Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Se tu buscas na partida
além do horizonte, a paz,
não fujas da própria vida,
que a vida sabe o que faz!
= = = = = =

Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba / PR

A beirada do céu 
sobre a serra desceu
derramando estrelas
pelo caminho,
Que ao balançar do vento
cintilam de mansinho:
brancas, rosas e lilás.
A alma respira energizada! 
Dos anjos,
mensagens perfumadas
encharcam o coração 
de amor e muita paz.
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Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Em bando sutil, as garças,
pontilhando o lamaçal,
são quais pérolas esparsas,
adornando o pantanal.
= = = = = = 

Poema de
ELINALDO VENCESLAU DA COSTA JUNIOR
Manaus/AM

Gelo em chamas

Por que meus olhos marejam
A cada vez que penso em ti?
E o mundo, preto em branco
Vai colhendo, num tom brando
As belas flores do jardim

Tens ideia do quanto isso é bom pra mim?

Me perguntas, ocasionalmente:
Mas o que foi que eu te fiz?
E eu não sei, verdadeiramente...
Só sei que tu me fazes feliz!

Por que teus beijos me marcam como cicatriz?

Em mente grito sem parar
E no teu carro, eu me calo
Pois só quero aproveitar
Ao teu lado, cada embalo

Seria isso ilusão ou início de paixão latente?

Quisera eu, sinceramente
Em grandes versos, te adorar
Só que me vêm estes singelos
Mas acredite, são tão sinceros
Quanto o ar que foge de mim...
Ao te olhar.
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Desce a lágrima insistente,
e há sempre alguém que a maldiz!
Mas a verdade é que a gente
chora até quando é feliz!...
= = = = = = 

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

O trem

À beira da estrada férrea
Ficava nossa escolinha.
Bem alegre a garotada
Corria pra lá e vinha.

Com todo aquele barulho
eu acabava ansiosa.
Ficava sempre à espera
E às vezes até manhosa.

Barulho ensurdecedor
Com ranger de ferro e apito
 faísca  no corredor.

Da janela da salinha
Podia se ouvir o grito
Do doido que nele vinha.
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova de
RITA MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Amanhece, o dia é lindo,
e o passaredo contente
faz festa ao sol, que sorrindo.
lá do céu contempla gente.
= = = = = = = = =  

Uma Lengalenga de Portugal
ECO
  
É suposto que cada frase desta lengalenga seja repetida por outra pessoa depois de uma a dizer.
 
 - Ó que eco que aqui há!
 - Que eco é?
- É o eco que cá há.
- O quê? Há cá eco?
- Há eco, há.
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Estudante, deixe os livros, 
e volte-se para mim; 
mais vale um dia de amores 
que dez  anos de latim.
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Avós

Dizem que avós são pais açucarados...
E deve ser verdade, com certeza!
Quantos netinhos são apaixonados
pelo doce dos velhos. Que beleza!

Isso não só em parentes mais chegados
eu vejo, em geral, e com clareza,
netos beijando avós, muito abraçados,
com amor, tal qual manda a natureza!

Infelizmente eu não senti de perto
o gosto de viver com avós. E é certo
que, isso, me marcou a vida inteira...

Meus quatro avós morreram antes mesmo
de eu ter nascido!  E não por morte a esmo;
mas na “febre amarela”  brasileira!
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Trova do
PADRE NEWTON PIMENTA
Juiz de Fora/MG

Sol das almas: tarde linda;
trás os montes, o sol desce...
mais um dia que se finda
na ternura de uma prece!
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Saber da água a sede 
Saber do pensamento a fonte
Saber do amor a dor
Saber da beleza a forma
Saber do sentir a razão 
Saber de ti a emoção 
Saber do abraço o alento
Saber da vida o propósito.
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Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

“Cara-metade”, em verdade,
é uma expressão... trapaceira...
- a gente quer a metade
mas tem que “engolir”... inteira…
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Soneto de
FRANCISCO NEVES MACEDO
Natal/RN, 1948 – 2012

Desistir, Jamais!

Escalava a montanha novamente…
E, alpinista de amor enlouquecido,
chegaria a um lugar desconhecido,
jamais imaginado pela mente.

Eu sentia o infinito a um batente,
e, jamais eu teria desistido!
Mas, por forças humanas, impedido…
- E a chegada tão perto, um pouco à frente.

Um grande sonhador, não fica triste,
de alcançar o ideal, jamais desiste,
quer sempre ir mais à frente, e, se cansado…

Ele tenta vencer o seu limite,
buscando o inalcançável, ele admite,
que se jamais chegar… Terá tentado!
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Trova do
PADRE HENRIQUE PERBECHE
Ponta Grossa/PR (1918 – 2011)

Trovas? Umas são quais flores
a bailar pelas campinas;
Outras, rubis multicores,
forjadas no ardor das minas.
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Poema de 
MINERVA MARGARITA VILLARREAL
Montemorelos/México, 1957 – 2019, Monterrey/México

Não Tenho Com Quem Falar

O silêncio pesa, estala
O silêncio pensa
Então falarei contigo
Tu   que és o ser mais remoto
meu doce vazio
vem   apresenta-te
mesmo que não te veja
assim a forma seja negada para ti
para meus olhos de ti
minha percepção te anuncia
como um rio
que cresce de madrugada
e se desborda
A água escorre por debaixo da cama
a água leva rostos
e correntes
lírios e cédulas
e vestidos de noiva
depois tudo é sangue
Um rio com seu ninho de lobos
e nuvens de tormenta
ramos crepitando
cervos
e esta árvore
esta árvore que também és tu
muito além da noite
Há um vulto de pé
junto de minha cama
que emerge
das águas do ar.
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Trova do
CÔNEGO BENEDITO VIEIRA TELLES
Bueno Brandão/MG, 1928 – 2022, Maringá/PR

Santo Antônio, agradecida,
por ouvir minha oração.
Casei-me na Aparecida,
sou feliz com Sebastião!
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Soneto de
GERSON CÉSAR SOUZA
São Leopoldo/RS

Extremos

Somos assim, estranhamente extremos,
gostos opostos, sonhos discrepantes,
somos canção de acordes dissonantes,
há divergência em tudo o que queremos…

Só defendemos pontos concordantes
até entender que não nos entendemos,
e esclarecendo aquilo que dissemos,
dizemos sempre coisas conflitantes…

Tu, me querendo, dizes que eu não presto,
e ao te querer, sempre de ti reclamo,
mas tu me chamas, disfarçando o gesto,

e entre protestos eu também te chamo,
pois, mesmo amando tudo o que eu detesto,
tu és na vida aquilo que eu mais amo!
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Trova de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Já velho o Sansão estrila:
"Minha mulher tá caduca...
Mal cochilei e a Dalila
tosou a minha peruca!?
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Renato Benvindo Frata (Incógnita)

Do lado direito da porteira de quem adentrava a propriedade rural, uma cruz se mostrava esquecida. Não era dessas altas a exaltar a fé, comuns nesses lugares, mas cruz de tamanho reduzido a se apegar em terna lembrança. Era entalhada, o que lhe marcava a visibilidade ao se diferenciar de outras que se encontram pelo caminho, com a mesma finalidade.

Numa das pontas do braço horizontal, chanfrara-se uma espiga de milho. Na outra, um ramo de café frutificado. Na parte superior do braço vertical, uma cara de boi encimava a palavra ADEUS, que tomava o resto do corpo. O significado dos entalhes aludia à produção da agricultura e pecuária, e a palavra Adeus, à despedida. A madeira, quiçá sob o longo tempo de exposição ao calor do sol, à umidade da chuva, à força do vento e à poeira, mostrava desgastes, mas se mantinha firme e pomposa ao dar àquele acesso, maturidade e respeito.

Simples, se não houvesse complemento.

Ao seu redor e rente à cerca, porém, chamava atenção um pequeno canteiro tomado por ervas invasoras, mas composto por uma boa quantidade de pés de miosótis floridas com flores azuis e miolos amarelos pontuando aqui e ali, como prova de que mãos femininas a um tempo – não se imagina quanto -, haviam fofado a terra e colocado nela além de muito esterco, também carinho e ternura.

Por que o digo?

Porque a flor miosótis é conhecida como “não-me-esqueças” – que significa um amor verdadeiro -, e somente bem brotam, bem vingam e bem vivem quando plantadas e cultivadas por mãos de mulher. Se um homem o fizer, ela pode até brotar por força do adubo, mas logo perecerá. Por isso a certeza de terem aquelas sido plantadas por dedos finos e carinhosos.

Mas ficou a incógnita: quem o teria feito? Quando? Em memória a quem a cruz ali foi fincada em meio a flores? A tal flor simboliza amor, fidelidade e recordação que, para quem verdadeiramente ama, ganha conotação tão íntima e especial que passa também a amar a flor.

Diz-se que, quando assim plantada e quando cultivada com dedicação e zelo – ela se pereniza a superar com sua força e resistência das raízes, os desafios que um canteiro abandonado aos pés de moirões, numa entrada de fazenda, nos mostrava.

Essa flor é tão miúda, mimosa e delicada, mas carrega um significado único e especial: - onde estiver, não importa com quem, “não-se-esqueças-de-mim” é o recado que dizem suas pequenas pétalas azuis, parecidas com orelhas de rato.

Agora, o ADEUS gravado em letras maiúsculas, como aquele da tábua maior da cruz, sim, representou eterna ausência a lembrar que a vida é feita de movimentos, de fins e recomeços e que as despedidas, como parte desses, embora pesarosas e doloridas, marcam como um entalhe para não mais sair da memória. E ficam.

Mesmo que em forma de flores, num canteiro à beira da cerca. 
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Arthur Thomaz (Não foi o mordomo)

O caso a seguir transcorreu em uma mansão no Jardim Europa, na cidade de São Paulo. A octogenária Dona Henriqueta, matriarca da família, lúcida e atenta, conhecia todas as particularidades dos familiares que ali moravam, e nunca se deixava enganar. Controlava com mão de ferro tudo na casa, contando sempre com a inestimável ajuda de Bronson, o mordomo, algo que desagradava muito os parentes, ávidos por herdarem logo a fortuna amealhada em dezenas de anos de trabalho na enorme e famosa empresa de laticínios.

Rosa e Juvenal, os netos mais novos, simulavam estudar para manter as aparências, mas sempre que podiam, gastavam a polpuda mesada em baladas e viagens ao exterior, fingindo que eram para cursos de especialização.

Eram filhos de Altair, o primogênito, um inútil a quem deram um cargo de diretor, no qual nada realizava e não tinha sequer direito a voto decisivo no conselho da empresa.

Lúcia, a outra filha, era considerada a mais frívola de todos, assumindo o papel de “socialite”, uma frequentadora assídua da noite paulistana.

Divorciada de um decadente artista de televisão, com quem tivera um filho que herdara do pai a mesma falta de caráter.

Henriqueta contava para as poucas amigas sobre o tempo em que recém-casados, ela e Aristides vinham do sítio todas as madrugadas, em uma carroça, para vender leite nas casas da cidade.

Em uma dessas vindas, depararam-se com uma criança chorando em uma calçada, com frio, fome e aterrorizada pelo horror do abandono. Acolheram-na, procuraram em vão seus familiares e a levaram para casa. Deram-lhe o nome de Bronson por causa de um famoso ator de filmes de Hollywood.

Com a perseverança no trabalho, juntaram algum dinheiro, compraram o pequeno sítio e iniciaram a produção de manteiga e queijos, criando assim, o laticínio que lhes trouxe fortuna.

Adquiriram um enorme casarão de uma tradicional e falida família paulistana. Bronson não quis estudar, preferiu dedicar-se aos cuidados da casa, pela eterna gratidão que sentia pelo casal. Transformando-se em um imprescindível mordomo, parte integrante do ambiente familiar.

Nas horas em que estavam sozinhos, Aristides confidenciava à Henriqueta que deveriam ter somente Bronson como filho, desiludido que estava com os dois outros, os naturais.

Fizeram fortuna com o trabalho, mas quando ele morreu, ela transformou a empresa em Sociedade Anônima, e passou a viver de rendimentos, mantendo o traste do filho com o cargo fictício na diretoria.

Certa tarde, Henriqueta pediu a Bronson que a levasse secretamente a um médico. Lá, foi constatada a irreversibilidade de uma gravíssima doença. Voltaram para casa cabisbaixos e calados, com ele ternamente acolhendo-a em seus braços.

Após um tempo, Henriqueta, em uma madrugada, chamou Bronson ao seu quarto. Com um olhar desesperado de tanta dor, nem precisou falar o que os dois já tacitamente haviam entendido que deveria acontecer, ou seja, abreviar o atroz e desnecessário sofrimento.

Na manhã seguinte, a polícia científica atestou a morte por uma queda acidental, com consequente fratura cervical, pelo trauma e pela adiantada osteoporose, característica da idade.

Os familiares correram aos advogados preocupados apenas com o inventário e já brigando entre si. Nesta noite, Bronson foi até o fundo da mansão e chorou desesperadamente por muitos dias.

Esquálido, mas com uma serenidade que não sabia possuir, juntou seus pertences e nunca mais se ouviu falar em seu nome.

PS: Para elaborar este conto e obter um respaldo científico, o autor contou com a inestimável colaboração do Doutor Francisco Américo Fernandes Neto (cirurgião geral e oncológico, perito criminal e médico legista).
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Arthur Thomaz é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, publicou os livros: “Rimando Ilusões”, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”.

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Meia tigela”

O premiado romancista e acadêmico Ademar Amaral, comentando em rede social mais uma sandice do títere venezuelano em fim de carreira, que da toca onde está homiziado propôs ao Brasil o envio de uma brigada de mil homens e mulheres do meio rural, sabidamente carentes de qualquer treinamento militar, visando com esse imaginário reforço de infantaria mambembe se defender de eventual confronto com as forças navais americanas, foi cáustico e direto: 
- “Pobre de nós se entrarmos na lorota desse ditador de meia tigela”. 

Ao assim se manifestar, esse grande escritor paraense colocou na expressão “MEIA TIGELA”, toda a repulsa que a bravata lhe causou, enfatizando ainda mais o sentido degradante que ela tem, geralmente dirigida a alguém despido de competência, lucidez, conhecimento ou habilidade naquilo que faz. Muito usada nos dias de hoje, essa designação aviltante surgiu em Portugal na Idade Média. E durante todo o período feudal ganhou força de gíria, de lá chegando ao Brasil com a mesma conotação depreciativa com que foi concebida.

No feudalismo, o bem mais precioso dos suseranos era a terra, que lhes assegurava produção farta e prosperidade, passaporte para o enriquecimento gerado pelo controle do comércio, donde vinha a influência, o mando político, os privilégios e o poder sem contestações em determinada região. Para impulsionar a produção em seus domínios territoriais, possuía a nobreza uma legião de servos incumbidos da atividade agrícola, exaustivo trabalho pago com alimentos, sempre servidos em rústicas e primitivas tigelas.

Havia absoluta necessidade dessa mão de obra gratuita e os servos que se destacavam pela maior produtividade, recebiam suas refeições em tigelas transbordantes de comida, ao contrário daqueles que não cumpriam as metas ditadas pelo patronato, no plantio ou na colheita, punidos com o recebimento de apenas metade da porção dos primeiros, minguada meia tigela de comida e designados pejorativamente como “trabalhadores de meia tigela”. 

Como na Europa, os negros que à força labutavam nas minas de ouro do Brasil Império, na sombria época da escravidão, nem sempre conseguiam alcançar as “metas” que lhes eram impiedosamente impostas. Quando isso acontecia, o que não era raro pela exaustão física e a subnutrição, como reprimenda recebiam apenas metade da tigela de comida e o injurioso epíteto de “meia tigela”, para que todos vissem o infeliz como uma pessoa despida de valor.

Chamar um profissional "meia tigela", longe de ser inconsequente brincadeira, tem sentido deveras ofensivo, porquanto alude a alguém com reputação de medíocre, desqualificado, sem versatilidade no que faz ou se propõe a fazer. E a expressão alcança com a mesma e deletéria intensidade o trabalhador intelectual, técnico ou manual, de vez que o alvo é sempre a pessoa e não o trabalho por ela realizado.

Engenheiros cometem erros graves nos cálculos de uma edificação, onde a falha no dimensionamento da estrutura, resulta na queda do prédio. Médicos se equivocam em cirurgias, como no caso de São Paulo em 2022, onde um cirurgião plástico foi denunciado por 20 pacientes cujos corpos restaram deformados após os procedimentos realizados, desaguando numa enxurrada de denúncias ao CRM/SP e em ações indenizatórias na justiça. Advogados sem preparo e juízes mal preparados desconhecem, vulgarizam ou afrontam o direito das partes. Odontólogos desatentos removem dentes saudáveis de seus aflitos clientes. Professores se perdem em proselitismo político e nada ensinam. Jornalistas deturpam notícias para atender interesses insondáveis, enfim, esta ligeira amostragem inclui o inconsequente comandante italiano que abandonou o “Costa Concórdia”, logo depois que o navio de cruzeiro se chocou com um rochedo e afundou matando 32 pessoas, em janeiro de 2012, todos se igualam como profissionais de “meia tigela”, sem competência em seu ofício, de conceito claudicante, por fazerem tudo muito mal feito. Chamado à atenção pela pintura desastrosa feita num apartamento de luxo, o mela-mão “meia tigela” ainda se saiu com esta:

- É patrão, eu ainda sei fazer pior...

Alguns relatos sugerem que a expressão também era usada antigamente para designar pessoas de baixa posição social, os que não tinham o privilégio de quebrar a tigela em certos rituais familiares, como era comum entre a nobreza da Idade Média. Em qualquer hipótese, a expressão sempre será considerada depreciativa, por isso deve ser evitada em tratamentos mais formais ou em conversas com pessoas sensíveis a alusões discriminatórias. 

Na literatura, o cearense Alves de Aquino, editor da revista Mutirão, que incentiva meritoriamente os novos autores do Ceará, se autointitula o “Poeta de Meia-Tigela”, embora não o seja, pois já publicou obras como  o “Memorial Bárbara de Alencar & outros poemas” (ano 2008) e lançou o livro “Concerto N. 1 Nico em Mim Maior para Palavra e Orquestra - Realidade de Combinações Puramente Imaginárias” (em 2010), nome respeitado das letras cearenses, que se empenha em romper com o lugar-comum em sua poética. 

Na musica popular brasileira, a dupla “Cacique e Pajé” lançou “PESCADOR MEIA TIGELA”, tirando sarro com a classe dos que buscam nas águas, por diletantismo ou profissão, o prazer da pesca ou o sustento da família:

“Pescador MEIA TIGELA gosta muito de pescar
Leva caixa de cerveja mantimentos no picuá
Leva barraca de luxo, leva até a sacaria
Pra trazer peixe pra casa ele sonha com esse dia.

Cadê o peixe pescador MEIA TIGELA?
Pra você não passar fome come pão com mortadela...”

Sequer escapou do injurioso conceito o escrete canarinho. Sob o título de “Seleção Meia Tigela”, o jornalista Leal Júnior, colunista do Portal LJ de Miracema do Tocantins (TO), na edição de 12/10/2024 questionou o pífio futebol da seleção brasileira, que nem de longe lembra a fase gloriosa de craques dignos desse nome que conquistaram cinco títulos mundiais, afirmando sem rodeiros: 

“Ao que parece, não tem jeito; nem mesmo diante do fraquíssimo time chileno (a seleção) conseguiu jogar bem; venceu praticando um futebol decepcionante. Vejo que os brasileiros abandonaram de vez o escrete canarinho, pois, poucas pessoas se arriscam até tarde da noite esperando a bola rolar, e mesmo assim passam o jogo cochilando ou só acordam no outro dia. Infelizmente hoje a realidade é essa! (...). Vamos ficando mesmo com nosso futebolzinho feijão com arroz das séries A e B do brasileirão. Pelo menos vai entretendo! É o que eu penso!!!”

Se bem analisado, dizemos agora nós, é o que a maioria pensa também...
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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