quarta-feira, 2 de abril de 2008

Artur Azevedo (O Velho Lima)

O velho Lima, que era empregado - empregado antigo - numa das nossas repartições públicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de 1889, isto é, na véspera da proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil.

O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis médico: bastaram-lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias.

O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se transformara em República.

No dia 23, restabelecido e pronto para outra, comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras:

- Bom dia, cidadão.

O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a responder:

- Bom dia, comendador.

- Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores!

- Ora essa! Então por quê?

- A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se!

O velho Lima encarou o comendador e calou-se, receoso de não ter compreendido a pilhéria.

Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro:

- Como vai você com o Aristides?

- Que Aristides?

- O Silveira Lobo.

- Eu! Onde?... Como?...

- Que diabo! Pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado de uma repartição do
Ministério do Interior?...

Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de que o comendador houvesse enlouquecido.

- Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? - perguntou Vidal, passados alguns momentos. - Sonetos, naturalmente, que é do que mais se ocupa aquele tipo!

"Ora vejam", refletiu o velho Lima, "ora vejam o que é perder a razão: este homem quando estava no seu juízo era tão monarquista, tão amigo do imperador!"

Entretanto, o velho Lima indignou-se, vendo que o subdelegado de sua freguesia, sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do comendador.

- Uma autoridade policial! - murmurou o velho Lima.

E o comendador acrescentou:

- Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve lá chegar no princípio do mês.

O velho Lima comovia-se:

- Não diz coisa com coisa, coitado!

- E a bandeira? Que me diz você da bandeira?

- Ah, sim... a bandeira... sim... - repetiu o velho Lima para o não contrariar.

- Como a prefere: com ou sem lema?

- Sem lema - respondeu o bom homem num tom de profundo pesar: - sem lema.

- Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro.

Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho Lima voltou-se para o subdelegado e disse-lhe:

- Parece que vamos ficar aqui! Está cada vez pior o serviço de Pedro II!

- Qual Pedro II! - bradou o comendador. - Isto já não é de Pedro II! Ele que se contente com os cinco mil contos!

- E vá para a casa do diabo! - acrescentou o subdelegado.

O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se.

Chegado à praça da Aclamação, entrou num bonde e foi até à sua Secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara.

Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado a arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do parque da Aclamação.

Ao entrar na Secretaria, um servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer-lhe:

- Cidadão!

"Deram hoje para me chamar cidadão!" - pensou o velho Lima.

Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data.

- Oh! Você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado!

O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente.

'Querem ver que já é alguém!" refletiu o velho Lima.

- Amanhã parto para a Paraíba - disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe as pontas dos dedos.

- Como sabe, vou exercer o cargo de chefe de polícia. Lá estou a seu dispor.

E desceu.

- Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo!...

Ao entrar na sua seção, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros.

- Muito bem! - disse consigo. - Foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa.

Sentou-se e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando D. Pedro de Alcântara. Como na ocasião passasse um continuo, perguntou-lhe:

- Por que tiraram da parede o retrato de Sua Majestade?

O contínuo respondeu num tom lentamente desdenhoso:

- Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana?

- Pedro Banana! - repetiu raivoso o velho Lima.

E, sentando-se, pensou com tristeza:

- Não dou três anos para que isso seja República!

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Biografia de Artur de Azevedo pode ser encontrada na postagem de 05/01/08
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Fonte:
AZEVEDO, Artur. Contos. São Paulo: Editora Escala. Coleção Grandes Obras - nr. 17

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