O velho Lima, que era empregado - empregado antigo - numa das nossas repartições públicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de 1889, isto é, na véspera da proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil.
O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis médico: bastaram-lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias.
O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se transformara em República.
No dia 23, restabelecido e pronto para outra, comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras:
- Bom dia, cidadão.
O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a responder:
- Bom dia, comendador.
- Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores!
- Ora essa! Então por quê?
- A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se!
O velho Lima encarou o comendador e calou-se, receoso de não ter compreendido a pilhéria.
Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro:
- Como vai você com o Aristides?
- Que Aristides?
- O Silveira Lobo.
- Eu! Onde?... Como?...
- Que diabo! Pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado de uma repartição do
Ministério do Interior?...
Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de que o comendador houvesse enlouquecido.
- Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? - perguntou Vidal, passados alguns momentos. - Sonetos, naturalmente, que é do que mais se ocupa aquele tipo!
"Ora vejam", refletiu o velho Lima, "ora vejam o que é perder a razão: este homem quando estava no seu juízo era tão monarquista, tão amigo do imperador!"
Entretanto, o velho Lima indignou-se, vendo que o subdelegado de sua freguesia, sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do comendador.
- Uma autoridade policial! - murmurou o velho Lima.
E o comendador acrescentou:
- Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve lá chegar no princípio do mês.
O velho Lima comovia-se:
- Não diz coisa com coisa, coitado!
- E a bandeira? Que me diz você da bandeira?
- Ah, sim... a bandeira... sim... - repetiu o velho Lima para o não contrariar.
- Como a prefere: com ou sem lema?
- Sem lema - respondeu o bom homem num tom de profundo pesar: - sem lema.
- Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro.
Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho Lima voltou-se para o subdelegado e disse-lhe:
- Parece que vamos ficar aqui! Está cada vez pior o serviço de Pedro II!
- Qual Pedro II! - bradou o comendador. - Isto já não é de Pedro II! Ele que se contente com os cinco mil contos!
- E vá para a casa do diabo! - acrescentou o subdelegado.
O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se.
Chegado à praça da Aclamação, entrou num bonde e foi até à sua Secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara.
Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado a arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do parque da Aclamação.
Ao entrar na Secretaria, um servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer-lhe:
- Cidadão!
"Deram hoje para me chamar cidadão!" - pensou o velho Lima.
Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data.
- Oh! Você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado!
O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente.
'Querem ver que já é alguém!" refletiu o velho Lima.
- Amanhã parto para a Paraíba - disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe as pontas dos dedos.
- Como sabe, vou exercer o cargo de chefe de polícia. Lá estou a seu dispor.
E desceu.
- Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo!...
Ao entrar na sua seção, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros.
- Muito bem! - disse consigo. - Foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa.
Sentou-se e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando D. Pedro de Alcântara. Como na ocasião passasse um continuo, perguntou-lhe:
- Por que tiraram da parede o retrato de Sua Majestade?
O contínuo respondeu num tom lentamente desdenhoso:
- Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana?
- Pedro Banana! - repetiu raivoso o velho Lima.
E, sentando-se, pensou com tristeza:
- Não dou três anos para que isso seja República!
O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis médico: bastaram-lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias.
O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se transformara em República.
No dia 23, restabelecido e pronto para outra, comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras:
- Bom dia, cidadão.
O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a responder:
- Bom dia, comendador.
- Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores!
- Ora essa! Então por quê?
- A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se!
O velho Lima encarou o comendador e calou-se, receoso de não ter compreendido a pilhéria.
Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro:
- Como vai você com o Aristides?
- Que Aristides?
- O Silveira Lobo.
- Eu! Onde?... Como?...
- Que diabo! Pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado de uma repartição do
Ministério do Interior?...
Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de que o comendador houvesse enlouquecido.
- Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? - perguntou Vidal, passados alguns momentos. - Sonetos, naturalmente, que é do que mais se ocupa aquele tipo!
"Ora vejam", refletiu o velho Lima, "ora vejam o que é perder a razão: este homem quando estava no seu juízo era tão monarquista, tão amigo do imperador!"
Entretanto, o velho Lima indignou-se, vendo que o subdelegado de sua freguesia, sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do comendador.
- Uma autoridade policial! - murmurou o velho Lima.
E o comendador acrescentou:
- Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve lá chegar no princípio do mês.
O velho Lima comovia-se:
- Não diz coisa com coisa, coitado!
- E a bandeira? Que me diz você da bandeira?
- Ah, sim... a bandeira... sim... - repetiu o velho Lima para o não contrariar.
- Como a prefere: com ou sem lema?
- Sem lema - respondeu o bom homem num tom de profundo pesar: - sem lema.
- Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro.
Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho Lima voltou-se para o subdelegado e disse-lhe:
- Parece que vamos ficar aqui! Está cada vez pior o serviço de Pedro II!
- Qual Pedro II! - bradou o comendador. - Isto já não é de Pedro II! Ele que se contente com os cinco mil contos!
- E vá para a casa do diabo! - acrescentou o subdelegado.
O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se.
Chegado à praça da Aclamação, entrou num bonde e foi até à sua Secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara.
Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado a arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do parque da Aclamação.
Ao entrar na Secretaria, um servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer-lhe:
- Cidadão!
"Deram hoje para me chamar cidadão!" - pensou o velho Lima.
Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data.
- Oh! Você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado!
O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente.
'Querem ver que já é alguém!" refletiu o velho Lima.
- Amanhã parto para a Paraíba - disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe as pontas dos dedos.
- Como sabe, vou exercer o cargo de chefe de polícia. Lá estou a seu dispor.
E desceu.
- Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo!...
Ao entrar na sua seção, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros.
- Muito bem! - disse consigo. - Foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa.
Sentou-se e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando D. Pedro de Alcântara. Como na ocasião passasse um continuo, perguntou-lhe:
- Por que tiraram da parede o retrato de Sua Majestade?
O contínuo respondeu num tom lentamente desdenhoso:
- Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana?
- Pedro Banana! - repetiu raivoso o velho Lima.
E, sentando-se, pensou com tristeza:
- Não dou três anos para que isso seja República!
==================
Biografia de Artur de Azevedo pode ser encontrada na postagem de 05/01/08
=================
Fonte:
AZEVEDO, Artur. Contos. São Paulo: Editora Escala. Coleção Grandes Obras - nr. 17
Nenhum comentário:
Postar um comentário