Só a mulher pode abençoar o lar.
As mulheres piedosas salvam o mundo.
(Do Talmude)
A sombra fugaz de um vulto feminino esgueirou-se ao longe, no fundo da rua sombria.
Os mais desencontrados pensamentos, nascidos da inquietação de seu coração, embaralhava-se, naquele momento, no cérebro de Daniel Leib. Sentia-se envolvido numa atmosfera de tristeza, que ele não sabia explicar. Como se lhe afigurava angustiosa aquela insatisfação eterna e acabrunhante! Encontraria, afinal, em seu pai, sempre prudente e sensato, o amparo moral de que tanto precisava?
O velho Renato Leib ergueu-se vagaroso, aproximou-se do filho e, tocando-lhe o ombro com a mão larga e trêmula, disse-lhe, bondoso:
— Daniel, ouve cá. É preciso que confies em mim. Devo dizer-te a verdade com franqueza e lealdade que convém a um homem de bem, quando fala ao filho. As queixas e recriminações que acabaste de formular e as palavras de negra revolta que proferiste são, a meu ver, uma grande e dolorosa injustiça. Revoltas-te contra o Destino, julgas aniquilada a tua vida, e, no entanto, o Destino tem sido, para contigo, pródigo em benefícios de toda espécie. A partir da época de teu acertado casamento...
— Acertado casamento? — repetiu Daniel, sublinhando, irônico, as palavras paternas. — Esse casamento que todos enfeitam com as lantejoulas dos elogios fáceis, não passou, afinal, de um erro deplorável de minha vida.
O judicioso Renato esboçou um sorriso de tolerância e bondade.
— Toquei precisamente no ponto vital, visto que dele julgas irradiarem todas as desditas e contrariedades de tua vida: o teu casamento! Não te sentes feliz com tua esposa: mais de cem vezes tenho já entrevisto em tuas palavras queixas e censuras que visam diretamente àquela que escolheste para mãe de teus filhos.
— “Falta-me quem me compreenda” — dizes. — “Tenho junto de mim alguém de uma intolerável vulgaridade”. E, levado pela eterna insatisfação dos teus desejos, envolves a tua boa Lenida num véu de defeitos e fraquezas, tornando-a a menos desejável de todas as esposas. Como explicar essa atitude de tua parte em relação a uma mulher que já obteve em tempo não muito distante, as preferências de teu amor? Sei, ou melhor, adivinho tudo, meu caro Daniel. Insistes, naturalmente, em fazer paralelos entre Lenida e as outras mulheres, e esses paralelos em que as duas partes são vistas desigualmente, levam-te a ver sempre com olhos desfavoráveis a tua esposa. Com as fantasias de tua imaginação impetuosa, enfeitas as esposas ou amantes de teus amigos, com predicados raros e encantos admiráveis, ao passo que de tua paciente companheira só sabes realçar os defeitos, esquecido, por completo, de suas boas qualidades. Lembra-te de que não tive ingerência em teu casamento. Afligi-me, não poucas vezes, com a ideia de que poderias, arrebatado por insofrida paixão, fazer uma escolha infeliz, e trazer para o recesso do teu lar, sob o escudo de teu nome, uma criatura pouco digna de teus afetos. Um erro dessa natureza é, bem sei, fonte perene de cruciantes arrependimentos e desgostos. Com o perpassar dos anos, entretanto, procurei observar, dia a dia, a tua esposa, para ver se eram justas ou não as tuas queixas. Mais de uma vez tive ímpetos de abrir os teus olhos (como agora o estou fazendo) e revelar-te a verdade que desconheces. Se o não fiz há mais tempo, foi unicamente por acreditar que seria mais nobre que ao teu coração a verdade chegasse guiada pelo teu bom-senso de marido e de pai. Lenida é carinhosa e simples; esforçada e econômica; ativa e zelosa. Muito longe está, talvez, de ser brilhante como uma artista ou de possuir talento excepcional; mas é sensata e agradável no conversar, discreta nas atitudes e modesta nas maneiras. Jamais se queixa da pobreza em que vive, nem inveja os belos colares e vestidos que algumas amigas ostentam. Nada exige; nada reclama. Se alguma vez pareceu faltar-te foi porque não a procuraste como devias. Julgavas, por vezes, que ela estivesse muitas léguas longe de ti, quando, na realidade, e em pensamento, tinhas-a a teu lado. Mãe extremosa, jamais se descuidou um só momento dos filhos, para os quais tem sido de uma dedicação incomparável. Será linda? Nada quero afirmar a tal respeito, mas pelo que tenho ouvido de bocas insuspeitas, Lenida seria capaz de fazer boa presença entre as moças mais requisitadas da cidade. Só tu, meu filho, és cego, inteiramente cego, para apreciar as belas qualidades que adornam tua esposa.
— Mas, meu pai...
— Não me interrompas, Daniel — continuou o ancião. — Falei-te com a franqueza de um amigo sincero e com a lealdade de um pai dedicadíssimo. Ser-me-ia fácil provar-te (sem lograr, talvez, convencer-te) que não és digno, talvez, da esposa que tens. Estou certo, entretanto, de que só poderás compreender perfeitamente o sentido de minhas palavras, se te dispuseres a ouvir, com paciência, uma lenda, ou melhor, uma simples história, quase infantil. É a história de um castiçal. Queres ouvi-la?
— Conta-a, meu pai.
* * *
— Era uma vez (por que não começar assim?), era uma vez, repito, um pobre jardineiro, humilde e muito pobre, que se chamava Tagil.
Ao regressar, um dia, de uma excursão à floresta, avistou Tagil um viajante desconhecido que se achava em perigo ao ser assaltado por dois ladrões, em estrada deserta. Tagil, alma nobre e ânimo valente, sem medir as consequências de seu destemor, atirou-se, em socorro do viajante e conseguiu, graças a sua força e coragem, pôr em fuga os dois bandidos.
O desconhecido (que era, aliás, um rico mercador), ao chegar à cidade, disse ao corajoso Tagil:
— Meu amigo, não fosse o seu providencial auxílio, e eu seria, com certeza, assassinado pelos facínoras que me atacaram na estrada. Devo-lhe, pois, a vida. E, como lembrança de minha infinita gratidão, quero dar-lhe um presente.
E o mercador entregou ao jardineiro uma pequena caixa amarela de couro lavrado.
Tagil, nem bem chegado a casa, abriu sofregamente, cheio de curiosidade, a misteriosa caixa para conhecer as preciosidades que ela deveria conter.
Com grande espanto encontrou, apenas, um castiçal de forma estranha e de metal escuro e pesado.
— Ora, um castiçal! — exclamou ele, profundamente decepcionado com aquela triste descoberta. Um castiçal! Ora vejam! Arrisco a vida, luto contra salteadores de estrada e, ao cabo de tudo, ganho esta droga! Que vou fazer com isto? Em que poderá um simples castiçal melhorar ou remediar a minha vida? Seria preferível que o mercador me tivesse presenteado com um punhado de patacões de prata!
E, certo de ter sido logrado em suas esperanças, vencido pela desilusão que lhe trouxera o presente sem valor, Tagil atirou com o castiçal para um canto e deixou-o para ali esquecido, abandonado como coisa inútil e desprezível.
— Ora, um castiçal!
E Tagil quando nele punha os olhos, vinha-lhe à lembrança, com tristeza, o logro que sofrerá ao receber a caixa amarela do rico mercador.
— Ora, um castiçal!
O certo é que o mísero castiçal rolava, como se fora uma inutilidade, de um lado para outro em casa de Tagil. Tendo, certa vez, caído pela janela abaixo esteve muitos dias ao relento, perdido no terreiro imundo. De outra feita, serviu de calço a um móvel partido e, por último, até de martelo manejado pelas mãos fortes e calosas do seu dono.
Um dia, afinal, Tagil, oprimido pelas dificuldades da vida, deixou a casa em que morava e foi residir numa cidade próxima, onde esperava achar trabalho. Levou consigo quase todos os objetos que possuía; deixou apenas, sobre uma mesa tosca e suja, como coisa imprestável, o pesado castiçal com que o presenteara o rico mercador a quem salvara da sanha mortífera de dois execrados de Allah!
Ora, aconteceu que a casa deixada por Tagil foi ocupada, dias depois, por um músico de profissão.
Leonardo (assim se chamava ele) era homem pobre e trabalhador; ao encontrar o castiçal abandonado, teve a impressão de que se tratava de uma peça curiosa e digna de atenção. Cuidando, desde logo, de livrá-lo do pó que o cobria e das manchas que o enfeavam, notou que apresentava na superfície da base certas linhas e figuras dispostas de modo muito singular.
Deslumbrado com a inesperada descoberta, Leonardo entrou a examinar com toda a meticulosidade o desprezado utensílio e teve ensejo de verificar que se tratava de uma verdadeira maravilha. A figura da base era, sem dúvida, execução paciente de um artista genial. Via-se gravado no metal, com traços admiráveis, quase imperceptíveis, a figura de uma soberba galera que deslizava impávida num mar imenso, beijada brandamente pela escumilha das ondas irrequietas; inclinando-se um pouco o castiçal já a cena era inteiramente diversa. Distinguia-se uma bailarina com seus véus, a dançar no meio de um lindo jardim. Desviando-se o olhar um pouco mais para a direita, notava-se que a bailarina desaparecia ocupando-lhe o lugar uma imponente mesquita com suas almenaras (1) apontadas para o céu; procurando-se, com cuidado, uma disposição conveniente, graças a um fluxo de um fluxo de luz, via-se, ainda, um corcel negro a galopar sobre uma montanha de nuvens. Tudo isso o genial gravador fizera, com o buril, na superfície polida do castiçal.
Sem perda de tempo, Leonardo levou o maravilhoso objeto a diversas pessoas, e todas tiveram oportunidade de admirar a extraordinária perfeição do originalíssimo trabalho. E Leonardo, ao desfazer-se do precioso castiçal ganhou uma fortuna incalculável.
Como é singular o destino das coisas!
O que nas mãos de Tagil era uma peça inútil e sem valor, tornara-se uma verdadeira preciosidade aos olhos inteligentes de Leonardo. Este, mais hábil, soube, com finura, ver as maravilhas que o outro jamais conseguira vislumbrar.
Quantos homens não há, por este mundo, a quem cercam tesouros inapreciáveis, mas cujos olhos, desorientados por sentimentos maus, não chegam, sequer, a perceber o brilho ofuscante das pedrarias que o rodeiam?
Tens, meu filho, em tua casa, um precioso castiçal que o Destino depositou em tuas mãos. Cuida dele com carinho e cuidado. Não queiras ser o ridículo Tagil da lenda, que não soube avaliar as grandezas do tesouro que possuía.
* * *
Terminada a narrativa, Daniel Leib ergueu-se, afinal.
As últimas palavras de seu pai vibraram no ar e ecoavam-lhe impertinentes aos ouvidos.
— Não queiras ser o ridículo Tagil da lenda...
A tarde caía lentamente. As primeiras sombras acomodavam-se já pelos recantos que a luz ia, pouco a pouco, abandonando. Lembrou-se Daniel, daquele momento, de que sua esposa Lenida, sempre bondosa, estaria, com certeza, resignada, à sua espera.
Estranho remorso, de que ele não podia desvencilhar-se, oprimia-lhe fortemente o coração.
Teve ímpetos de correr a casa, abraçar a mulher, abraçá-la muito, beijá-la como já não o fazia há muito tempo.
— Vai, meu filho, vai.
__________________________
Nota:
(1) Almenaras — torres de que são providas as mesquitas. Das almenaras ou “minaretes”, o muezim chama os fiéis à prece.
Fonte: Malba Tahan. Minha Vida Querida.
As mulheres piedosas salvam o mundo.
(Do Talmude)
A sombra fugaz de um vulto feminino esgueirou-se ao longe, no fundo da rua sombria.
Os mais desencontrados pensamentos, nascidos da inquietação de seu coração, embaralhava-se, naquele momento, no cérebro de Daniel Leib. Sentia-se envolvido numa atmosfera de tristeza, que ele não sabia explicar. Como se lhe afigurava angustiosa aquela insatisfação eterna e acabrunhante! Encontraria, afinal, em seu pai, sempre prudente e sensato, o amparo moral de que tanto precisava?
O velho Renato Leib ergueu-se vagaroso, aproximou-se do filho e, tocando-lhe o ombro com a mão larga e trêmula, disse-lhe, bondoso:
— Daniel, ouve cá. É preciso que confies em mim. Devo dizer-te a verdade com franqueza e lealdade que convém a um homem de bem, quando fala ao filho. As queixas e recriminações que acabaste de formular e as palavras de negra revolta que proferiste são, a meu ver, uma grande e dolorosa injustiça. Revoltas-te contra o Destino, julgas aniquilada a tua vida, e, no entanto, o Destino tem sido, para contigo, pródigo em benefícios de toda espécie. A partir da época de teu acertado casamento...
— Acertado casamento? — repetiu Daniel, sublinhando, irônico, as palavras paternas. — Esse casamento que todos enfeitam com as lantejoulas dos elogios fáceis, não passou, afinal, de um erro deplorável de minha vida.
O judicioso Renato esboçou um sorriso de tolerância e bondade.
— Toquei precisamente no ponto vital, visto que dele julgas irradiarem todas as desditas e contrariedades de tua vida: o teu casamento! Não te sentes feliz com tua esposa: mais de cem vezes tenho já entrevisto em tuas palavras queixas e censuras que visam diretamente àquela que escolheste para mãe de teus filhos.
— “Falta-me quem me compreenda” — dizes. — “Tenho junto de mim alguém de uma intolerável vulgaridade”. E, levado pela eterna insatisfação dos teus desejos, envolves a tua boa Lenida num véu de defeitos e fraquezas, tornando-a a menos desejável de todas as esposas. Como explicar essa atitude de tua parte em relação a uma mulher que já obteve em tempo não muito distante, as preferências de teu amor? Sei, ou melhor, adivinho tudo, meu caro Daniel. Insistes, naturalmente, em fazer paralelos entre Lenida e as outras mulheres, e esses paralelos em que as duas partes são vistas desigualmente, levam-te a ver sempre com olhos desfavoráveis a tua esposa. Com as fantasias de tua imaginação impetuosa, enfeitas as esposas ou amantes de teus amigos, com predicados raros e encantos admiráveis, ao passo que de tua paciente companheira só sabes realçar os defeitos, esquecido, por completo, de suas boas qualidades. Lembra-te de que não tive ingerência em teu casamento. Afligi-me, não poucas vezes, com a ideia de que poderias, arrebatado por insofrida paixão, fazer uma escolha infeliz, e trazer para o recesso do teu lar, sob o escudo de teu nome, uma criatura pouco digna de teus afetos. Um erro dessa natureza é, bem sei, fonte perene de cruciantes arrependimentos e desgostos. Com o perpassar dos anos, entretanto, procurei observar, dia a dia, a tua esposa, para ver se eram justas ou não as tuas queixas. Mais de uma vez tive ímpetos de abrir os teus olhos (como agora o estou fazendo) e revelar-te a verdade que desconheces. Se o não fiz há mais tempo, foi unicamente por acreditar que seria mais nobre que ao teu coração a verdade chegasse guiada pelo teu bom-senso de marido e de pai. Lenida é carinhosa e simples; esforçada e econômica; ativa e zelosa. Muito longe está, talvez, de ser brilhante como uma artista ou de possuir talento excepcional; mas é sensata e agradável no conversar, discreta nas atitudes e modesta nas maneiras. Jamais se queixa da pobreza em que vive, nem inveja os belos colares e vestidos que algumas amigas ostentam. Nada exige; nada reclama. Se alguma vez pareceu faltar-te foi porque não a procuraste como devias. Julgavas, por vezes, que ela estivesse muitas léguas longe de ti, quando, na realidade, e em pensamento, tinhas-a a teu lado. Mãe extremosa, jamais se descuidou um só momento dos filhos, para os quais tem sido de uma dedicação incomparável. Será linda? Nada quero afirmar a tal respeito, mas pelo que tenho ouvido de bocas insuspeitas, Lenida seria capaz de fazer boa presença entre as moças mais requisitadas da cidade. Só tu, meu filho, és cego, inteiramente cego, para apreciar as belas qualidades que adornam tua esposa.
— Mas, meu pai...
— Não me interrompas, Daniel — continuou o ancião. — Falei-te com a franqueza de um amigo sincero e com a lealdade de um pai dedicadíssimo. Ser-me-ia fácil provar-te (sem lograr, talvez, convencer-te) que não és digno, talvez, da esposa que tens. Estou certo, entretanto, de que só poderás compreender perfeitamente o sentido de minhas palavras, se te dispuseres a ouvir, com paciência, uma lenda, ou melhor, uma simples história, quase infantil. É a história de um castiçal. Queres ouvi-la?
— Conta-a, meu pai.
* * *
— Era uma vez (por que não começar assim?), era uma vez, repito, um pobre jardineiro, humilde e muito pobre, que se chamava Tagil.
Ao regressar, um dia, de uma excursão à floresta, avistou Tagil um viajante desconhecido que se achava em perigo ao ser assaltado por dois ladrões, em estrada deserta. Tagil, alma nobre e ânimo valente, sem medir as consequências de seu destemor, atirou-se, em socorro do viajante e conseguiu, graças a sua força e coragem, pôr em fuga os dois bandidos.
O desconhecido (que era, aliás, um rico mercador), ao chegar à cidade, disse ao corajoso Tagil:
— Meu amigo, não fosse o seu providencial auxílio, e eu seria, com certeza, assassinado pelos facínoras que me atacaram na estrada. Devo-lhe, pois, a vida. E, como lembrança de minha infinita gratidão, quero dar-lhe um presente.
E o mercador entregou ao jardineiro uma pequena caixa amarela de couro lavrado.
Tagil, nem bem chegado a casa, abriu sofregamente, cheio de curiosidade, a misteriosa caixa para conhecer as preciosidades que ela deveria conter.
Com grande espanto encontrou, apenas, um castiçal de forma estranha e de metal escuro e pesado.
— Ora, um castiçal! — exclamou ele, profundamente decepcionado com aquela triste descoberta. Um castiçal! Ora vejam! Arrisco a vida, luto contra salteadores de estrada e, ao cabo de tudo, ganho esta droga! Que vou fazer com isto? Em que poderá um simples castiçal melhorar ou remediar a minha vida? Seria preferível que o mercador me tivesse presenteado com um punhado de patacões de prata!
E, certo de ter sido logrado em suas esperanças, vencido pela desilusão que lhe trouxera o presente sem valor, Tagil atirou com o castiçal para um canto e deixou-o para ali esquecido, abandonado como coisa inútil e desprezível.
— Ora, um castiçal!
E Tagil quando nele punha os olhos, vinha-lhe à lembrança, com tristeza, o logro que sofrerá ao receber a caixa amarela do rico mercador.
— Ora, um castiçal!
O certo é que o mísero castiçal rolava, como se fora uma inutilidade, de um lado para outro em casa de Tagil. Tendo, certa vez, caído pela janela abaixo esteve muitos dias ao relento, perdido no terreiro imundo. De outra feita, serviu de calço a um móvel partido e, por último, até de martelo manejado pelas mãos fortes e calosas do seu dono.
Um dia, afinal, Tagil, oprimido pelas dificuldades da vida, deixou a casa em que morava e foi residir numa cidade próxima, onde esperava achar trabalho. Levou consigo quase todos os objetos que possuía; deixou apenas, sobre uma mesa tosca e suja, como coisa imprestável, o pesado castiçal com que o presenteara o rico mercador a quem salvara da sanha mortífera de dois execrados de Allah!
Ora, aconteceu que a casa deixada por Tagil foi ocupada, dias depois, por um músico de profissão.
Leonardo (assim se chamava ele) era homem pobre e trabalhador; ao encontrar o castiçal abandonado, teve a impressão de que se tratava de uma peça curiosa e digna de atenção. Cuidando, desde logo, de livrá-lo do pó que o cobria e das manchas que o enfeavam, notou que apresentava na superfície da base certas linhas e figuras dispostas de modo muito singular.
Deslumbrado com a inesperada descoberta, Leonardo entrou a examinar com toda a meticulosidade o desprezado utensílio e teve ensejo de verificar que se tratava de uma verdadeira maravilha. A figura da base era, sem dúvida, execução paciente de um artista genial. Via-se gravado no metal, com traços admiráveis, quase imperceptíveis, a figura de uma soberba galera que deslizava impávida num mar imenso, beijada brandamente pela escumilha das ondas irrequietas; inclinando-se um pouco o castiçal já a cena era inteiramente diversa. Distinguia-se uma bailarina com seus véus, a dançar no meio de um lindo jardim. Desviando-se o olhar um pouco mais para a direita, notava-se que a bailarina desaparecia ocupando-lhe o lugar uma imponente mesquita com suas almenaras (1) apontadas para o céu; procurando-se, com cuidado, uma disposição conveniente, graças a um fluxo de um fluxo de luz, via-se, ainda, um corcel negro a galopar sobre uma montanha de nuvens. Tudo isso o genial gravador fizera, com o buril, na superfície polida do castiçal.
Sem perda de tempo, Leonardo levou o maravilhoso objeto a diversas pessoas, e todas tiveram oportunidade de admirar a extraordinária perfeição do originalíssimo trabalho. E Leonardo, ao desfazer-se do precioso castiçal ganhou uma fortuna incalculável.
Como é singular o destino das coisas!
O que nas mãos de Tagil era uma peça inútil e sem valor, tornara-se uma verdadeira preciosidade aos olhos inteligentes de Leonardo. Este, mais hábil, soube, com finura, ver as maravilhas que o outro jamais conseguira vislumbrar.
Quantos homens não há, por este mundo, a quem cercam tesouros inapreciáveis, mas cujos olhos, desorientados por sentimentos maus, não chegam, sequer, a perceber o brilho ofuscante das pedrarias que o rodeiam?
Tens, meu filho, em tua casa, um precioso castiçal que o Destino depositou em tuas mãos. Cuida dele com carinho e cuidado. Não queiras ser o ridículo Tagil da lenda, que não soube avaliar as grandezas do tesouro que possuía.
* * *
Terminada a narrativa, Daniel Leib ergueu-se, afinal.
As últimas palavras de seu pai vibraram no ar e ecoavam-lhe impertinentes aos ouvidos.
— Não queiras ser o ridículo Tagil da lenda...
A tarde caía lentamente. As primeiras sombras acomodavam-se já pelos recantos que a luz ia, pouco a pouco, abandonando. Lembrou-se Daniel, daquele momento, de que sua esposa Lenida, sempre bondosa, estaria, com certeza, resignada, à sua espera.
Estranho remorso, de que ele não podia desvencilhar-se, oprimia-lhe fortemente o coração.
Teve ímpetos de correr a casa, abraçar a mulher, abraçá-la muito, beijá-la como já não o fazia há muito tempo.
— Vai, meu filho, vai.
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Nota:
(1) Almenaras — torres de que são providas as mesquitas. Das almenaras ou “minaretes”, o muezim chama os fiéis à prece.
Fonte: Malba Tahan. Minha Vida Querida.
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