A "vaquinha" havia largado Emília no meio duma das ruas do jardim. Como o sol estivesse esquentando as pedras, ela percebeu que se não fosse para a sombra morreria torrada. E como não viesse em redor nenhum cavalinho ao seu alcance teve de vencer a pé o espaço que ia dali até o canteiro próximo. Como padeceu para vencer aquela enorme extensão de um metro, por cima da horrível pedranceira do pedregulho! O sol queimava-lhe a pele e por duas vezes o vento a derrubou.
Outro grande inimigo da nova humanidade vai ser o vento, ia pensando Emília. O maldito vento já me derrubou duas vezes e, no entanto, devia ser um ventinho de nada, pois pouco boliu com as folhas deste jardim. O sistema de andar de pé, próprio dos bípedes, só dá resultado com as criaturas que possuem tamanho, como os antigos homens e as aves.
Para um serzinho sem tamanho como eu é o maior dos desastres. Por isso não há bichinho nenhum dotado de dois pés e que ande de pé. São todos horizontais e cheios de perninhas. Estou agora compreendendo: defesa contra o vento! Se um ventinho à-toa me derrubou duas vezes, isso quer dizer que um vento de verdade me joga para os confins do Judas e, no entanto, não há formiguinha que não resista aos ventos. Por quê?
Porque não é bípede nem anda de pé, como eu. Aprenda mais essa, Senhora Dona Emília. E assim filosofando alcançou a sombra dos periquitos em redor do canteiro, onde se sentou sobre um pauzinho seco, para descansar e pensar na vida.
— Que mundo este, santo Deus! — murmurou, muito atenta a tudo quanto se passava em redor. É o tal "mundo biológico" de que tanto o Visconde falava, bem diferente do "mundo humano". Diz ele que aqui quem governa não é nenhum governo com soldados, juizes e cadeias. Quem governa é uma invisível Lei Natural. E que Lei Natural é essa? Simplesmente a Lei De Quem Pode Mais. Ninguém neste mundinho procura saber se o outro tem ou não tem razão. Não existe a palavra justiça. A Natureza só quer saber duma coisa: quem pode mais. O que pode mais tem o que quer, até o momento em que apareça outro que possa ainda mais e lhe tome tudo. E por que essa maldade? O Visconde diz que é por causa duma tal Seleção Natural, a coisa mais sem coração do mundo, mas que sempre acerta, pois obriga todas as criaturas a irem se aperfeiçoando. "Ah, você está parado, não se aperfeiçoa, não é?" diz a Seleção para um bichinho bobo. "Pois então leve a breca." E para não levar a breca, o bichinho trata de inventar toda sorte de defesa e astúcias. O tatuzinho inventou aquela defesa de virar bola e fingir-se morto. Os gafanhotinhos inventaram um verde que os confunde com a grama. As aranhas inventaram a teia para caçar as moscas e os ferrões e o veneno para se defenderem. Inúmeros inventaram asas. Outros inventaram as cascas grossas. A pulga inventou o pulo.
Eu sempre achei graça na "prosa" dos homens com as invenções lá deles. Que são as invenções dos homens perto dos milhões de inventos destes bichinhos? Não há pulgão que não tenha vários inventos para a defesa, para conseguir alimento, para morar — ou como diz o Visconde, para "sobreviver" num mundo onde a tal Seleção só tem duas palavras na boca: "Isca! Pega!"
Emília olhava em redor e ia compreendendo o mundo novo em que tinha de viver. À esquerda viu uma aranha sugando um mosquito preso em sua teia invisível. À direita um bando de formigas atracadas a uma pobre minhoca, que se debatia como um "S" vivo. Um filhote de louva-a-deus estava fingindo que rezava, de mãos postas, mas na realidade aquilo não era reza e sim um bote armado contra uma presa qualquer.
— A vida é uma caçada contínua — filosofou Emília. — Estes meus colegas parece que só não caçam quando estão dormindo.
Os pés de periquito abrigavam inúmeros moradores permanentes, além de hóspedes alados que chegavam, ficavam por ali alguns instantes e lá se iam. Emília calculou que para cada bichinho de terra, dos sem asas, havia muitos do ar, com asas, e que levam a maior parte do tempo voando.
— Chega de caçadas — disse ela por fim. — Preciso descobrir outro cavalinho para continuar a minha viagem.
Nesse momento uma mutuca sentou-se perto dela. Emília pensou:
"Montar nessa mutuca não vai dar certo porque há os tais tombos; mas se eu agarrar-me às suas patinhas traseiras? Isso não a atrapalhará em nada no voo, e pode ser que ela me aproxime do palacete."
Decidida a fazer a experiência, aproximou-se da mutuca por trás, como fazem certas aranhas de parede, das que não usam teias e sim botes, e fez como essas aranhas: deu um bote nas perninhas traseiras da mutuca, segurando-se com toda a força.
Assustada com aquilo, a mutuca voou — um voo pesado de quem está levando uma carga excessiva e desceu logo adiante. Emília largou-a, muito contente com a ideia que tivera.
— Bravos! Vou chegando, vou chegando. Estou só a três metros da calçada.
Que lugar era aquele? Um simples canteiro de violetas, dentro do qual Emília teve a sensação do caçador em plena mata virgem. A sua redução de tamanho permitia-lhe ver a "abundância do pequenino". Quantas vidinhas na sombra daquela mata, sobretudo sob forma de vermes! Bichos cabeludos de todos os jeitos, e lagartas não cabeludas, uma delas com chifres no nariz — como o Quindim. E mede-palmos cor de esmeralda, translúcidos, gulosamente devorando folhas ou tecendo casulos. E caramujos, e tatuzinhos. E uma infinidade de formas de vida que só os sábios sabem.Por uma fresta Emília viu lá pelas alturas várias borboletas borboleteando pelas flores, tão leves e lindas. Mas uma vespinha jiti a furtar o pólen duma violeta a distraiu — e por causa dessa vespinha a pobre Emília quase levou a breca.
Enquanto observava a linda vespa naquele trabalho uma horrenda sarassará se aproximou, de ferrão arreganhado.
Emília tinha ódio a essas formigonas pretas desde o dia em que Pedrinho encontrou, no pomar lá do sítio, um ninho de beija-flor com dois filhotes já meio devorados por elas. As canibais, foi o nome que o Visconde lhes deu. Será que ela iria ter a mesma sorte dos beija-flores implumes?
Na maior aflição, Emília olhou em redor, em procura de abrigo. Deu com uma velha casca de caramujo: lançou-se dentro, ficando bem escondidinha lá no fundo. A canibal plantou-se à porta, à espera de que aquele "inseto descascado" saísse. Por fim, desanimada, foi-se embora.
Quando Emília teve coragem de espiar, a horrenda canibal já ia longe.
— Que susto! — exclamou ela saindo de dentro do caramujinho e enxugando com uma isca de musgo o suor gelado da testa. — Tenho que arranjar uma arma qualquer. Há feras muito perigosas nesta mata.
Achou fácil e agradável caminhar dentro do "violetal", porque o chão estava coberto de folhas secas e úmidas, macias para seus pezinhos. Foi andando até chegar à beira da "floresta", onde deu com um gigantesco pé de cactos, dos chamados palmatórias-do-diabo. As enormes folhas chatas, recobertas de espinhos pareciam almofadas de alfinetes.
— E se me armasse dum espinho?
Mas como arrancar um espinho daqueles? Nem com a força de cem Emílias, quanto mais com a de uma só. E ficou de nariz para o ar, namorando aquele tremendo arsenal de lanças, até que lhe veio uma ideia.
"Impossível que aqui pelo chão não haja algum espinho velho de alguma folha caída", e pôs-se a procurar. Foi feliz. Encontrou uma palmatória já desfeita pelo apodrecimento, mas com os espinhos em muito bom estado. Escolheu o menor e pronto.
— Estou um D. Quixote, com esta tremenda lança — disse, pondo a arma debaixo do braço, tal qual fazia D. Quixote.
Logo adiante estava uma aranha quase do seu tamanho, encorujada na leia, à espera de bichinhos incautos. Vendo aproximar-se aquele inseto desconhecido a aranha armou o bote; mas Emília de lança em riste, não lhe deu importância — foi chegando. Ao atirar-se contra ela, a aranha cravou o ventre no espinho. Esperneou, berrou, mas não teve remédio senão ir encolhendo as pernas e morrendo.
A primeira vitória de Emília em pleno "mundo biológico" encheu-a de orgulho. Estava demonstrando aos seus colegas o valor da inteligência. Já se utilizara de vários como cavalinhos e agora vencera uma aranha em combate. Uma coisa a assustava mais que tudo: as aves. Percebeu logo que estavam ali os piores inimigos da nova gente pequenina.
O Visconde havia contado que grande número de passarinhos eram onívoros, isto é, comem de tudo — e portanto comeriam a ela também e a quantos homens– bichinhos encontrassem. Felizmente batera meio–dia, hora em que os pássaros, já de papo cheio, descansam à sombra das árvores. As horas mais perigosas deviam ser as da manhã, enquanto eles almoçavam.
Pouco antes de chegar ao "violetal", Emília tinha assistido a uma tragédia dolorosa. Um gafanhoto verde, ainda criançola e bobo, caíra na asneira de afastar-se da grama, com cujo verdor ele tão bem se confundia.
Dera-lhe na cabeça brincar de pula-pula na areia branca. Mas a areia branca tornava-o visibilíssimo. Uma corruíra avistou-o, veio e zás! — papo.
— Que coisa horrível o papo das aves! — filosofou Emília. — Verdadeiros barris sem fundo. Elas passam a vida inteira a botar bichinhos ali dentro e não os enchem nunca.
A lembrança do almoço da corruíra fê-la lembrar-se do estômago. Ainda não tinha comido coisa nenhuma. Que poderia comer naquele jardim?
Se fosse ave, nada mais simples, porque não faltavam insetos; mas era gente e gente não come insetos — isto é, só come içá torrado e gafanhotos. Dona Benta havia dito que São João no deserto se alimentava de gafanhotos e mel.
— Mel, mel, mel — murmurou Emília lembrando-se das borboletas e abelhas que vivem só de mel. E as flores dali deviam ter mel, já que eram tantas as borboletas. Sim, mas as flores andam lá pelos altos, boas só para os insetos de asas. Esperem! Há também flores baixas — as violetas do "violetal". E Emília voltou para aquela mata virgem em procura das violetas baixinhas. Encontrou três com os cachos pendidos e as pétalas encostadas no chão.
Foi ali que fez o seu primeiro lanche na vida nova, com o mel tirado das três violetas pendidas — mas o perfume deu-lhe dor de cabeça. Muito forte para ela.
— E água?
Mel causa sede; e água nos jardins, só de manhã, antes que o sol evapore as gotas de orvalho. Mas não há jardim sem torneira de irrigação. Emília tratou de descobrir a torneira daquele. Se tivesse a sorte de a encontrar pingando, o problema da água não era problema.
Para descobrir a torneira tinha de trepar a uma "árvore", do alto da qual pudesse "devassar os horizontes". Emília pôs-se a escolher uma árvore "trepável", isto é, que tivesse os galhos bem pertinhos uns dos outros.
O melhor que achou foi um pé de samambaia, e por uma folha trepou até à pontinha. Com facilidade pôde ver a dois metros de distância a calçada, e na parede do palacete uma enormíssima torneira com um tremendo regador em baixo.
— Que regador colossal, meu Deus! — exclamou Emília fazendo cálculos. — Devia ter 40 vezes a sua altura, equivalente a qualquer coisa de 72 metros de altura para o Coronel Teodorico. Em suas comparações ela se lembrava sempre desse homem famoso no bairro de Dona Benta por causa do tamanho.
continua…
Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.
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