I
Pôr de sol de trombeta
O pôr do sol de hoje é de trombeta — disse Emília, com as mãos na cintura, de pezinha sobre o batente da porteira onde, naquela tarde, depois do passeio pela floresta, o pessoal de Dona Benta havia parado. Eles nunca perdiam ensejo de aproveitar os espetáculos da natureza. Nas chuvas fortes,
Narizinho ficava de nariz colado à janela, vendo chover. Se ventava, Pedrinho corria à varanda com o binóculo para espiar a dança das folhas secas — "quero ver se tem saci dentro". E o Visconde dava as explicações científicas de todas as coisas.
O pôr do sol daquele dia estava realmente lindo.
Era um pôr de sol de trombeta. Por quê? Porque Emília tinha inventado que em certos dias o Sol "tocava trombeta a fim de reunir todos os vermelhos e ouros do mundo para a festa do acaso".
Diante dum pôr de sol de trombeta ninguém tinha ânimo de falar, porque tudo quanto dissessem saía bobagem. Mas Dona Benta não se conteve.
— Que maravilhoso fenômeno é o pôr do sol! — disse ela.
Emília deu um pisco para o Visconde por causa daquele "fenômeno", e resolveu encrencar.
— Por que é que se diz "pôr do sol", Dona Benta? — perguntou com o seu célebre ar de anjo de inocência. — Que é que o Sol põe? Algum ovo?
Dona Benta percebeu que aquilo era uma pergunta-armadilha, das que forçavam certa resposta e preparavam o terreno para o famoso "então" da Emília.
— O Sol não põe nada, bobinha. O sol põe-se a si mesmo.
— Então ele é o ovo de si mesmo. Que graça!
Dona Benta teve a pachorra de explicar.
— Pôr do sol" é um modo de dizer. Você bem sabe que o Sol não se põe nunca; a Terra e os outros planetas é que se movem em redor dele. Mas a impressão nossa é de que o Sol se move em redor da Terra — e portanto nasce pela manhã e põe-se à tarde.
— Estou cansada de saber disso — declarou Emília. — A minha implicância é com o tal de pôr. "Pôr" sempre foi botar uma coisa em certo lugar. A galinha põe o ovo no ninho. O Visconde põe a cartola na cabeça.
Pedrinho põe o dedo no nariz.
— Mentira! — gritou Pedrinho desapontado, tirando depressa o dedo do nariz.
— Mas o Sol — continuou Emília — não põe cartola na cabeça, nem tem o péssimo costume de tirar ouro do nariz.
— É um modo de dizer, já expliquei — repetiu Dona Benta.
— Estou vendo que tudo que a gente grande diz são modos de dizer, continuou a pestinha. Isto é, são pequenas mentiras — e depois vivem dizendo às crianças que não mintam! Ah! Ah! Ah!... Os tais poetas, por exemplo. Que é que fazem senão mentir? Ontem à noite a senhora nos leu aquela poesia de Castro Alves que termina assim:
Andrada! Arranca esse pendão dos ares1
Colombo! Fecha a porta dos teus mares!
Tudo mentira. Como é que esse poeta manda o Andrada, que já morreu, arrancar uma bandeira dos ares, quando não há nenhuma bandeira nos ares, e ainda que houvesse, bandeira não é dente que se arranque? Bandeira desce-se do pau pela cordinha. E como é que esse poeta, um soldado raso, se atreve a dar ordens a Colombo, um almirante? E como é que manda Colombo fechar a "porta" dos "teus" mares, se o mar não tem porta e Colombo nunca teve mares — quem tem mares é a Terra?
Dona Benta suspirou.
— Modos de dizer, Emília. Sem esses modos de dizer, aos quais chamamos "imagens poéticas", Castro Alves não podia fazer versos.
— Mas é ou não é mentira?
Dona Benta ia abrindo a boca para a resposta, quando um homem a cavalo apontou na curva da estrada. Era o estafeta que, um dia sim, um dia não, portava ali para entregar a correspondência. Todos tiraram os olhos do pôr do sol para pô-los no estafeta.
O homem chegou. Deu boa tarde. Apeou com ar de eterno descadeirado e abriu o encardido saco de lona para tirar os jornais de Dona Benta.
— Há também uma carta para o Sr. Visconde de Sabugosa — disse ele entregando o pacote.
Emília atirou-se para cima da carta como um gato se atira a uma cabeça de sardinha, e arrancou-a das mãos de Dona Benta, como o poeta queria que o Andrada arrancasse a bandeira dos ares.
— Deve ser resposta a uma consulta que fiz sobre as vitaminas do pó de pirlimpimpim — explicou modestamente o Visconde, enquanto Emília se preparava para rasgar o envelope e Pedrinho suspirava pelo bodoque.
— Não abra, Emília! — gritou Narizinho. — Vovó já disse que o sigilo da correspondência é inviolável. Carta é uma coisa sagrada. Só o destinatário pode abri-la.
Emília fez um muxoxo de pouco caso e enfiou a carta no nariz do Visconde, dizendo:
— Coma, beba o seu sigilo.
Enquanto isso, Pedrinho desdobrava o jornal e lia os enormes títulos e subtítulos da guerra.
— Novo bombardeio de Londres, vovó. Centenas de aviões voaram sobre a cidade. Um colosso de bombas. Quarteirões inteiros destruídos. Inúmeros incêndios. Mortos à beca.
O rosto de Dona Benta sombreou. Sempre que punha o pensamento na guerra ficava tão triste que Narizinho corria a sentar-se em seu colo para animá-la.
— Não fique assim, vovó. A coisa foi em Londres, muito longe daqui.
— Não há tal, minha filha. A humanidade forma um corpo só. Cada país é um membro desse corpo, como cada dedo, cada unha, cada mão, cada braço ou perna faz parte do nosso corpo. Uma bomba que cai numa casa de Londres e mata uma vovó de lá, como eu, e fere uma netinha como você ou deixa aleijado um Pedrinho de lá, me dói tanto como se caísse aqui. É uma perversidade tão monstruosa, isso de bombardear inocentes, que tenho medo de não suportar por muito tempo o horror desta guerra. Vem-me vontade de morrer. Desde que a imensa desgraça começou não faço outra coisa senão pensar no sofrimento de tantos milhões de inocentes. Meu coração anda cheio da dor de todas as avós e mães distantes, que choram a matança de seus pobres filhos e netinhos.
Aquela tristeza de Dona Benta andava a anoitecer o Sítio do Picapau, outrora tão alegre e feliz. E foi justamente essa tristeza que levou Emília a planejar e realizar a mais tremenda aventura que ainda houve no mundo. Emília jurara consigo mesma que daria cabo da guerra e cumpriu o juramento — mas por um triz não acabou também com a humanidade inteira.
Na noite daquele dia, em sua caminha de paina, ela perdeu o sono. Quem entrasse em sua cabeça leria um pensamento assim: "Esta guerra já está durando demais, e se eu não fizer qualquer coisa os famosos bombardeios aéreos continuam, e vão passando de cidade em cidade, e acabam chegando até aqui. Alguém abriu a chave da guerra. É preciso que outro alguém a feche. Mas onde fica a chave da guerra? Pessoa nenhuma sabe. Mas se eu tornar uma pitada do superpó que o Visconde está fabricando, poderei voar até o fim do mundo e descobrir a Casa das Chaves. Porque há de haver uma Casa das Chaves, com chaves que regulem todas as coisas deste mundo, como as chaves da eletricidade no corredor regulam todas as lâmpadas duma casa."
O Visconde, de fato, andava estudando um misterioso superpó, capaz de maravilhas ainda maiores que o velho pó de pirlimpimpim; por isso passava as noites em claro e até recebia cartas científicas do estrangeiro.
Mas naquela noite Emília ouviu uns ronquinhos.
"Será o Visconde?" — disse ela — e foi ver. Era o Visconde, sim, que, depois de noites e noites passadas em claro, dormia um sono de Rabicó.
"Se ele está ferrado no sono a ponto de roncar" — pensou Emília, "é que já resolveu o problema do superpó. Ronco de sábio quer dizer cabeça fresca, invenção já inventada."
Pensando assim, Emília foi pé ante pé ao laboratorinho do Visconde e remexeu tudo até encontrar numa pequena caixa de fósforos uma substância parecida com cinza. Cheirou-a. Lembrava o cheiro do pó de pirlimpimpim. "Deve ser isto mesmo" — disse ela — e corajosamente tomou uma pitada.
continua…
Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.
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