Depois que o gato se foi embora, talvez em procura de mais insetos gostosos como aqueles, Emília pôs-se a refletir muito a sério. Podia sair da toca, mas já estava sem liberdade de ação. De um momento para outro o destino a transformara em mãe de dois órfãos. Juquinha não era nada; até lhe serviria de companheiro — menino taludo, de dois centímetros de altura. Já a Candoca não passava duma criança de três anos e meio, completamente boba. Teria de andar pela mão de alguém. Que alguém? Juquinha ou ela, a "ama seca" Emília — que graça!
— Nunca me casei de medo de ter filhos, e afinal me vejo tutora de dois marmanjos — um maior que eu, mas ainda sem juízo, e outro do meu tamanho, mas que só sabe chorar. A encrenca vai ser grande...
Emília sempre teve fama de não possuir coração. Mentira. Tinha sim.
Está claro que não era nenhum coração de banana como o de tanta gente. Era um coraçãozinho sério, que "pensava que nem uma cabeça". Podendo deixar ali as duas crianças, já que a situação do mundo era a de um geral "salve-se quem puder", não as deixou. Heroicamente resolveu salvá-las.
— Bem. E agora? — pensou lá por dentro logo depois de passado o perigo. — Sozinha, eu ia me arrumando muito bem. Mas tudo mudou. As duas crianças me obrigam a estudar a defesa. Que defesa devo adotar? Evidentemente, o disfarce. Não me resta outro caminho senão essa forma de mentira. Tenho de disfarçar-me em bicho-folhagem ou qualquer coisa assim — e tenho também de disfarçar estas crianças.
A ideia do bicho-folhagem foi sugerida pela lembrança de uma velha história de tia Nastácia. Para livrar-se da onça, o macaco besuntou-se de mel e rolou num monte de folhas secas, desse modo transformando-se em bicho-folhagem e enganando a onça. Emília tinha de inventar qualquer coisa assim.
— Juquinha — disse ela voltando-se para o menino — saiba que seus pais se mudaram para um país muito distante e deixaram vocês entregues aos meus cuidados.
— Para onde foram?
Emília demorou na resposta. Estava pensando. Isso de falar a verdade nem sempre dá certo. Muitas vezes a coisa boa é a mentira. "Se a mentira fizer menos mal do que a verdade, viva a mentira!" Era uma das ideias emilianas. "Os adultos não querem que as crianças mintam, e no entanto passam a vida mentindo de todas as maneiras — para o bem. Há a mentira para o bem, que é boa; e há a mentira para o mal, que é ruim. Logo, isso de mentira depende. Se é para o bem, viva a mentira! Se é para o mal, morra a mentira! E se a verdade é para o bem, viva a verdade! Mas se é para o mal, morra a verdade! Juquinha quer saber para onde os pais foram. Se eu disser a verdade, ele se desespera, chora, e fica uma 'inutilidade de olho vermelho e ranho no nariz atrás de mim. Logo não devo contar a verdade. Poderei inventar uma mentirinha benéfica. Dizer, por exemplo, uma coisa que ele não compreenda bem, mas que o sossegue." E respondeu:
— Seus pais, Juquinha, foram obrigados a mudar-se para a Papolândia.
— Onde é isso?
— É uma terra em toda parte, onde só há papa-popos. É a terra dos papapupu-dospos que voam, ou andam pelo chão miando como gato. E sabe o que é papapopo? — É uma espécie de colo. Antigamente as mães punham os filhinhos no colo; hoje os papapupudospos põem todo mundo no papapopo.
— E é bom lugar esse papapopo?
— Ótimo. Quentinho como cama. Quem adormece nesse colo gosta tanto que não acorda mais.
A explicação deixou Juquinha na mesma, mas o sossegou. Sentia muito que seus pais fossem dormir um sono tão comprido numa terra tão esquisita; mas se era no quente, então bem. A expressão "quentinho como cama" agradou ao menino, que estava nu e com frio.
— Não sei o que aconteceu com a nossa roupa, disse ele. — Eu estava com o meu capote vermelho, de boné na cabeça, pronto para sair com a tia Febrônia depois do almoço. De repente, tudo se sumiu diante de mim. Uma escuridão! Fiquei caído no meio de panos. Veio a falta de fôlego. Comecei a me debater e engatinhar para sair dali.
— Dali de onde?
— Daquela panaria escura.
— Sair e ir para onde?
— Não sei. Eu queria sair, sair — e fui saindo sempre engatinhando.
— Por que sempre engatinhando?
— Porque não podia ficar de pé. O pano não deixava.
— E depois?
— Fui indo, fui indo, até que rolei para um enorme buraco que já não era de pano. Parecia de couro. Escuro como a noite lá dentro. Felizmente vi uma luz. Era um buraquinho claro naquele buracão escuro. Encaminhei-me para lá e saí.
— E que viu?
— Vi este mundo de agora. Tudo tão grande que a gente nem reconhece as coisas. De repente, olhei; mamãe ia saindo de gatinhas de outro enorme monte de pano. E dum terceiro monte de pano, adiante, vi sair papai. Corri para eles. Estavam tão assustados que nem podiam falar. Mamãe afinal falou; papai nunca mais. Ficou totalmente mudo. Vovó, coitada, sumiu. A Zulmira também. Vi o chão forrado de pelos enormes; andar por ali era o mesmo que andar por um capinzal cerrado. Pelos vermelhos e azuis e pretos.
Emília percebeu que Juquinha estava se referindo ao tapete da sala de jantar.
— E a Candoca? — perguntou.
— A Candoca ia tomar banho naquele momento.
A Zulmira já tinha tirado o vestidinho dela... Emília horrorizou-se. Se a pequena já estivesse no banho quando sobreveio a "redução" teria morrido afogada. E pensou nos milhões de criaturas que pelo mundo a fora deviam naquele momento estar no banho e fatalmente morreram afogadas.
— Quem era a Zulmira?
— A ama de Candoca.
Um ponto da história do Juquinha Emília não compreendeu — o tal buracão escuro em que ele havia caído ao escapar da montanha de pano. Mas desconfiou duma coisa.
— Você estava calçado, Juquinha?
— Estava, sim, com os meus sapatos amarelos. E ia sair com a Febrônia justamente para comprar uns sapatos novos. O do pé direito estava furado no dedão.
Emília riu-se.
— Compreendo agora, Juquinha. O tal buraco enorme em que você caiu foi o pé direito daqueles sapatos velhos, o buraquinho do buracão" era o furo do dedão.
O menino ficou pensativo, de rugas na testa.
"Quem sabe se foi mesmo?"
A Candoca principiou a choramingar de frio. Aquele cimento da escada não era bom berço. O choro da criança fez que Emília voltasse à ideia do bicho-folhagem. Tinha de descobrir qualquer coisa com que vestir-se e vestir os órfãos. Pano?... Impossível. Pano até que havia muito, por toda parte montanhas de pano; mas pano pede tesoura e agulha, e se acaso ela possuísse uma tesoura e uma agulha seriam proporcionais ao seu tamanho e tão pequenininhas que não cortaria nem coseria nenhum dos grossos panos existentes no mundo.
Mas há uma coisa que pode substituir o pano: o algodão com que se fazem os panos. Se ela encontrasse um pouco de algodão, estariam resolvidos dois grandes problemas: o do vestuário e o da defesa.
— É isso! Vou disfarçar-me em chumaço de algodão e fazer o mesmo às crianças. Chumacinhos de algodão valem pela melhor roupa e podem rolar à vontade pelo mundo, sem atrair a atenção de gatos, pintos ou passarinhos. Que bicho come algodão? Nenhum. Logo, o problema agora é descobrir um chumaço de algodão.
E voltando-se para o Juquinha:
— Lá dentro de sua casa não haverá algodão?
— Algodão?
— Sim, desse de botar em cova de dente ou no ouvido, quando há dor de ouvido.
— Há, sim. Na estante dos remédios do quarto de mamãe há um pacote azul.
— Ótimo. Fique sabendo que a grande coisa para nós três agora é irmos até lá e apanharmos um pouco desse algodão.
— A senhora está com dor de ouvido? — perguntou o bobinho.
Emília riu-se.
— Não, meu amor. Estou com dor de papapopo e o remédio é algodão.
— Que tanto papapopo a senhora fala? Emília riu-se de novo.
— Juquinha, Juquinha. Papapopo era uma coisa que antigamente não preocupava a ninguém. Mas agora o papapopo é tudo. O grande perigo da humanidade nova, meu amor, é o Senhor Dom Papapopo. Saiba disso.
O menino não entendia. Quis explicações. Ela tapeou.
— O Senhor Dom Papapopo, Juquinha, deve ser filho daquele Papão que outrora assustava as crianças. O tal Papão, porém, era mentira. Nunca existiu. Começou a existir desde que alguém mexeu na Chave do Tamanho. Está entendendo? Desde esse instante o Papapopo, ou o Senhor Dom Papão — pois tudo é a mesma coisa — apareceu no mundo e anda por toda parte nos rondando. Felizmente eu não sou boba. Percebo as coisas muito bem. Penso em tudo e "adapto-me", como diz o Visconde. Por isso estou certa de que o grande remédio contra o Papão é o Algodão. Juquinha amigo toca a procurar o Senhor Dom Algodão por causa do Senhor Dom Papão.
Juquinha ficou na mesma e Candoca pôs-se a berrar.
— Vamos! — disse Emília, dando a mão à manhosa e saindo da fresta.
continua…
Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.
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