segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) III – Por causa do pinto sura

III
Por causa do pinto sura

As viagens com o superpó eram instantâneas. Um fechar e abrir de olhos. Emília fechou os olhos lá no pedestal e abriu-os na porteira do sítio. Que colossal porteira, Santo Deus! Duzentas vezes a altura dela. Lá longe viu um enormíssimo animal pastando: a vaca Mocha. E mais adiante, uma colossal montanha dormindo: Quindim. E a casa? Oh, a casa, no fim do extensíssimo terreiro, tinha para ela a mesma altura do Pão de Açúcar para um homem antigo. O telhado parecia esbarrar nas nuvens.

Como atravessar a pé os cem metros do terreiro?

Cem metros antigamente pouco significavam para a Emília "grande", mas agora, ah, exigiam 33.353 passos, visto como o seu passo se reduzira a 3 milímetros.

Estava pensando nisso, quando um horrendo monstro surgiu no terreiro: o pinto sura. "Parece incrível!" — murmurou ela. "Aquele pinto que não passava de simples pinto como todos os pintos do mundo, desses que a gente chama com um "Quit! Quit!" ou toca com um "Chispa!" virou um verdadeiro Pássaro Roca." 

Emília calculou que o pinto devia ter umas vinte vezes a sua altura, isto é, o tamanho dum avestruz de 70 metros para um homem como o Coronel Teodorico.

— Será possível que um monstro desse vulto me enxergue? — disse ela sem ânimo de atravessar o terreiro.

Mas o pinto sura era um danado para enxergar. Tinha olhos de microscópio. Assim que Emília, pé ante pé, pôs-se a andar, ele a viu e veio de bico aberto para devorá-la. Emília mal teve tempo de recorrer ao superpó que havia trazido. Precipitadamente levou ao nariz os dois grãozinhos e aspirou-os. Fiunn...

Despertou muito longe dali, sobre uma árvore enorme, a cuja galharada se agarrou. As folhas eram azuis como o céu e formavam morros redondos. "Folhas? Não. Isto nunca foi folha. Isto é flor. E os tais morros não passam de cachos de flores. Mas que árvore dá flores azuis assim?" 

Emília lembrou-se logo das hortênsias, e com algum esforço viu que realmente havia caído em cima dum enormíssimo cacho de hortênsias. Era-lhe difícil manter-se ali, porque as criaturas humanas, dotadas de só dois pés, têm necessidade de superfícies planas para se equilibrarem, e naquele cacho de hortênsias só uma ou outra pétala estava em posição horizontal.

Emília tratou de descer. "Para uma criatura-gente, não há como a terra plana", pensou. Antes de descer, porém, correu os olhos em redor.

— O que me pareceu uma floresta, não passa dum jardim. Um imenso jardim, o maior jardim do mundo, com roseiras da altura de árvores e aquele pé de jasmim com flores do tamanho de Vitórias-régias, e na beirada dos canteiros uma grama que lembra os bananais do Cubatão. Como tudo ficou imenso, meu Deus!

E lá adiante? Emília firmou os olhos. Um verdor elevava-se a grande altura e em cima espalhava-se sobre caibros horizontais. Mas rapidamente Emília ia aprendendo a "interpretar" as imensas coisas vistas.

— Sim, estou entendendo. Aquele verdor é a trepadeira duma varanda, e o que me parece caibros são os arames em que ela se apoia. Varanda? Então aquela imensidade branca que me parece erguer-se até às nuvens é a fachada dum palacete.

Emília firmou a vista. Quadrados enormes lá em cima: as janelas! A platibanda ficava tão alta que ela mal podia vê-la.

— Um palacete, sim, muito maior que a casa de Dona Benta. Vai ser difícil acostumar-me ao novo tamanho das coisas; para as formiguinhas, no entanto, esse tamanhão das coisas é o natural, pois foi como sempre elas o tiveram. As formigas ruivas nem podem compreender o que é uma casa. Hão de ver as casas como partes do mundo, ou coisas que sempre foram, como os morros, as pedreiras, os rios, as árvores; e por isso passeiam sem medo pelas casas, sobem e descem pelas paredes, chegam até a fazer seus buraquinhos rente às calçadas. Quando veem sair lá de dentro uma pessoa, com certeza nem compreendem o que é uma pessoa; acham que é apenas uma imensidade móvel, corno os rios ou o mar.

Para as formigas o mundo deve estar dividido em imensidades paradas e imensidades móveis. Uma casa ou um morro é uma imensidade parada; de dentro das casas saem imensidades móveis: gente, cachorro, gatos. E nos campos há imensidades com chifres, que nós chamamos vacas ou bois. Mas apesar de ter eu agora o tamanho duma saúva, possuo a mesma inteligência de antes — e sei. Sei que estas imensidades que estou vendo não passam de verdadeiras pulgas perto de outras coisas ainda maiores, como as montanhas; e as montanhas não passam de pulgas perto de outra coisa maior, como a Terra; e a Terra é uma pulga perto do Sol; e o Sol é um espirro de pulga perto do Infinito.

Como sei coisas, meu Deus!

Emília pôs-se a filosofar, a pensar nos estranhos bichos que andavam em redor dela, uns de asas, outros sem asas, uns pretos, outros verdes, outros
moles — mas todos cheios de pernas.

— Como há pernas neste mundo que antigamente eu chamava "mundo dos bichinhos" e que para mim agora virou o meu mundo! Pois também virei bichinho. E vejo colegas de todos os tamanhos, uns menores que eu, outros maiores. Aquele mede-palmo que ali vem vindo, por exemplo. Para mim é um verdadeiro monstro, pois tem de comprimento cinco vezes a minha altura — equivalente a uma sucuri de 8 metros para um homem antigo. E no entanto é a mesma lagartinha que outrora eu punha na palma da mão.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

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