A peça principal da casa de Eustáquio era uma sala, de boas dimensões, entre paredes de imaculada alvura, que era clareada por três janelas de caixilhos brancos.
Uma tarde, achando-se o subdelegado ausente por exigências do seu cargo, estavam Branca e Rosalina assentadas junto de uma dessas janelas, entretidas na leitura de um livro, iluminado pelo brando clarão roxeado que algumas vezes tinge as paisagens, ao crepúsculo, quando ouviram duas leves pancadas na porta.
- Eustáquio! - exclamou a jovem filha de Manaus regozijando-se com a chegada do esposo.
Deixando cair o livro sobre uma pequena mesa, correu à porta. Quando, porém, começava a suspender uma tranca de ferro que a reforçava, recuou e disse vivamente, em voz baixa:
- Não, é impossível, não é ele, pois que quando partiu assegurou-me que só amanhã estaria de volta.
Rosalina olhou Branca e viu-a tornar-se lívida e tremer levemente.
- Tem medo, mamãe? - perguntou ela concedendo à esposa de Eustáquio esse doce epíteto.
- Na verdade, Rosalina, sinto-me, não sei por que, atemorizada... aqueles acontecimentos... a ausência de meu marido... tenho apreensões horríveis...
Nesta ocasião, apresentou-se Silvano em uma das portas interiores, que dava entrada para um corredor, algum tanto enfumaçado pelos vapores da cozinha que ficava na sua extremidade.
Branca acenou-lhe para que fosse saber quem batera. O preto abriu mui cautelosamente a porta, depois de alguns instantes fechou-a e, rindo-se da sua extrema prudência, anunciou dois viajantes.
A senhora, tranquilizada, disse:
- Convide-os a entrar.
Abriu-se de novo a porta, e dois indivíduos se mostraram sobre a soleira. Um deles era um homem alto, cheio de corpo, de porte sereno mas intrépido, cuja boca desaparecia, encoberta por dois bigodes louros que formavam a base de respeitável nariz, verdadeira pirâmide do Egito. Trajava de viajante trazendo a tiracolo uma espingarda.
O outro era um rapazinho de dez ou doze anos. Tinha o rosto, de beleza pouco vulgar aos do seu sexo, aureolado de cabelos de ouro, tendo seus olhos um tom de atrevimento superior a sua idade.
Estava vestido como o companheiro, possuindo como ele uma boa espingarda.
Os recém-chegados e a dona da casa trocaram os cumprimentos. Em seguida Branca dirigindo-se ao mais velho deles perguntou:
- Em que poderei ser-lhe útil, meu senhor?
- Já vos direi, minha cara senhora - começou o viajante que pela entonação da voz parecia francês, - porém depois que souberdes quem sou. Chamo-me Henrique Dugarbon, minha pátria é a França. Por amor de aventuras estou no Brasil, e há já dois anos que eu o percorro em todos os sentidos. Este menino é meu filho Otávio, que me tem seguido por toda a parte. Os perigos das minhas viagens têm crescido desde que sai de Manaus. Três semanas já se passaram, depois que deixei as margens do Rio Negro, durante elas andei errando pelas florestas, rompendo os matagais e transpondo, com dificuldade e perigo, os largos pântanos e as regiões dominadas pelos selvagens. Vindo suspender a minha jornada diante das águas do Iapurá, que banha os alicerces de S. João do Príncipe, onde há de ficar esta criança.
Os motivos que me forçam a isso são as provações que, bem o sei, me esperam nas excursões que tenciono fazer através da imensa porção do Brasil que está ao norte do Amazonas e a elas não quero sujeitar uma natureza débil como a de Otávio...
Neste ponto o menino quis falar, mas, vendo o pai continuar, conteve-se, deixando rolar uma lágrima pela face rosada... O que espero da vossa bondade, devo agora dizer-vos, é unicamente o favor de indicar-me o caminho a tomar para a povoação.
- Sr. Dugarbon, muito mais tenho feito por outros peregrinos; o que o senhor me pede não é um favor, pois que tenho obrigação de o fazer. Eu mesma levá-lo-ei, depois que houver ceado, até a embocadura do caminho, que poucos passos separam daqui.
A graciosa Branca falava com a naturalidade franca de uma provinciana brasileira.
- Minha excelente senhora, no meu coração agradecido se perpetuará a lembrança do acolhimento que me dais.
- Ora, não lhe admire isto, senhor, o que faço qualquer outro o faria, venha portanto provar, como o seu Otávio, do que para vós mandei preparar.
Enquanto Branca, a orfãzinha e os dois franceses tomavam assento em volta da mesa de jantar, coberta com uma toalha de linho e alumiada por um lampião de querosene, pois já era noite, cujo abajur fazia cair a claridade sobre um assado de carneiro.
Silvano, contente, celebrava a recepção de quatro camaradas, companheiros de viagem do francês.
Todos eles deviam se ir munir do necessário em S. João do Príncipe, para continuar a jornada.
Correu a refeição perfeitamente, versando a conversação sobre as maravilhas vistas pelos viajantes. Otávio e Rosalina tinham travado inocente amizade e, sem que o pai visse, aquele presenteara a esta com um pedacinho de ouro grosseiro, recebendo da menina uma mãozinha de coral que ela costumava trazer ao pescoço.
Já se erguiam da mesa, quando um assobio demorado e forte feriu os ouvidos de todos.
Fez-se absoluto silêncio e cada um se interrogava mudamente.
Branca estava grandemente assustada e o francês aproximou-se, cheio de calma, da janela. A noite era escura, mas a luz das constelações bastou-lhe para perceber três ou quatro vultos que se chegavam para o cercado.
- Há novidade por aqui - disse, - mas nada têm que temer.
- Camaradas! - gritou com voz máscula mas serena, - fogo naquela direção!
Quatro balas partiram, porém nada lhes respondeu.
Fechou-se a janela.
- Minha senhora, disse gravemente Dugarbon, ainda não tive a indiscrição de perguntar-vos se tendes pai ou marido que more convosco, mas este incidente me obriga a fazê-lo. Correis perigo, esta gente não me parece bem intencionada.
- Aqueles homens que lobriguei são sem dúvida - continuou o francês - bandidos que vos espreitam.
- A mim não, interrompeu a esposa do subdelegado, mas o meu marido.
- Assim pois, sois casada, não?
- Sim senhor, com Eustáquio, subdelegado desta freguesia.
- Podeis dizer-me onde se acha ele, agora?
- Acha-se fora ocupado em investigações sobre um roubo de pouca valia, deve voltar amanhã, se o permitir o céu.
- Tenho, assim, minha senhora, o prazer de comunicar-vos que, antes da chegada do Sr. subdelegado, não deixarei esta casa, para vossa segurança.
Branca, que não encarava sem terror a ideia de uma agressão, aceitou contente.
- Obrigada - disse, - do seu caráter não esperava outra cousa, todavia creio que a minha segurança não exige que não repousem o senhor e o seu filho das suas fadigas. Aquela alcova é dos viajantes e, portanto, do senhor.
Falando assim apontava para uma porta de vidraças, cobertas com pequenas cortinas de cassa, que, meio-aberta, deixava entrever duas camas, comodamente paramentadas.
O oferecimento foi bem recebido e, desejando a Branca e Rosalina boa noite, os dois peregrinos entraram para o aposento indicado.
Silvano e os camaradas assentaram-se perto da entrada e aí adormeceram. Com Rosalina recolheu-se a mulher de Eustáquio, não antes de amortecer a chama do lampião, que começou a espalhar pela sala essa luz escura que tanto agrada a Morfeu...
Fonte:
POMPÉIA, Raul. Uma Tragédia no Amazonas.
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