domingo, 10 de dezembro de 2017

Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) II – A Chave do Tamanho

II

A Chave do Tamanho


Fiunnn!!!

Quando Emília abriu os olhos e foi lentamente voltando da tonteira, deu consigo num lugar nebuloso, assim com ar de madrugada. Não enxergou árvores, nem montanhas nem coisa nenhuma — só havia lá longe um misterioso casarão.

— Isto deve ser o Fim do Mundo, e aquela casa só pode ser a Casa das Chaves. Que pó certeiro o do Visconde!

Ergueu-se, ainda tonta, e aproximou-se do casarão. Certinho! Um grande letreiro na fachada dizia simplesmente isto: "CASA DAS CHAVES."

Emília esteve algum tempo de nariz para o ar, com os olhos naquelas estranhas letras de luz. Viu uma porta aberta. Enchendo-se de coragem, entrou. Não havia coisas lã dentro, objeto nenhum, nem máquinas. Só aquele mesmo nevoeiro de lá fora mas numa espécie de parede distinguiu um correr de chaves como as da eletricidade, todas erguidas para cima.

— Hão de ser as chaves que regulam e graduam todas as coisas do mundo — pensou Emília. — Uma delas, portanto, é a chave que abre e fecha as guerras Mas qual?

Emília segurou o queixo, a refletir Pensou com toda a força. Não havia diferença entre as chaves.Todas iguaizinhas. Nada de letreiros ou números. Como saber qual a chave da guerra?

— A única solução é aplicar o método experimental que o Visconde usa em seu laboratório. É ir mexendo nas chaves, uma a uma, até dar com a da guerra.

Mas as chaves ficavam numa fileira a oito palmos do chão, fora, pois, do alcance duma criaturinha
de apenas dois palmos de altura. Como alcançar as chaves?

Emília correu os olhos em redor. Não viu nenhuma escada nem cadeira, nem caixão em que pudesse trepar. Não havia sequer uma vara. O remédio seria recorrer novamente ao superpó. "Se eu cheirar a metade do menor dos grãozinhos trazidos nesta caixa, subo até lá e agarro-me a qualquer das chaves."

E assim fez. Escolheu o grãozinho de pó menor de todos, partiu-o ao meio e aspirou metade. Deu certo. Bastou o cheiro daquela isca de superpó para erguê-la até às chaves, permitindo-lhe pendurar-se numa. Nem precisou fazer força. Bastou o seu peso para que a chave descesse quase até o fim.

Mas o que aconteceu foi a coisa mais imprevista do mundo. Tudo se transformou diante de seus olhos, e um pano enorme, como o toldo dum circo de cavalinhos, desabou sobre ela. Emília sentiu-se rodeada de pano; o chão era de pano; por cima só havia pano; dos lados, pano, pano e mais pano. E com o peso de tanto pano ela nem podia conservar-se de pé. Ficou deitadinha, como achatada. Mas era preciso sair dali ou pelo menos fazer esforços para sair, porque já estava sentindo falta de ar. E começou a engatinhar debaixo da panaria, numa cega tentativa de fuga. As dobras eram muitas, de modo que a cada momento, tinha de fazer rodeios para poder avançar. E foi engatinhando, flanqueando as dobras atrapalhadoras; às vezes até ficava de pé, quando uma dobra maior lhe dava espaço. Emília lembrou-se do Labirinto de Creta, onde morava o Minotauro. É escuro ali dentro. Nem ao menos aquela penumbra de madrugada de lá fora. Emília teve a impressão de haver passado um século naquele engatinhamento labiríntico. Por fim divisou em certa direção uma claridade. "Deve ser ali a bainha ou fim deste maldito pano", pensou ela, e para lá se arrastou. Era de fato a bainha — e Emília já quase sem fôlego, lavada em suor, saiu do labirinto e caiu exausta no chão, com um Uf!

Ficou algum tempo deitada de costas, os braços estendidos, sem pensar em coisa nenhuma. Primeiro descansar; depois o resto. Ergueu os olhos para as chaves da parede. Não viu na parede chave nenhuma. "Que história é esta? Será que as chaves se evaporaram?" Firmando a vista, verificou que não. As chaves lá estavam, mas em ponto muitíssimo mais alto. A parede crescera tremendamente. Parecia não ter fim. Tudo aumentara dum modo prodigioso. E no chão viu uma coisa nova, que não existia antes; um pedestal atapetado de papel amarelo.

Emília achava-se deitada justamente sobre esse pedestal. Depois, olhando para o seu corpinho, verificou que estava nua.

— Que história é esta? Eu, nua que nem minhoca, em cima deste pedestal amarelo cheio de riscos pretos, ao lado duma montanha de pano —e as chaves lá em cima — e tudo enormíssimo... Será que estou sonhando?

Pôs-se a pensar com toda a força. Examinou o tapete do pedestal.

Percebeu que os riscos eram letras e teve de ficar de pé para lê-las uma por uma. A primeira era um F; a segunda, um O; a terceira um S. Chegando à última, viu que formava a palavra FÓSFOROS. Em seguida vinha um D e um E, formando a palavra DE. E as últimas letras formavam a palavra SEGURANÇA. Tudo reunido dava a expressão FÓSFOROS DE SEGURANÇA.

— Será possível? — exclamou Emília consigo mesma. — Será que estou em cima da maior caixa de fósforos que jamais houve no mundo? Mas se é assim, então cada pau de fósforo deve ser uma verdadeira vigota de pinho — e como a caixa estivesse aberta, espiou. Não viu lá dentro vigota nenhuma, sim uma espécie de areia grossa, da cor exata do superpó do Visconde.

Nesse momento um raio de luz iluminou-lhe o cérebro.

— Hum! Já sei. Isto é a caixa de fósforos que eu trouxe e está do tamanho que sempre foi. Eu é que diminuí. Fiquei pequeníssima; e, como estou pequeníssima, todas as coisas me parecem tremendamente grandes.

Aconteceu-me o que às vezes acontecia a Alice no País das Maravilhas. Ora ficava enorme a ponto de não caber em casas, ora ficava do tamanho dum mosquito. Eu fiquei pequenininha. Por quê?

E pôs-se a pensar mais forte ainda.

— Só pode ser por uma coisa: por causa da descida da chave.

Logo, aquela chave é a que regula o meu tamanho. Regula só o meu tamanho, ou regula o tamanho de todas as criaturas vivas? Regula o tamanho de todas as criaturas vivas, ou só o das criaturas humanas?

Quantos problemas, meu Deus!

Pensou, pensou.

— Se todas as criaturas ficaram pequeninas como eu fiquei, então o mundo inteiro deve estar na maior atrapalhação e com as cabeças tão transtornadas quanto a minha. Mas a guerra acabou! Ah, isso acabou! Pequeninos como eu, os homens não podem mais matar-se uns aos outros, nem lidar com aquelas terríveis armas de aço. O mais que poderão fazer é cutucar-se com alfinetes ou espinhos. Já é uma grande coisa...

Pensou, pensou, pensou.

— Sim, eu mexi na Chave do Tamanho e todas as criaturas vivas ficaram pequenas porque seria absurdo haver uma chave só para minha pessoa. Se houvesse uma chave para cada pessoa, nesta sala deviam existir três bilhões e meio de chaves, porque a população do mundo é de três bilhões e meio de pessoas. Logo, a mesma chave serve para  todas as pessoas. Logo, toda a humanidade está "reduzida" — e impedida de fazer guerra. Uf! Acabei com a guerra! Viva! Viva!... Pensou, pensou, pensou.

— A prova de que essa chave só regula o tamanho das criaturas vivas, está aqui nesta caixa de fósforos. Se esta caixa de fósforos também tivesse diminuído, estaria proporcional ao meu corpo, e não imensa como está.

A situação era tão nova que as suas velhas ideias não serviam mais. Emília compreendeu um ponto que Dona Benta havia explicado, isto é, que nossas ideias são filhas de nossa experiência. Ora, a mudança do tamanho da humanidade vinha tornar as ideias tão inúteis como um tostão furado. A ideia duma caixa de fósforos, por exemplo, era a ideia duma coisinha que os homens carregavam no bolso. Mas com as criaturas diminuídas a ponto duma caixa de fósforos ficar do tamanho dum pedestal de estátua, a "ideia-de-caixa-de-fósforos" já não vale coisa nenhuma. A "ideia-de-leão" era a dum terrível e perigosíssimo animal, comedor de gente; e a "ideia-de-pinto" era a dum bichinho inofensivo. Agora é o contrário. O perigoso é o pinto.

Emília sentiu um friozinho no coração. Começou a desconfiar que havia feito uma coisa tremenda, a coisa mais tremenda jamais acontecida no mundo.

Pensou, pensou, pensou. Depois resolveu calcular que tamanho teria.

— Posso calcular o meu tamanho por comparação com as letras da palavra FÓSFOROS. Essas letras tinham um terço de centímetro no tempo em que eu tinha 40. Ora, se eu tinha 40 centímetros, era 120 vezes maior que um terço de centímetro. E agora? Qual o meu tamanho em relação a essas letras?

Para fazer a medição, Emília deitou-se sobre o F, e viu que aquele F tinha um terço da sua altura. Logo, ela estava reduzida a justamente um centímetro de altura.

— Que coisa — exclamou. Reduzida a um centímetro apenas, eu que tinha 40! Diminui 40 vezes. Nesse caso, Pedrinho, que tinha l,40m. — e contava tanta prosa — deve estar reduzido a 3 centímetros e meio. E o coronel Teodorico, que tanto se gabava de ter l,80m está reduzido a 4 centímetros e meio — do tamanho dum simples gafanhotinho...

Emília pensava, pensava.

— Que fazer agora? Tenho várias soluções a escolher. Uma, é largar tudo como está. Outra, é levantar novamente a chave e deixar as coisas como eram. Isto me parece o melhor, porque se eu voltar para o sítio deste tamanho é provável que nem possa atravessar o terreiro. O pinto sura não sai de lá. Devora-me, como se eu fosse uma formiga. Olhou para cima. A chave baixada parecia muito no alto — quarenta vezes mais alta que antes. Mas isso não tinha importância para quem ainda dispunha de tanto superpó. E, enfiando a mão dentro da abertura da caixa, Emília apanhou um grão e aspirou-o. O pó levou-a até à altura da chave, mas a sua forcinha, diminuída quarenta vezes, já não dava para mais nada.

Nem jeito de segurar na chave teve, a qual lhe pareceu como enorme maçaneta, de diâmetro igual à altura do seu corpo — o mesmo que a tora de um grande jequitibá para um homem dos antigos.

Dos antigos, sim, porque, se todos os homens estavam agora tão reduzidos de tamanho quanto ela, quem quisesse referir-se aos homens da véspera tinha de dizer "os homens antigos".

Emília sentou-se em cima daquela enorme tora de jequitibá, sem saber como descer.

— E agora?

Pensou, pensou, pensou.

— Vou atirar-me — resolveu. — Meu peso deve estar igual ao peso duma formiga saúva e portanto, se me atirar, devo cair com a leveza de um cisquinho — além de que há lá embaixo aquela montanha de pano.

E assim fez. Atirou-se em cima da montanha de pano.

E foi então que descobriu uma grande coisa: o pano daquela montanha era uma fazenda de enormes ramos de rosas vermelhas — iguais aos ramos de rosinhas do seu vestido evaporado — e compreendeu tudo. A enorme montanha de pano não era mais que o seu próprio vestido largado no chão. Quando baixou a chave e sofreu o instantâneo apequenamento, achou-se no meio do vestido o qual, sem o apoio do corpo que o sustinha, desabou, dando à minúscula dona lá dentro aquela impressão de circo que vinha abaixo.

— Que coisa! -- exclamou Emília. — Aquele imenso pano que formou o labirinto em redor de mim era o meu vestido. Felizmente a caixa do superpó estava na minha mão e não no bolso. Se tivesse no bolso, como poderia eu tirá-la agora do seio desta enorme montanha? Que coisa formidável!...

Emília pensou por mais uns instantes. Tinha de abandonar ali todo aquele precioso pó, apesar de ser o único que havia lá no sítio. Pois como levar de volta a caixa-pedestal? Se estivesse vestida, em seus bolsos ainda caberiam algumas pitadinhas. Mas daquele modo, nua que nem minhoca, o mais que poderia levar era o que coubesse em suas mãos — um grãozinho apenas em cada uma.

Mas antes isso do que nada — e Emília tomou um grão de pó em cada mão.

Depois aspirou um terceiro grãozinho e — fiun!... lá se foi pelos ares, de volta ao sítio de Dona
Benta.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

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