segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Olivaldo Júnior (Carnaval em Trovas) II


Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 5 a 8


5 — VÉSPERA DE BATALHA

Muito tempo passou. Fiquei curumiaçu, que quer dizer adulto. Chegou a véspera da minha primeira guerra. Os tupinambás se enfeitaram de plumas, botaram no pescoço colares feitos com dentes de inimigos mortos, armaram-se de arcos, flechas, tacapes e lanças.

Eu me lembro com se tivesse acontecido ontem... Era de noite. Céu sujo, vazio de lua e de estrelas. As fogueiras ardiam vermelhas, debaixo dos
potes de cauim. O maracá começou a chocalhar.

Minha mãe chegou e disse:

— Tibicuera, vais para a guerra.

— Vou, mãe.

— Teus avós foram valentes.

— Eu sei.

— Estão morando do outro lado das grandes montanhas.

— Eu sei.

Minha voz estava trêmula. Eu olhava a minha sombra no chão. Não era mais o guri barrigudo de pernas de caniço. Eu era agora um homem forte,
um guerreiro.

Minha mãe continuou:

— Matarás muitos inimigos, derrubarás muitas cabeças, serás um grande chefe.

Estremeci. Apertei com força o meu tacape. Senti que meus olhos estavam fuzilando. Perguntei, com um nó na garganta:

— Mãe, mãe, quando chegará a hora? Quando? Estou fervendo como o cauim. Não posso esperar.

Minha mãe sorriu.

O pajé reuniu os guerreiros no meio da ocara. Falou. Sua voz parecia sair do fundo duma caverna cheia de cobras, escorpiões e morcegos. E enquanto o feiticeiro falava, as nuvens foram se abrindo e as estrelas aparecendo uma a uma.

— Guerra! — gritava o pajé. — O guerreiro forte que ficar na taba é covarde.

Penas e braços dançaram no ar. Um coro horrível repetiu:

— Guerra!

O pajé continuou:

— O goitacá traiçoeiro comeu a carne de nossos antepassados. Vingança!

O discurso do pajé durou cinco horas. Depois os tupinambás começaram a dançar e a beber cauim. Também dancei e bebi. E a madrugada ainda não tinha clareado quando nos pusemos a marchar.

6 — A VITÓRIA
O sol dourava o grande campo. A noite tinha se escondido do outro lado das montanhas. Os nossos guerreiros avançavam. Tudo quieto. Às vezes um gavião passava alto. Eu pensava:

— Anhangá pode estar escondido no corpo duma ave...

(Agora, sentado aqui numa boa poltrona, no estúdio de meu apartamento de Copacabana — onde escrevo esta história — eu sorrio ao me lembrar de meus pensamentos de selvagem.)

De repente, um grito. Tive a impressão de que as macegas, a uns duzentos metros de onde estávamos, cresciam de repente. Eram os inimigos que nos esperavam de emboscada. Uma chuva horizontal de flechas cortou o ar. Traziam nas pontas plumas azuis, amarelas, vermelhas e roxas. Eram tão lindas voando e brilhando no ar luminoso que fiquei de boca aberta, a contemplá-las, tão encantado que me esqueci de me deitar para fugir às flechadas.

Vi um companheiro cair perto de mim com uma seta cravada no peito. Os nossos começaram a atirar também. O combate durou muito tempo. No fim foi a luta corpo a corpo.

Os maracás chocalhavam. Os guerreiros gritavam. Agitei o tacape e corri na direção dos inimigos. Surgiu um índio forte na minha frente. Levantei o tacape e dei o golpe. Pan! O inimigo rolou.

(No momento em que descrevo esta cena, estou no ano de 1942. O meu rádio noticia voos estratosféricos, conta maravilhas da televisão. E a um anúncio de sabonete segue-se uma sinfonia de Beethoven. Olho para a minha máquina de escrever portátil e para as minhas mãos agora cuidadas e custa-me acreditar que estas mesmas mãos já empunharam armas brutais, já feriram, já derrubaram cabeças... Estremeço de leve. Toco a campainha. Peço um chá ao meu criado e continuo a descrever a minha primeira guerra.)

Apareceu outro goitacá. Pan! Rolou também. Outro. Pan! A mesma coisa. Todos caíam. Minha arma zunia no ar sem descanso e sem piedade.

Aquele quadro — homens baqueando aos gritos, plumas coloridas voando ao vento, som de maracás — foi tão forte que hoje, passados mais de quatrocentos anos, eu me lembro dele com toda a clareza. Por fim ergue-se na minha frente um guerreiro enorme. Pela pintura que trazia no corpo, vi que era o chefe da tribo inimiga. Levantou o tacape. Recuei e rebolei também a minha arma. As nossas clavas se chocaram no ar. Pléf! E se quebraram.

Olhei para os braços musculosos do meu adversário e pensei: Estou perdido. Mas não perdi a calma. Como um tigre saltei-lhe em cima. Atracados, rolamos por terra. Senti as mãos de ferro do goitacá trançadas nas minhas costas, enquanto seus braços apertavam meu tronco, procurando esmagá-lo. Fiz um esforço doido e consegui segurar com ambas as mãos a garganta do chefe. E enquanto ele me apertava a cintura eu lhe apertava o pescoço. No fim de alguns minutos notei que o abraço do inimigo afrouxava. Senti um alívio. Eu tinha vencido.

7 — SERENATA PARA AS ESTRELAS
Voltamos para a taba com os troféus da vitória.

Minha mãe me esperou sorrindo.

— Cem cabeças de inimigos. Que lindos enfeites para a nossa caiçara, mãe!

(Assim pensava eu no ano de 1490. Hoje, olho urna tela de Portinari ou uma escultura de Brecheret e digo: “Que lindos enfeites para o meu gabinete.)

Veio o pajé com o seu sorriso irônico e me disse:

— Tibicuera é um valente. Oh! Mas ele não pode com os gênios do mato.

Naquela noite a lua me pareceu mais clara, mais suave a minha rede, mais melodioso o barulho do mar. Com o osso da coxa do chefe inimigo fiz uma flauta. E na hora em que a taba dormia, comecei a soprar no instrumento. O som que saiu dele foi doce e triste. Então fiz a minha primeira serenata para as estrelas. Toquei com tanta alma, com tanto sentimento, que a música misteriosa dançou no ar leve voou para o mato e fez calar de espanto o urro do jaguar, o canto de fundo do urutau e o grito guinchado de Curupira. As cobras vieram me lamber os pés, tontas. Pareceu-me até que as próprias estrelas pararam de brilhar para melhor ouvirem a minha musiquinha. Eu soprava na flauta e de tão comovido comecei a chorar.

Mais tarde, fui dormir. Sonhei que o chefe goitacá veio para mim e disse:

— Tibicuera, estou contente por ter sido vencido por ti. Estou orgulhoso de ti. Porque fizeste uma flauta com o meu fêmur e tocas nela tão bem, tão bonito, que até os mortos que moram para além das grandes montanhas ficam com vontade de voltar, só para te ouvir.

8 — VELAS NO MAR
O pajé me contava histórias dos tempos em que a Lua era noiva do Sol. Eu ficava sentado na oca dele, de pernas cruzadas, escutando. Uma fogueira quase morta nos separava. A fumaça subia. Por trás da fumaça o pajé sorria, mostrando a boca escura e desdentada. E a faia dele era como o barulho do vento nas folhagens.

Um dia ele me estava recontando uma história que aprendera do velho Sumé, quando se ergueu uma gritaria na taba. Saí para ver o que acontecia. Um homem vira coisas estranhas no mar. Por isso estava gesticulando, gritando, contando... O chefe da tribo armou os seus guerreiros. Fomos todos para a beira do mar.

O nosso espanto foi enorme. Abria-se na nossa frente a grande baía. Dentro dela, balançando-se de leve, estavam pousadas umas doze ou treze embarcações como nunca tínhamos visto em toda a nossa vida. Nós cortávamos os rios e o mar nas nossas igarás, barcos compridos e rasos, feitos em geral de troncos de árvores. Mas agora era diferente... Tratava-se de barcos altos, compridos, largos, todos cheios de mastros, cordas, panos, bandeiras Eu estava de boca aberta. Olhava muito admirado para as bandeiras coloridas que ondulavam ao vento no cordame dos navios. E só cem anos depois é que eu iria aprender que aquela era a frota portuguesa que descobria o Brasil! Naquela hora não existia Brasil, mas sim a nossa terra, por nós chamada Pindorama, — serra boa e
grande onde nossa tribo e muitas outras corriam, livres, acampando aqui e ali, caçando, pescando, dançando, guerreando...

O chefe tupinambá quis reunir seus homens para o combate. Mas o pajé, veio, olhou, sorriu e botou a mão no ombro do chefe:

— Não vai haver guerra. Eles vão nos divertir.

Não disse mais nada.

Assim como filhotes de ave que deixam a plumagem quente da mãe, muitos barcos se afastaram do maior dos navios e se aproximaram da praia. Os índios os esperaram em silêncio. Quando os barcos embicaram na areia, pudemos ver que eles estavam cheios de homens brancos. Traziam armas desconhecidas. Falavam língua que nenhum de nós entendia.

Um dos estrangeiros avançou para o nosso grupo. Tinha um grosso bigode preto. Sua espada brilhava ao sol. Começou a fazer gestos e caretas. Atrás dele seus soldados esperavam...

O pajé fez um gesto de paz e disse à nossa gente em tupi:

— Que será que esse macaco quer?

Risadas.

O homem do bigodão fez um sinal. Um dos soldados trouxe e colocou aos pés dele um grande cesto. O chefe branco se inclinou e tirou do cesto uma mancheia de colares de miçangas coloridas, espelhos e outras bugigangas para nós desconhecidas. Os índios começaram a ficar inquietos e a dar pulos. Só o pajé continuava a sorrir com indiferença.

Outras canoas se aproximavam da praia, vendo que a primeira fora recebida em boa paz.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Olivaldo Júnior (Carnaval em Trovas) I


Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 1 a 4

1 — NASCI

Nasci na taba duma tribo tupinambá. Sei que foi numa meia-noite clara. Fazia luar. Minha mãe viu que eu era magro e feio. Ficou triste mas não
disse nada. Meu pai resmungou:

— Filho fraco. Não presta para a guerra.

Tomou-me então nos seus braços fortes e saiu caminhando comigo para as bandas do mar. Ia cantando uma canção triste. De vez em quando gemia. Os caminhos estavam respingados do leite da lua. O urutau gemeu no mato escuro. Uma sombra rodopiou ligeira por entre as árvores.

O mar apareceu na nossa frente: grande, mole, barulhento, cheio de rebrilhos. Meu pai parou. Olhou primeiro para mim, depois para as ondas... Não teve coragem.

Voltou para a taba chorando. Minha mãe nos recebeu em silêncio.
2 — CRESCI

Passaram-se algumas luas. Uma tarde eu ia escanchado na cintura de minha mãe e o pajé da nossa tribo nos fez parar na frente de sua oca. Olhou para mim. Viu que eu era magro, feio e tristonho. O pajé era um homem muito engraçado. Como fazia troça de toda a gente e de todas as coisas, diziam que ele era irônico. Pois o pajé me examinou da cabeça aos pés, sorriu e disse:

“Tibicuera”.

O nome pegou. Toda a gente ficou me chamando Tibicuera. Tibicuera na nossa língua queria dizer cemitério. O nome sentava bem. Eu era magro e chorão.

Certa vez fiquei parado, olhando a minha sombra no chão. Era a sombra de um guri cabeçudo, de barriga enorme, como que inchada. As pernas eram finas como os juncos que crescem nos rios. Soltei um grito de tristeza. Na taba até pensaram que tinha sido gemido de urutau.

Uma tarde me debrucei sobre um córrego para matar a sede. Vi minha cara no espelho da água. Levei um susto. Ergui-me num pulo e saí a correr. Agarrei-me às pernas de minha mãe e choraminguei:

— Vi um peixe feio dentro d’água, mãe.

Cresci na caba, comendo terra, perseguindo as formigas e as minhocas. Aos cinco anos fiz minha primeira caçada de tucanos. Mas não me meti fundo no mato, porque tinha medo de encontrar Anhangá, Curupira e os outros espíritos maus.

À noite eu via as danças dos índios ao redor de uma grande fogueira. Os tupinambás pulavam, faziam roda, rebolavam as ancas, erguiam os braços,
batiam com os pés no chão. A fogueira tinha línguas de muitas cores. De dentro dela saltava um clarão que devorava a luz do luar, pintava de vermelho a cara dos guerreiros e ia abolir com o mato que estava dormindo.

Os guerreiros dançavam. Os tambores batucavam — bum-qui-ti-bum. bum-qui-ti-bum. bum, bum... Eu olhava para o céu. A lua parecia uma fogueira e as estrelas eram os índios dançando ao redor dela.

Um dia os tupinambás foram para a guerra. Os tambores soaram com raiva. 0 eco respondeu longe. O pajé reuniu o conselho. Os guerreiros prepararam suas armas. Dançaram os tacapes, os arcos, as frechas e as lanças. Depois os guerreiros entraram no mato. Só ficaram na taba os velhos, as mulheres e as crianças.

Comecei a sentir uma vontade muito grande de ficar homem para ir também à guerra.
3 — O MISTÉRIO DA CAVEIRAOs nossos guerreiros voltaram vitoriosos. Trouxeram muitos prisioneiros e o crânio do chefe inimigo. Fiquei olhando aquela cabeça sem corpo. Que cara horrível! Eu queria fechar os olhos ou olhar para outro lado, mas não podia. 0 crânio do chefe inimigo me atraía, me chamava, me prendia. . .

Naquela noite tive um pesadelo pavoroso. Sonhei que a cabeça sem corpo estava em cima de meu peito, pesando, procurando esmagar-me o coração. Acordei suando frio. Saí da minha oca. Silêncio na taba. A noite ia alta.

A lua minguante lá no céu parecia a caveira de algum grande chefe vencido. Os grilos cantavam. Saí a caminhar. Aonde era que eu ia? Alguma coisa me puxava...

Andei trocando pernas à toa por entre as ocas. Só depois de muito tempo é que compreendi o que queria. Eu tinha era vontade de pegar a caveira do chefe inimigo. Eu sabia que ela estava espetada num pau da caiçara perto da oca de nosso chefe. Fui...

Puxei o crânio branquinho com todo o cuidado. Sentei-me na areia da praia. E, sem ouvir o barulho do mar, nem o uivo do vento, nem os pios das aves da noite, revirei nas mãos a caveira e fiquei com os olhos pregados nela. Eu sentia um grande medo no coração. Queria decifrar o mistério daquela cabeça sem vida. Queria...

Que era aquilo? Cheguei a gritar para o céu. Que era aquilo?

O mar continuou rugindo, o vento uivando, as aves piando. Mas nada respondia à minha pergunta.

De repente senti um ímpeto... Peguei a caveira e joguei-a para o ar, como se a quisesse quebrar contra as pontas agudas das estrelas. A caveira brilhou ao luar e tornou a cair na areia. Póf!

Estendi-me ao lado dela e, cansado, dormi até o amanhecer.
4 — O MEU ENCONTRO COM ANHANGÁ

Eu gostava de visitar a oca do feiticeiro de nossa tribo. Havia lá dentro um ar de mistério, cobras se arrastando pelo chão, ervas colhidas em noites de lua cheia.

O pajé parecia andar sempre dormindo, olhos fechados, cara calma. Diziam que ele era mais velho que as árvores mais velhas do mato antigo. Sabia todos os segredos da vida. Tinha remédio para todos os males.

O pajé gostava de mim. Eu gostava do pajé. Ele me dizia:

— Ninguém pode com os espíritos maus. Anhangá entra no corpo dos guerreiros e os guerreiros ficam perdidos. Ai de quem encontrar Curupira no mato!

Eu escutava, com o coração batendo, os olhos muito arregalados.

Um dia, distraído a perseguir um bicho, me meti no matagal. Quando caí em mim, estava perdido. Comecei a caminhar sem rumo certo, procurando uma saída. Havia a meu redor troncos de árvores tão grossos e retorcidos que davam medo. Pareciam braços musculosos prontos para me esmagar. O sol mal entrava ali, porque a folhagem formava por cima da minha cabeça um toldo verde e espesso. Ouvi longe o ronco duma onça. Tremi. Um pássaro piou. Tremi de novo. Um graveto estalou. Tornei a tremer. Às vezes uma coisa mole e comprida passava ondulando pelo meio das ervas rasteiras. Cobra. Eu sentia calafrios.

De repente ouvi uma voz fina:
— Tibicuera!

Uma voz de caçoada. Parei. Quem seria? Olhei para os lados. Ninguém. Olhei para cima. Nada. Decerto tinha sido ilusão... Continuei a caminhar. Outro chamado:

— Tibicuera!

De repente um vulto cresceu diante de mim. Era uma figura esquisita, meio gente, meio bicho, preta como a noite, de olhos chispantes que pareciam duas fogueiras. Pulava num pé só, doidamente. Abri a boca num
espanto. Era Anhangá! Reuni toda a minha coragem e falei:

— Passa fora!

Anhangá soltou uma gargalhada: “Quá-quá-quá!”

O mato todo riu com ele. Riu de mim. Depois o diabo virou três cambalhotas no ar e começou a dançar com toda a velocidade em meu redor. Senti que meus olhos escureciam. Eu mal e mal ouvia a voz de Anhangá, berrando:

— Ninguém pode comigo! Ninguém me vence, nem Tupã!

Estendi os braços procurando agarrar alguma coisa. Foi quando Anhangá parou de rodopiar, recuou um pouco e pulou com o pé no ar. Senti uma dor muito forte no queixo e desmaiei.

Acordei na taba. Ouvi alguém perguntar:

— Foi Curupira?

Mal tive força para responder:

— Anhangá.

E comecei a chorar de raiva.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Érico Veríssimo (Sinopse: As Aventuras de Tibicuera)

As Aventuras de Tibicuera, romance infanto-juvenil de Erico Verissimo traz, de maneira leve e agradável, a história do Brasil para as crianças. Assim como fez em “O Tempo e o Vento”, Erico Verissimo baseou-se no que de melhor existia em pesquisa histórica, arqueológica e antropológica em sua época. Publicado pela primeira vez em 1937, o romance não envelheceu e ainda hoje é um bom lazer e uma forma agradável de estudar.

As aventuras de Tibicuera, contadas por ele próprio. O próprio protagonista, Tibicuera, um índio tupinambá da Bahia, nascido anos antes da chegada dos portugueses ao litoral brasileiro, narra sua fabulosa viagem através do tempo, que começou numa taba tupinambá, antes de 1500, e terminou num arranha-céu de Copacabana em 1942. Assim Erico Verissimo apresenta sua versão da história nacional, publicada em 1937 com o objetivo de fazer frente ao nacionalismo ufanista do Estado Novo. Logo no início, o herói recebe dois presentes do pajé de sua tribo: o apelido Tibicuera, que significa "cemitério" em sua língua, e o segredo da eterna mocidade.

Participa de episódios marcantes da história do Brasil, O índio está no litoral da Bahia quando Cabral aporta, em 1500. Participa da luta contra os franceses e os holandeses no Rio de Janeiro e em Pernambuco, e da defesa do Quilombo dos Palmares. As expedições dos bandeirantes ao interior do continente, as missões catequizadoras dos jesuítas, a escravidão, a chegada da família Imperial, a proclamação da Independência, a Guerra do Paraguai, a proclamação da república e seus sucessivos governos são contados de maneira sedutora às crianças. Talvez seu principal atrativo seja a empatia que gera em seu público alvo, já que há uma identificação com seu protagonista, o qual os pequenos leitores acompanham desde o dia de seu nascimento. Erico Verissimo, conhecido por sua maestria no trado com as palavras, não descuidou de detalhes enriquecedores da cativante narrativa, que emocionam e deixam, ao final de cada capítulo, a vontade de continuar até o fim.

Trata-se de uma mistura de fato e ficção que ensina, além de divertir, ao possibilitar que a história se desenrole - conforme diz Tibicuera - como "um romance de aventuras que se passa na Terra e tem como personagem principal a Humanidade.


ATENÇÃO
O livro será postado a partir de amanhã, são 67 capítulos em 17 dias.












Fontes:
http://resumos.netsaber.com.br/resumo-4063/as-aventuras-de-tibuicuera
https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12049

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Paulo R. O. Caruso (Cordel ao ocarense Lavoisier)

Lavoisier Freire Martins
O brasileiro é doutor
quando quer vencer na vida
a trajetória aguerrida
de um cabra do interior
eu vou lhe contar, leitor
um goleiro colossal
de fama internacional
cujo dom sempre convence
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

Em vinte e sete do mês
de março do já distante
setenta e quatro um vibrante
ocarense teve a vez
de nascer e bem o fez;
dum químico genial
veio o nome surreal -
digo-lhe antes de que pense
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

Lavoisier Freire Martins
é sim o nome completo
da parede de concreto
que atuou mesmo em confins
do mundo como em jardins
passeia-se ao natural
banho de sol ao final
de uma tarde fluminense!
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

Aos quatorze anos se viu
o goleiro começar
a carreira no Ceará
dois anos depois subiu
aos profissionais; surgiu
como reserva afinal
até chegar sem rival
a titular sem suspense
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

Começou pelo Sumov
do Ceará sua carreira
como estrela brasileira,
mas, como o tempo se move
e à família então comove,
ao Tio Sam foi o tal
atleta já num sinal
do progresso de quem vence
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

No Sumov quase sete
anos o cabra ficou
e dez títulos ganhou -
dois no juvenil esquete
e oito adulto - se repete
a fase experimental
da juventude em real
desabrochar que convence
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

Já no Tio Sam, do Rio,
cidade de Niterói,
vimos conquistar o herói
bicampeonato com brio
do estadual, mas o Tio
viu um gigante imortal
comprar o atleta afinal
- Vasco, um outro fluminense
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

Mais sete taças ganhou
o goleiro rei dos reis
de um metro e sessenta e seis,
que seu nome costurou
na história de quem lutou
outrora por trato igual
a todos no mais real
esporte que você pense!
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

O auge chegou de fato
no bravo Carlos Barbosa -
fase mesmo esplendorosa
vinte e três troféus no ato
nove anos de contrato
foi campeão mundial
na Espanha, o lar do rival,
o que a qualquer um convence
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

E até a paulista INTELLI
ele defendeu honroso
com o seu dom majestoso,
dando as mãos e toda a pele
às despesas, e então sele
dois troféus na especial
galeria oficial
do clube, leitor cearense!
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

Depois na Ulbra jogou,
onde venceu um torneio,
sendo que o reencontro veio,
e o goleiro enfim voltou
ao Carlos Barbosa e o gol
fechou novamente o tal
goleiro fundamental,
parando então sem suspense
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

Jogou pela seleção,
ganhou dezenove taças
nas mais variadas praças,
não lhe sobrando razão
pra chiar da boa mão
que Deus lhe deu afinal
carreira sensacional
ao Brasil e ao cearense
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

Mais dezenove homenagens
individuais levou
para casa e completou
sua sala, e traquinagens
quanto à altura - molecagens
nunca mais o mesmo ouviu,
pois à pátria ele serviu
com bravura não nonsense
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.

Por clubes ou seleção
tudo o cabra conquistou,
e com Vládia se casou
filhas nasceram então
dessa linda comunhão:
Larissa e Letícia - a tal
química sensacional
ao casal que em vida vence!
Lavoisier ocarense
nossa estrela do Futsal.
-------------------------------
2º lugar no IX Concurso Literário Poeta Zé Mitôca 2017 na categoria Cordel (tema: Lavoisier Ocarense, nossa estrela do Futsal) -

Fonte: O autor

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Nemésio Prata (Canto da Cotovia...)

De tanto ouvi-las cantar
nas matas do meu sertão
meu louvor eu quero dar
às cotovias... Irmão!

Todo dia, na janela
do meu quarto aparecia
com seu trinado "a capella"
uma bela cotovia.

Não tem som mais eloquente
de se ouvir que a cantoria,
bem cedinho, ao sol nascente,
da pequena cotovia!

Quando canta a cotovia,
anunciando a madrugada,
faz-lhe coro, em melodia,
na mata, a passarinhada!

O canto da cotovia
é de um encanto divino;
mistura dor e alegria...
e é isto que o faz supino!

Quem escuta a cotovia
cantar, nunca mais esquece
a pungente melodia
do seu trinado finesse!

Caçador, tome cuidado
pra não matar cotovia,
pois pra Deus isto é pecado:
não diga que não sabia!

Fontes: 
O Autor
Imagem: Portal São Francisco

Contos e Lendas do Mundo (Os Três Machados)

Um camponês deixou cair o machado no rio, e cheio de angústia, pôs-se a chorar.

A Fada das Águas, ouvindo-o chorar, teve pena dele e levou-lhe um machado de ouro, e então perguntou-lhe:

- É este o teu machado?

- Não, não é esse - respondeu o camponês.

A Fada das Águas mostrou-lhe um de prata.

- Não, não é esse - respondeu ainda o camponês.

Então a Fada das Águas trouxe-lhe o que ele tinha perdido no rio.

- É esse - disse o camponês.

Para compensar a honradez com que ele, o camponês, tinha procedido, a Fada das Águas ofereceu-lhe os machados de ouro e de prata.

No regresso, o camponês contou a sua estranha aventura aos camaradas. E um deles teve a ideia de imita-lo. Foi à  beira do rio, deixou cair o machado e pôs-se a chorar. A Fada das Águas apresentou-lhe um machado de ouro e perguntou-lhe:

- É este o teu machado?

O camponês, muito contente, respondeu:

- Sim, sim é o meu.

A Fada das Águas, para castigar a mentira, não lhe deu o de ouro, nem o de aço, que ficou a enferrujar no fundo do rio.

Fonte:
Contos de Encantar

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Eça de Queiroz (Ao Acaso)

Ainda ontem eu pensava que nós outros os peninsulares nem sempre tínhamos sido uma nação estreita, de pequenas tendências, sonolenta, chata, fria, burguesa, cheia de espantos e servilidades: e que este velho canto da Terra, cheio de árvores e de sol, tinha sido pátria forte, sã, viva, fecunda, formosa, aventureira, épica!

Ah!, foi há muito tempo.

Era naqueles tempos em que a Itália rodeava os papas severos; e olhavam para o céu as Virgens do Dominiquino. Por esse tempo ia pela Europa uma transformação social. Na Alemanha, Lutero entrava em Worms, com um canto batalhador, em nome do espírito, da alma. O papado ia morrer. Era necessário que todo o Sul se aliasse na cruzada católica. Toda a revolta de Lutero foi tomada ao principio por um daqueles lentos suspiros alemães, que se perdiam no coro profano, luminoso, embalador e forte do Sul. Viu-se depois que era a voz imensa da alma do Norte, toda uma humanidade austera e vital, que se movia, que vinha falar, pensar, examinar, revelar, sob o peso das teocracias romanas, dos papados, dos imperadores, das tiranias, dos sacerdócios.

Todo o Sul católico estremeceu; aquela revolta vinha imprevista e rápida; um dia a imperceptível e vasta humanidade, quando fosse uma madrugada para as suas adorações, podia encontrar a velha Roma deserta, e ao longe o catolicismo dissipando-se com um som hierático de salmos e um colorido vermelho de fogueiras.

Era necessário salvar o Sul.

A Itália tinha-se familiarizado com o cristianismo; tinha-se acostumado às santas macerações de Jesus, à transparência ascética das Virgens; os renunciamentos e os medos católicos já a não vergavam para o pó. Ela, cheia de sol e de sons e de forças, começava a olhar a Natureza, as grandes fecundidades. as vitalidades poderosas, as melodias moventes da carne. Os velhos deuses da Grécia tinham-se refugiado na alma italiana; ao princípio andavam no fundo, como recordação leve, transfigurados pela dor, encolhidos, soluçantes, miseráveis: depois lentamente foram aparecendo, espalhou-se um cheiro de ambrósia e um som de idílio; e os seus corpos são como astros, ocuparam por fim toda a alma italiana com coreias, derramações de néctares, palpitações de luz, divinos resplandecimentos de vida.

A Itália tinha-se afastado de Dante e das visões devoradoras do infinito; e os poucos que se curvavam sobre a Divina Comédia, não era para ver os castigos e os paraísos, mas para sentir as palpitações, que lá tinham ficado, da alma de Florença. A Itália seguia Petrarca: mas em Petrarca havia ainda uma religião e um misticismo – o amor: e a Laura dos Sonetos, como a Virgem mística, prendia nas humilhações religiosas todos os cavaleiros do Sul. A Itália então deixou Petrarca e rodeou Ariosto, o aventureiro, o jovial, o descrente, cavaleiro e escarnecedor.

Foi então que se ouviu aquela voz do Norte.

Todas as coortes católicas andavam dispersas, galhofeiras e namoradas, rindo com o Aretino, escarnecendo brutalmente com o poeta Pulei, guiadas por Lorenzo de Médicis e pelo cardeal Bembo, cantando às estrelas, adorando as Violantes, rindo de Fra Angelico, aclamando Ticiano, cobertas das sedas de Veneza, com o peito cheio da religião do
Sol, da música e das noite profanas.

Foi então que se ouviu a voz do Norte, o canto de Lutero. Todos os católicos correram instintivamente, rodearam os papas severos, Adriano VI, Clemente VIII, cantaram os salmos e as missas de Marcelo, cheias dos renunciamentos ascéticos, e. foram seguindo o Tasso, que voltava, apaixonado e religioso, para Dante e para Deus. E o papado continuou caminhando, sereno e terrível, deixando as sombras das masmorras de Galileno e de Campanella, e mais longe o fumo das fogueiras de Vanini e de Giordano Bruno. Tal era a luta do Norte e do Sul.

Ora durante essa luta das regiões e das pátrias, a Península, encolhida nas suas montanhas, cobertas de sol, violenta, sinistro cavaleiro de Deus, armava as caravelas e os galeões para as bandas desconhecidas das ilhas, dos continentes das Índias, dos cabos temerosos. Nós outros, os peninsulares, aparecíamos às outras nações como velhos lobos-do-mar, sempre em viagens, trigueiros, rijos como calabres, sãos como o Sol, ensurdecidos pelo clamor das marés, cheios de legendas e do cheiro das viagens, sobre os tombadilhos, e perdidos, ao longe, perdidos nas brumas terríveis.

De vez em quando desembarcava este povo, bradando que tinha descoberto um mundo, que lá tinham ficado infinitas multidões, negras, bestiais e nuas sob a bênção dos padres: ali mesmo sobre a areia, ao rumor das maresias, escrevia a história trágica da sua viagem, e uma madrugada, tomados das saudades do mar, partiam de novo, radiosos e bons, para a banda das Índias.

Era assim. Todos os anos, aquela multidão imensa de aventureiros embarcava nos galeões, entre os salmos e os coros, e eles iam silenciosos e flamejantes, por entre as sonoras ilimitações, os ventos aflitos e os tremores da água – para os nevoeiros inexplorados. Iam, em demanda de mundos, levando Deus dentro do peito, sob as constelações augustas, entre as tempestades, os rochedos e as correntes, de pé nos tombadilhos, descobertos às temperaturas, rodeando um Cristo, cantando os salmos ao coro dos furacões, todos reluzentes de armaduras e de divisas de amor, com a alma cheia de altivezas de batalhadores e de doçuras de apóstolos.

Iam como numa glória e em nome de Deus! E quando encontravam as hostilidades e os encrespamentos irados do elemento, as opressões infinitas dos ventos e das águas. erguiam as mãos como para uma excomunhão, e bradavam soberbos àqueles sopros e àquelas maresias os versículos do Evangelho Segundo S. João.

Era assim. Ora aqueles homens marinheiros e batalhadores eram historiadores e poetas. Escreviam os seus feitos. Escreviam-nos entre os assaltos e as tempestades, no convés das caravelas, nos cabos tormentosos, nas florestas sagradas da Índia sob as imobilidades cruas da luz: escreviam cobertos das espumas, enegrecidos pelos fumos, trêmulos das iras das batalhas. Por isso enchiam as suas crônicas e os seus poemas de uma estranha prodigalidade de força e de vida. E os seus diários de bordo tinham muitas vezes a simplicidade épica de Homero.

Mas eles também tinham amores, ciúmes, paternidades, paixões, lirismos interiores, e as saudades da pátria nasciam naquelas almas como grandes açucenas que se abrem dentro de um vaso e que o enchem. De noite, nos tombadilhos, embrulhados nos seus mantos esburacados, deitados entre as cordagens, aos embalos das marés, enquanto os pilotos silenciosos seguem com os olhos as viagens imensas das estrelas, e todo o mar enorme se amolece como um seio cansado, eles contavam em voz baixa, com as cabeças juntas, as histórias de amores, os torneios, as aventuras, as serenatas e a vida da pátria.

No meio daquela vida trágica da aventura eles tinham a alma cheia de amores, de legendas, de saudades, cheia da pátria. E escreviam poemas, cantatas, sonetos, farsas, comédias e elegias. E para vestirem o sentimento fecundo, forte, cheio do Sol e do mar tomavam a. forma popular.

Estavam longe da Europa, das plásticas da Itália, dos renascimentos gregos e romanos, das antigas formas rituais, das educações clássicas. Não conheciam isto. Mas lembravam-se sempre das cantigas da pátria, das endechas heroicas, dos romances populares, que eles tinham ouvido pelos campos, com que os velhos embalavam, que se cantam de noite às estrelas por Sevilha e por Granada e que os mendigos diziam pelas velhas pontes dos Godos e dos Árabes. Porque o povo na Península tinha uma poesia, sua exclusivamente, que cantava nos trabalhos, com que adormecia os filhos, em que escarnecia os alcaides e celebrava os heróis.

Fazia daquela poesia um uso sagrado: era a sua consolação, o grande leito misterioso onde adormecia as tristezas: era ali que procurava confortos, recompensas e as ideias da pátria. No Norte, a poesia popular foi a Invisível que levou pela mão os trovadores, filhos das glebas, até às lareiras dos senhores feudais: foi o primeiro suspiro de amor que os pobres poetas do povo, místicos e sensuais, soltavam para as brancas castelãs que entreviam nos torneios,cobertas de pedrarias: ou passando de noite, brancas, às estrelas, pelos altos terraços; ou entre as árvores, ao entardecer, quando as ogivas cheias do sol oblíquo estão flamejantes como mitras.

E as castelãs abriam os braços para os poetas tristes, indolentes e cheios do Paraíso. Admirável influência da poesia, que produziu pelo amor um renascimento social!

Mas a poesia da Península era unicamente do povo: era a epopeia austera do Cid, exterminador de mouros, e de Bernardo dei Carpio, exterminador de bárbaros. Na Península o povo estava sob uma condição especial; tinha uma importância no estado forte, fecunda e soberba: a Península tinha passado os primeiros anos da sua constituição nas lutas terríveis do forte Maomé e do Cristo místico; ora o popular da Península não era um servo, era um cristão: consagrado pelos batismos, era uma força individual, que impelia e dissolvia o elemento mourisco, sensual e poderoso. Ora, foi sob a forma popular que aqueles batalhadores e poetas, que vão hoje tomando a vaga atitude da legenda, escreveram os seus poemas, as suas cantatas, as suas comédias e os seus sonetos. Então toda a literatura peninsular tem uma originalidade profunda, independente de formas e ritos: a arte, o drama, a poesia saem das tradições populares, do clima, do Sol, de todas as vitalidades meridionais; isto quando pelo resto da Europa todas as nacionalidades esqueciam as suas tradições, a sua história, a sua velha alma, para se envolverem nas formas antigas. Era a Renascença. Então aparece o teatro espanhol original, cavalheiresco, enérgico, apaixonado, cheio de selvagens palpitações, de lances de religião: onde a cruz é uma personagem; onde falam lacaios, heróis, santos, ventos, galeões: todas as formas da vida confundidas; o riso, o choro, a ironia, a sátira, o madrigal: tal é a impressão geral.

Depois uma pintura mística e sensual: não é a espiritualização da alma, é antes a imortalização da carne: inspirada daquele misticismo espanhol, que sob a influência da Natureza, do clima, da política, da raça, parece mais cheio das trágicas iras de Jeová do que das doçuras de Jesus.

Depois uma música, como a do Dies Irae, obra dos terríveis dominicanos: um poema de morte; uma das maiores agonias da alma: música ascética e flamejante, onde a Natureza aparece, trágica e desgrenhada figura. Uma arte onde se torcem todas as chamas do Inferno e todas as pedrarias dos paraísos católicos, que parece uma luta trágica e cômica da vida e da morte: uma Igreja. cheia de renunciamentos místicos, mas onde o misticismos parece mais um desespero de não poder saciar-se dos bens do mundo do que uma aspiração a poder fartar a alma nas contemplações diversas: uma defesa do catolicismo trágica e apaixonada: um amor sublime pelos despotismos e pelos sacerdócios: confusão dos imperadores com os santos e das coroas de metal com as coroas de luz: uma vida super abundante: ascetismos ferozes e onde o sentimento mais aparente e o rancor.

Ao mesmo tempo uma austeridade monástica em tempo de guerra: caravelas que partem, sem rumo, sob as indicações das estrelas: quase, por vezes, uma reconciliação aparente do maometanismo e do cristianismo: uma paixão avara pelo dinheiro; o elemento da intriga que quer entrar na política, vindo substituir o elemento da força: combates cavalheirescos com a Europa vizinha: depois um sol ardente: um sangue exigente: uma carnação soberba: ao longe a América e as Índias como um paraíso de ouro, de metais e de soberanias. Tal é o aspecto mais geral da Espanha. nas vésperas da Renascença.

É dramática aquela vida.

Não admira por isso que a forma suprema da sua arte fosse o drama. Em Portugal não é este rigorosamente o fundo do gênio: há mais serenidade na força: o caráter português é mais parecido com o caráter italiano: os nossos sábios, os nossos viajantes, os nossos descobridores tinham mais a lucidez do tempo de Dante: as navegações são prudentes: por isso Portugal não resistiu nada à influência italiana. O renascimento da Antiguidade. a serenidade plástica, a frieza clássica aclimatam-se na Espanha mas com dor e com luta: foi necessário que a Espanha já não acreditasse na sua epopeia cavalheiresca e que Cervantes começasse a fazer trotar pelos caminhos o magro D. Quixote.

Em Portugal não: o gênio antigo aclimatou-se: transformou-se mesmo: perdeu o elemento vital e fecundo e ficou-lhe o elemento retórico.

Ó Arcádia! Ó moços pastoris e burgueses! Ó clássicos!

Fonte:
Eça de Queiroz. Prosas bárbaras.

Elben M. Lenz César (Oração de Um Escritor a Serviço de Deus)

(Pastor da igreja Presbiteriana de Viçosa e editor da revista Ultimato)

Deus, dá-me um bom português, sem vícios de linguagem e com palavras apropriadas.

Dá-me um estilo bonito, envolvente e agradável.

Dá-me substância, conteúdo, recado, mensagem. Algo que gere fé e convicção, conforto e esperança, arrependimento e transformação, alegria em meio à tristeza e consternação em meio à euforia. Filtra o que eu tenho para escrever e o que eu quero escrever. Ensina-me a construir em vez de destruir. Que a minha pena em tempo algum afaste alguém de ti.

Dá-me uma exegese cuidadosa de tua Palavra. Que eu não me sirva dela de modo irresponsável e superficial, mas que ela se sirva de mim. Dá-me uma mentalidade bíblica. Que eu veja a história numa perspectiva bíblica. Que eu veja o presente numa perspectiva bíblica. Que eu enxergue o futuro numa perspectiva bíblica.

Afasta de mim as segundas intenções, os propósitos duvidosos, as alfinetadas desnecessárias, a crítica mordaz. Livra-me do desamor, do preconceito, do equívoco, da injustiça. Segura em tuas mãos as rédeas do meu pensamento, do meu raciocínio, da minha escrita. Não me deixes escrever o que não é para ser escrito, nem deixar de escrever o que é para ser escrito. Não me deixes colocar bobagens no papel.

Dá-me discernimento espiritual para eu não misturar as coisas nem deixar de distinguir o bem do mal, o doce do amargo, a luz das trevas e o trigo do joio. Dá-me coragem e equilíbrio no trato de temas controvertidos e apaixonantes, e capacidade para enfrentar o que é complexo.

Dá-me a sabedoria que vem do alto, aquela que procede de ti, aquela que existe desde o princípio, aquela que mora com a prudência, aquela que vale mais que o ouro puro e a prata escolhida, aquela que tornaste disponível por meio da oração. Preciso muito de olhos que vejam, de ouvidos que ouçam e de coração que  ame. Quero ser escravo e instrumento da Verdade.

Santifica as minhas motivações. Que elas não sejam mercantilistas nem estejam a serviço do meu ego. Torna-me possuído da ideia de mistério, de prestação de serviço, de doação.

Livra-me da necessidade exagerada de ser reconhecido e elogiado. Livra-me da auto-avaliação mentirosa. Afasta de mim a arrogância e a presunção. Ensina-me a lidar com o sucesso eventual, que não provém apenas do meu esforço e de meus dons, mas, sobretudo, da tua bênção, que estou sempre buscando.

Cerca-me de críticos honestos, nem bajuladores nem preconceituosos. Cerca-me de leitores abençoados. Cerca-me de oração.

Ó Deus, eu preciso de inteligência e criatividade para te servir como escritor. Concede-me essa capacidade. Dá-me textos edificantes e de fácil entendimento. Que eu seja um escritor de sucesso. Para te servir, para honrar e glorificar o teu nome. 

Amém.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Eça de Queiroz (A Filha do Carcereiro)

A pobre rapariga tinha seis anos: era filha do carcereiro. Era loura, com grandes olhos lúcidos. Desde a madrugada ia pelos pátios, pelas enxovias ( cárcere térreo ou subterrâneo, com pouca luz e insalubre), pelas gradarias, leve como uma seda e sã como um sol.

Levava braçadas de ervas aos presos e clematites (planta).

Na cadeia chamavam-lhe a Cotovia. Tinha pombas. Tinha um riso transparente e bom, e quando os miseráveis sujos e chorosos iam para os degredos – ela cantarolava entre eles, serena e gloriosa. Cresceu. A mãe era lavadeira e morreu no rio, entre os musgos e os canaviais. O pai teve um mal e ficou entrevado.

Vieram os Invernos. Ela lidava. Cuidava dos irmãos pequenos. Lavava ao sol… Costurava à lareira sonolenta. De madrugada ia atirar grãos e migalhas às pombas: depois vinha dar ao pai engelhado, triste, doloroso, as sopas e o caldo.

Um dia entrou na cadeia um bêbado, um covarde, um assassino, que tinha espancado o pai. Era um lindo rapaz, branco com um corpo delgado. A rapariga viu-o, e fugiu com ele de noite embrulhada num cobertor.

Todo o dia seguinte, as crianças não comeram. O pai gritou, chorou e arrastou-se até à lareira. Ninguém. As pombas voavam à tarde inquietas, fugitivas e medrosas. O pai ficou toda a noite ao pé da lareira a roer um bocado de pão duro. No outro dia ainda as crianças ficaram sem comer. Todas as pombas fugiram. O pai arrastou-se até o casebre; e esfomeado, batia de encontro à porta. Por fim vieram. Passados dias. Havia pela vizinhança um cheiro de podridão. As crianças tinham morrido; o pai tinha morrido. Tinha sido a fome, a míngua, a sede, o frio.

A que fugiu é hoje velha. Embebeda-se com aguardente: e quando na taberna as esfarrapadas e os miseráveis lhe falam nesta história, ela diz com voz rouca:
– Ai que noite aquela, filhas! Ele tinha um modo de dar beijos!

Fonte:
Eça de Queiroz. Prosas bárbaras.

Academia Brasileira de Letras (Conferências de Março)

 
 

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Paulo Roberto de Oliveira Caruso (Buquê de Trovas)

1
A chave ao meu coração
só tu tens; não tenho medo.
Temos tão rica união
que eu nunca mudo o segredo!
2
As partidas de xadrez
têm decerto a sua essência.
Jogador tem sua vez;
é preciso paciência!
3
Certa vez ouvi um papo.
Um machista disse: “Eureca!
Homem não engole sapo...
Ele come perereca!”
4
Dando-se as mãos a cidade
com zeladora vigília
mostra solidariedade
virando grande família.
5
Deus construiu este mundo
com suor do seu trabalho.
Seu esforço foi profundo.
Assim nos nasceu o orvalho!
6
Fogueira em festa junina...
Eu me queimei um bocado!
Na quadrilha eu vi menina
e saí de lá casado!
7
Foto de bonita dama
atraiu Seu Juvenal.
Viu ser dum homem a trama
no tal mundo virtual!
8
Horas por dia eu passei
no tal mundo virtual,
até que um dia paguei
uma conta bem real!
9
João golpes praticou
no tal mundo virtual,
até que um dia encarou
um xilindró bem real!
10
Lendo sobre camisinha,
Joaquim logo gargalhou.
Em peça pequenininha
de agasalho ele pensou!
11
Menina virou rapaz
e rapaz virou menina...
Hoje muito isso se faz
não só em festa junina...
12
Meu coração suburbano
tu conheces muito bem!
Tem muito do amor humano
que preenche o teu também!
13
No ano de mil e quinhentos,
dia vinte e dois de abril,
Portugal, com ricos ventos,
arrecadou o Brasil.
14
Nosso amor é o sagrado.
O que revela união.
Ele sabe ser gerado
com paixão e compaixão.
15
O poeta Zé Mitôca
é mesmo "o cara" de Ocara!
Versos mil de sua boca
tornaram-se joia rara!
16
O político safado
faz o povo de capacho.
Da panela do coitado
raspa até o fim do tacho!
17
O silêncio é uma virtude,
disso todo mundo sabe.
Cala-te, não sendo rude,
quando falar não te cabe.
18
Para ser lugar perfeito
nossa querida cidade,
requer sempre um bom prefeito
praticando a honestidade.
19
Perguntou Seu Dorival
“o que é que a baiana tem?”
Não somente em carnaval,
rebola como ninguém!
20
Que dolorosa ironia:
a terra muito pisamos,
mas a morte chega um dia...
E sob a terra ficamos!
21
Quem diria? A sementinha
pela mamãe recebida
gera uma pessoazinha
regada a leite e querida!
22
Se mantemos o decoro,
o “eu” se doa pelo “nós”,
assim nasce o melhor coro,
parecendo uma só voz.
23
Se pregarmos a bondade,
o sagrado nós veremos:
em vez de fria cidade,
grande família teremos!




24
Teus olhos da cor da terra
são meu solo, são meu chão.
É neles dois que se encerra
minha antiga solidão!
25
Toda saudade, de fato,
traz o início dum sofrer.
Sabemos que ela num ato
vem do fim de um conviver.
26
Um enfermeiro embriagado
susto deu-me a injeção.
Meu braço foi preparado
com bafo, sem algodão.
27
Um soneto ia eu tentar,
mas a preguiça chegou.
Antes de os olhos pregar,
esta trova me sobrou.

Paulo R. O. Caruso (1975)



   Paulo Roberto de Oliveira Caruso nasceu no Rio de Janeiro/RJ, em 1975. Servidor público no estado do Rio de Janeiro, administrador, advogado (especialista em direito do trabalho e processo do trabalho) e estudante de Letras, sendo todos os três cursos na Universidade Federal Fluminense. Revisor de livros. Palestrante sobre o mal-do-século e outros temas.
     Sonetista; trovador; haikaísta (ao estilo oriental, ou seja, sempre com rimas); indrisista; acrosticista; aldravianista; glosador; lirista; poeta de versos livres; prosador poético; cordelista; contista; cronista e redator.
     É o atual Presidente da Academia Brasileira de Trova (2016 a 2019) e membro de outras academias de letras e artes no Brasil e no Exterior, como:
- Presidente da Academia Brasileira de Trova;
- Vice-Presidente da Academia Evangélica de Ciências, Artes e Letras Do Brasil;
- Vice-Presidente da Academia Estratégica Militar de Letras do Brasil;
- Secretário de Diplomacia e Comunicação Da Academia De Letras Do Brasil;
- Embaixador da Academia de Letras do Brasil – Seccional Minas Gerais no Rio De Janeiro;

Acadêmico Correspondente de:
Academia de Letras y Artes de Valparaiso (Chile), Academia de Letras e Artes de Cabo Frio (RJ), Academia de Belas Artes, Ciências e Letras de Niterói (RJ), Academia de Letras de Teófilo Otoni (MG), Academia de Letras e Artes de Fortaleza (CE), Academia de Letras de Goiás (GO), Academia  de Ciências, Letras e Artes de Vitória (ES), International Writers Association (Ohio-EUA), Academia de Letras do Brasil (seccional Suíça), Núcleo de Letras y Artes de Buenos Aires (Buenos Aires, ARG), Núcleo Académico de Lisboa (Lisboa-PORT), Academia de Letras do Brasil (seccional Araraquara-SP), Academia de Letras do Brasil (seccional Salvador-BA).

Honrarias:
- Doutor Honoris Causa pela Academia de Letras do Brasil/Seccional Minas Gerais;
- Catedrático de Honra em Direito da Academia de Letras do Brasil;
- Grão Colar da Academia de Letras Do Brasil/Seccional Minas Gerais;
- Mérito Literário do Centro de Expressões Culturais Museu Militar Conde de Linhares;
– Mérito Cultural da APALA – Academia Pan-Americana de Letras e Artes)

- Autor de 27 títulos de livretos artesanais;
- Participante de 69 antologias impressas e de 92 antologias virtuais alheias, além de concursos literários;
- Organizador de 44 concursos literários, 2 antologias impressas e 10 antologias virtuais;
– Recebeu 146 prêmios literários (troféus, medalhas, certificados, orelhas e apresentações de livros);
- Membro de júris literários de academias e júris literários de concursos próprios.
     Possui o site www.reinodosconcursos.com.br , com dezenas de concursos literários e seus resultados, entrevistas com diversos literatos.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Lucia Constantino (Um Sonho de Paz Somente)


Um sonho de paz somente,
além de toda ilusão.
Que o Mestre do Amor estivesse presente
para nos ratificar como irmãos.

Um sonho de paz somente,
que o pão não dormisse sobre a pedra
que a seiva não fosse o sangue
dos inocentes sobre a terra.

Um sonho de paz somente,
com asas de condor
que lá das grandes alturas
ascendesse o olhar do amor.

Um sonho que não tem ninho.
Um sonho que não tem mãos.
Apenas um sonho do eu divino,
no sono da imensidão.

Prof. Garcia (Reflexão em Trovas)

A solidão - dobra quando,
no fim da tarde, eu medito,
ao ver o Sol se apagando
na solidão do infinito!

Beijaste a flor ressequida
e a rosa mudou de cor;
teu beijo de amor, querida,
mudou a vida da flor!

De uma roseira, tão pobre,
que lindo gesto o da flor:
Perfuma a casa do nobre,
enche a do pobre de amor!

Em minhas preces pequenas,
faço um pedido, e afinal...
Quero apenas Pai, apenas,
ser feliz neste Natal!

Enquanto a noite se aninha,
a saudade me seduz
e a tarde, bela e sozinha,
enche os meus versos de luz!

Escravo, do teu assédio,
refém de tua ternura,
sofro, por não ter remédio,
para um mal que não tem cura!

Esse orgulho que te ronda,
que entulha o teu peito aflito;
impede que o amor responda
aos apelos do teu grito!

Hoje, eu despertei cantando,
molhando os pés no mormaço
das nuvens soltas brincando
tecendo rendas no espaço!

Lembranças, são pergaminhos,
onde o tempo, por maldade,
vai rabiscando os caminhos
dos perfis da mocidade!

Mãe! um temor me assedia,
nesta idade que me alcança:
É o de esquecer, que algum dia,
em teus braços fui criança!

Não temo o tempo que avança!
Envelhecer, na verdade...
É voltar a ser criança
no fim da terceira idade!

O cego percebe o filho,
pelo cheiro do suor!...
Por trás, desse olhar, sem brilho,
brilha um olhar, muito maior!

O poeta encontra meios,
de às vezes, mesmo sozinho...
Ser feliz, sem ter receios
da solidão do seu ninho!

Por descartar teus conselhos,
mas por teu beijo roubado...
Beijo os teus lábios vermelhos
no guardanapo encharcado!

Por mais que outro alguém te ofenda,
mantém firme a compostura,
que a mão, do tempo, remenda
a cicatriz da amargura!

Quando a tarde me entristece,
roubando a luz da razão,
pinta no ocaso uma prece
com versos de solidão!

Rondando o circo do sonho,
num suspiro derradeiro,
velho, o palhaço tristonho,
diz adeus ao picadeiro!

Semeia filho, a semente
do amor, que te dei um dia!...
Que um neto meu, certamente,
há de colher alegria!

Se o remorso, se agasalha,
num coração descontente...
Sem gume, é velha navalha
cortando o peito da gente!

Somos pobres passarinhos,
que a vida, em seus rituais,
dá-nos os mesmos caminhos
com destinos desiguais!

Tempo!... Ó tu, que me devoras,
não sejas ingrato assim!...
Se és tu, meu pastor das horas,
prendas as horas por mim!

Um sabiá, na janela,
toda tarde canta um hino,
regendo a canção mais bela
das tardes do meu destino!