segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Laé de Souza (E se o mundo acabasse)

Aquele dia foi de alvoroço. Cruzei com um amigo acostumado à prosa, estava numa correria e recusou-se a conversar, alegando que não podia perder tempo, pois tinha algumas coisas a concluir antes de começar a escurecer. Espantou-se com a minha ignorância de que o mundo estava prestes a acabar. (Preciso encontrá-lo para ver o que tanto não podia ficar sem fazer). 

Por preguiça, não escrevi naquele momento. Se acabasse mesmo, seria desperdício de tempo. Mas entre a dúvida de ficar no meu canto a rezar e sair a indagar e a observar, venceu a curiosidade.

Uma mulher que tinha um caso antigo com um vizinho, convenceu-o a se levantar bem cedo e, sem dar satisfação aos cônjuges, dirigiram-se a um jardim e com olhos fixos no firmamento, de mãos dadas, esperavam a chegada do Senhor.

Uns doaram bens numa atitude desesperada da busca do paraíso. Juliano vendeu esperanças e garantiu lugar privilegiado a quem tinha posses. Aos de menos recursos, por preço camarada, um lugar mais na frente da fila. E faturou um troco legal.

Mães-de-santo cobraram uma fortuna para prorrogar o fim, O pastor Queixada me garantiu que o mundo só não acabou como previsto por sua intercessão e para que desse tempo a alguns irmãos de se arrependerem. Mas me avisou que não vai dar para segurar por muito tempo, portanto, desapeguem-se dos seus bens.

Muitos rezaram, confessaram e se arrependeram.

Minha filha me fez perguntas que nunca ousara. Minha mulher me questionou umas coisas esquisitas, que prometi responder assim que escutasse a primeira trombeta tocar e visse os anjos descendo do céu.

Gumercindo não despregava os olhos do relógio e de nada resolveram os calmantes. Chorava que dava dó, pedia perdão à mulher por falhas e contou coisas que só se conta na hora da morte, e morte certa mesmo.

Chiquinho abriu as gaiolas, soltou todos os pássaros e se escondeu debaixo da cama. Roberval, devedor contumaz, fez mais compras e mandou que todos os credores viessem no dia seguinte. MAS NÃO ACABOU!

Assim, por culpa de um tal de Nostradamus, o que ia até mais ou menos se encrencou. A mulher do Gumercindo retirou o perdão e foi para a casa da mãe com as crianças, não sem antes dar uma bofetada no sujeito e ameaçá-lo de proibir visitas aos filhos.

Chiquinho chora a falta dos pássaros e Roberval se esconde dos cobradores. A mulher e o vizinho tiveram que juntar as trouxas e fugir. Eu ando me esquivando da minha mulher, mas sinto que a qualquer hora ela vai me pegar de jeito e vou ter que responder àquela pergunta, e aí, não sei não… Por tudo isso, Manelão interrogou-se:

"Ele erra na profecia e nóis é que se ferra?”

Fonte: Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor.

O nosso português de cada dia (Expressões) = 2

COMER O FÍGADO DE ALGUÉM

Punir severamente alguém por algo que não deveria ter sido feito.

A expressão tem origem mitológica na punição de Prometeu. Diz a lenda que Prometeu, filho do titã Jápeto, era primo de Zeus, o mais importante deus do Panteão helénico, que, por sua vez, era filho de Cronos.

Zeus era rei dos homens e dos deuses, um deus que reinava nas alturas luminosas do céu e foi aviltado e enganado por Prometeu duas vezes: a primeira, quando dividiu um boi dando carnes e vísceras para os homens e ossos e banha ao deus supremo; a segunda, quando roubou sementes de fogo do sol ou da forja de Héfesto e deu de presente aos humanos. O pai dos deuses resolveu se vingar dele e dos homens, que eram seus protegidos: para os homens enviou Pandora com seus vícios (vide caixa de Pandora); Prometeu, por sua vez, foi acorrentado no alto do Cáucaso e tinha seu fígado devorado por uma águia durante o dia, porém, à noite a víscera se refazia para ser novamente devorada pelo pássaro no dia seguinte.

COMER GRAMA PELA RAIZ

Morrer, falecer.

A expressão jocosa para significar pessoa morta nasceu da observação da posição em que o morto se encontra embaixo da terra, com a boca voltada para cima e, portanto, teoricamente, de encontro às raízes da grama que cresceria por cima de seu túmulo.

COMPLICAÇÃO

A palavra que todos conhecemos tem a mesma origem de explicação, duplicação, etc.

Plicas, em latim quer dizer dobras, portanto quem está complicando, está colocando dobras em alguma coisa. Ao contrário se estiver explicando, estará retirando as tais dobras e facilitando a vida de quem, porventura, entrar em contato com o objeto sem as dobras.

Por isso, chamamos também as saias ou blusas que possuem pequenas dobras em sequência, de plissadas.

CÂNONE

Modelo, maneira de agir, padrão. É comum ouvir as pessoas dizerem que algo serve de cânone.

A expressão é muito antiga e surgiu ao acaso. O escultor Polyclitus, por volta do ano 450 a. C, esculpiu a estátua de um homem com uma lança e uma amazona ferida, suas proporções eram tão perfeitas e simétricas, que seu autor a chamou de cânone, e assim permaneceu influenciando a arte até o nascimento das vanguardas.

CANTEIRO DE OBRAS

Hoje o termo é empregado para designar qualquer espaço definido para a realização de trabalhos manuais, mais associados, evidentemente, à construção civil.

Muitos pensam que a expressão deriva do ato de cantar enquanto se trabalha. O termo, no entanto, é mais preciso, quer dizer pedreiro: de canto [pedra] + o sufixo -eiro. Canteiro, portanto, diria respeito ao operário que trabalha em cantaria, isto é, com pedras, à época da criação do termo, quebrando-as. Canteiro, portanto, seria sinônimo de pedreiro, na sua origem.

Fonte: Nailor Marques Jr. Será o Benedito?: Dicionário de origens de expressões. Maringá/PR: Liceu, 2002.

Recordando Velhas Canções (Caminhemos)


(samba-canção, 1948)

Compositor: Herivelto Martins

Não, eu não posso lembrar que te amei
Não, eu preciso esquecer que sofri
Faça de conta que o tempo passou
E que tudo entre nós terminou
E que a vida não continuou pra nós dois
Caminhemos, talvez nos vejamos depois

Vida comprida, estrada alongada
Parto à procura de alguém
Ou à procura de nada...
Vou indo, caminhando
Sem saber onde chegar
Quem sabe na volta
Te encontre no mesmo lugar
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Caminhos Separados: A Dor e a Esperança em 'Caminhemos'
A música 'Caminhemos', de Herivelto Martins, é uma obra que aborda a dor da separação e a necessidade de seguir em frente, mesmo diante do sofrimento. A letra começa com uma negação enfática: 'Não, eu não posso lembrar que te amei / Não, eu preciso esquecer que sofri'. Essa negação reflete a luta interna do eu lírico para superar um amor passado e a dor associada a ele. A repetição do 'não' enfatiza a dificuldade de esquecer e a necessidade de se distanciar emocionalmente.

A canção segue com uma tentativa de racionalização: 'Faça de conta que o tempo passou / E que tudo entre nós terminou'. Aqui, o eu lírico sugere uma espécie de autoengano como mecanismo de defesa, fingindo que o tempo curou todas as feridas e que a relação chegou ao fim de forma natural. No entanto, a melancolia persiste, evidenciada pela frase 'E que a vida não continuou pra nós dois', indicando que, apesar dos esforços, a vida sem o outro ainda parece incompleta.

O refrão 'Caminhemos, talvez nos vejamos depois' traz uma mistura de resignação e esperança. A ideia de caminhar simboliza a jornada da vida, cheia de incertezas e possibilidades. A estrada longa e a busca por algo ou alguém ('Parto à procura de alguém / Ou à procura de nada...') refletem a incerteza do futuro e a necessidade de seguir em frente, mesmo sem um destino claro. A última estrofe, 'Quem sabe na volta / Te encontre no mesmo lugar', sugere uma esperança tênue de reencontro, mas também a aceitação de que a vida pode seguir caminhos diferentes.

"Caminhemos não tem história", declara Herivelto Martins, "é o reflexo de mil histórias, de um estado de espírito que eu vivia e o público desconhecia". Na realidade, atravessando na época um período conturbado de sua vida sentimental, o compositor extravasava em sua música os problemas que o afligiam.

Assim, não foi por acaso que saíram em sequência "Segredo", "Caminhemos", "Cabelos brancos" e, por fim, as composições que marcaram a polêmica de sua separação da mulher, Dalva de Oliveira. Lançado em novembro de 47, "Caminhemos" firmou-se na preferência popular após o carnaval do ano seguinte.
Fontes: 

domingo, 25 de agosto de 2024

Therezinha Dieguez Brisolla (Trov’ Humor) 37

 

Professor Garcia (Trovas em preto e branco)

                                   

1
A dor que se intensifica
e amedronta os dias meus,
é pensar na dor que fica
depois da palavra adeus!
2
A liberdade do poeta,
está num verso... Num grito...
No equilíbrio se completa,
vencendo o próprio infinito!
3
A musa chega e me inspira,
num delírio encantador...
Afina as cordas da lira
e enche o meu mundo de amor!
4
A solidão me angustia
e à noite aumenta o meu drama,
vendo a cadeira vazia
que a tua ausência reclama!
5
Cada tropeço me ensina
que a vida é eterno sonhar.
Na vida nada termina,
muda de forma e lugar.
6
Cadeira velha!...Esquecida,
sem dono e sem mais ninguém...
Só a saudade atrevida
reclama a ausência de alguém!
7
Dai-nos ó, Pai, a razão,
desta santa imagem tua…
e que eu reparta o meu pão,
com quem não tem pão na rua!!!
8
Esta aliança que um dia,
já guardou nossos segredos;
hoje guarda a nostalgia
das digitais de outros dedos!
9
Já pronta e de vela içada
tremulando de ansiedade,
vai para o mar a jangada
carregada de saudade!
10
Morre a flor na flor da idade,
padece a planta de dor;
a ausência deixa saudade,
até na morte da flor!
11
Ninguém é pedra polida,
se não mudar de conduta;
pois, a pedreira da vida
é feita de pedra bruta!
12
O mundo é roda gigante,
girando sempre a girar,
e eu sou passageiro errante
procurando meu lugar!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

SOBRE AS TROVAS DO PROFESSOR GARCIA
por José Feldman

As "Trovas do Professor Garcia" revelam uma rica reflexão sobre sentimentos universais, como a dor, a saudade, a liberdade e a busca por significado na vida. Cada estrofe aborda temas profundos e humanos, utilizando imagens poéticas para transmitir emoções.

TEMAS PRINCIPAIS

Saudade e Ausência: Muitas trovas expressam a dor da ausência, seja de uma pessoa amada ou de momentos passados, como na cadeira vazia e na aliança que guarda nostalgia.

Liberdade e Criatividade: A liberdade do poeta é um tema recorrente, mostrando como a arte e a expressão criativa são formas de superar limites e encontrar significado.

Reflexão sobre a Vida: Há uma contemplação sobre o aprendizado que vem com as dificuldades e a transitoriedade da vida, sugerindo que nada é permanente.

Solidão e Conexão: A solidão é uma constante, mas também é um espaço onde a conexão com a própria essência e com a arte pode florescer.

AS TROVAS, UMA A UMA

1. A dor que se intensifica
Reflete a dor emocional que acompanha a despedida. A repetição da palavra "dor" enfatiza a profundidade do sofrimento. A ideia de que a dor persiste após o adeus sugere que as memórias são difíceis de esquecer.

2. A liberdade do poeta
Esta trova destaca a relação entre a criação poética e a liberdade. O verso e o grito representam a expressão autêntica. A conclusão sobre vencer o infinito sugere que a arte transcende limitações.

3. A musa chega e me inspira
A musa é uma figura clássica que simboliza a inspiração. A metáfora da lira afina as emoções, indicando que a arte é um meio de conectar-se ao amor e à beleza.

4. A solidão me angustia
A solidão é personificada através da cadeira vazia, simbolizando a presença da ausência. Essa imagem é poderosa, evocando tristeza e uma forte conexão emocional com quem foi perdido.

5. Cada tropeço me ensina
Reflete a ideia de que cada dificuldade é uma oportunidade de aprendizado. A vida como um eterno sonhar sugere que as transformações são constantes e necessárias.

6. Cadeira velha!... Esquecida
A cadeira representa a solidão e a saudade. A descrição de uma cadeira sem dono evoca a perda e a nostalgia, mostrando como objetos podem carregar memórias.

7. Dai-nos ó, Pai, a razão
Uma invocação à divindade, pedindo compreensão e compaixão. A imagem de repartir o pão enfatiza a importância da solidariedade e da empatia em tempos de necessidade.

8. Esta aliança que um dia
A aliança simboliza promessas e segredos compartilhados. A mudança de quem toca a aliança indica a passagem do tempo e o que foi perdido, trazendo um tom melancólico.

9. Já pronta e de vela içada
A jangada simboliza a jornada emocional. Carregada de saudade, sugere que as lembranças e sentimentos ainda influenciam o presente, mesmo em novos começos.

10. Morre a flor na flor da idade
A morte da flor na juventude é uma metáfora para a efemeridade da vida. A ausência deixa saudade, mostrando que até a beleza tem um fim, mas deixa lembranças.

11. Ninguém é pedra polida
A metáfora da pedra sugere que o crescimento pessoal exige mudança e adaptação. A "pedreira da vida" simboliza os desafios que moldam quem somos.

12. O mundo é roda gigante
A roda gigante representa a ciclicalidade da vida e a busca incessante por um lugar no mundo. O "passageiro errante" reflete a incerteza e a busca por identidade e pertencimento.

ESTRUTURA POÉTICA
Rimas e Ritmo: As trovas possuem uma musicalidade que facilita a leitura e a memorização. Isso é típico da poesia popular, tornando-as acessíveis a um público amplo.

Imagens Visuais: As metáforas e imagens, como a cadeira vazia e a jangada, criam cenários que evocam emoções profundas. Essas imagens tornam as experiências universais e relatáveis.

IMPACTO 
As trovas têm um poder emocional significativo. Ao abordar temas como dor, saudade e liberdade, elas podem tocar o coração dos leitores, provocando reflexão e empatia. A simplicidade das palavras contrasta com a profundidade dos sentimentos, permitindo uma conexão imediata.

CONCLUSÃO
As trovas se destacam pela sua simplicidade, musicalidade e conexão emocional. Elas servem como uma ponte entre a tradição poética e a experiência cotidiana, fazendo com que sentimentos universais sejam facilmente compartilhados e apreciados. Enquanto outros estilos podem exigir uma leitura mais atenta ou interpretação, as trovas convidam à reflexão de maneira direta e acessível.

O uso de trovas é comum em várias culturas, onde a poesia é utilizada para expressar sentimentos e contar histórias de forma concisa e impactante.

As "Trovas do Professor Garcia" não são apenas poemas; são reflexões sobre a condição humana. Elas capturam a essência da vida, com suas dores e alegrias, e convidam o leitor a se conectar com suas próprias experiências.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. vol.1. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Aparecido Raimundo de Souza (Patético como susto improvisado)

O MÉDICO ESMIUÇOU, com seus óculos de grau fundo de garrafa, todos os exames que tinha diante de si. Em seguida, bombardeou sem dó nem piedade, seu pobre cliente. Ou melhor, soltou a notícia fatal em cima dele, sem prévio aviso. Gustavo Pereira da Costa iria, de fato, morrer. Dentro de dois meses, no máximo três. Não passaria disso. Assim que soube do triste pesadelo, o infeliz tratou de ir para o aconchego familiar e esperar pela hora derradeira. Dois meses –, ou três – quem sabe antes... que diferença faria agora? Ao menos, um consolo. Talvez o melhor deles: morreria em paz, ao lado da esposa carinhosa e prestativa e das filhas, a quem amava muito. Para não ser visto chegando de ônibus, tomou um Uber e ordenou ao motorista que tocasse direto para seu lar doce lar. 

Ao chegar no bairro onde morava, não parou no bar costumeiro do Salaminho, nem na farmácia do seu primo Pedro. Tampouco na barbearia do Bento, como sempre fazia ao retornar do trabalho. Também não falou com ninguém. Não telefonou para os conhecidos. A lista se fazia enorme. Achou melhor não alardear o resto dos parentes, nem incomodar os amigos de todos os dias. Naquele momento queria somente a paz e a tranquilidade. Saborear o aconchego da sua poltrona na sala, onde sentava todas as tardes para ver televisão e assistir aos desenhos do Pica-Pau, do Maguila, da Pantera Cor-de-Rosa, do Tom e Jerry e tantos outros. Por puro azar, Gustavo se esqueceu de um vizinho. Um cara realmente chato e pegajoso, que passava os dias rondando do boteco ao supermercado promovendo um alarido infame com os infortúnios alheios. 

Era o Malaquias, conhecido na rua como o “Fofoqueiro Oficial.” De fato, logo que o táxi entrou na rua principal, a primeira pessoa que o Gustavo avistou na calçada, encostado num poste, o próprio, em carne e osso. Aliás, mais osso que carne. Por sua vez, assim que identificou o carro de aluguel chegando, e, dentro dele, o velho Gustavo, não esperou a criatura, pelo menos pagar a corrida. Disparou até o portão da casa do moribundo e assim que ele entrou, bateu palmas. Precisava colher detalhes. Sabia que naquela manhã o “amigo” havia ido ao médico tomar conhecimento dos resultados da bateria de exames que fizera durante toda a semana. O “Leva e traz” também tinha conhecimento que Gustavo corria sério risco de virar defunto. Esse fato, em especial, o perturbava. 

Não que se interessasse pela doença do vizinho, mas a consequência do seu mal. Melhor dito, que tipo de moléstia ele contraíra que causava o óbito nas vítimas tão rápido? Necessitava, pois, colher informações fresquinhas e detalhadas dos acontecimentos mais recentes para passar adiante. Deu azar. No lugar dele, veio atender, a Sulamita, a filha mais velha, e a mais mal-humorada. Puxara o gênio da mãe, dona Soraya. Não levava desaforos, nem mandava recados. Se fazia curta e grossa a beldade. Quando assomou na varanda e se deparou com o sujeito, fez cara fechada e de poucos amigos. 

— Sulinha, meus pêsames...

— O que foi que disse, desgraçado?

Sulamita se espantou. Não para menos, evidentemente:

— Pêsames?

— É. Fiquei sabendo, agorinha mesmo, no bar do Salaminho, que seu pai está mal e segundo comentam, vai morrer. 
Como o vi descendo de um táxi aqui, sem falar com ninguém e ao menos parar no bar, queria saber detalhes.

— Papai realmente está mal. Mas quanto a morrer, ninguém sabe o dia. Só Deus poderia precisar a hora derradeira. Pelo que aprendi, desde que me entendo por gente, só se dá os pêsames a alguém, principalmente aos conhecidos, depois que o “de cujus” estiver abraçado com um caixão e a fuça virada para o cemitério. 

Sulamita tomou fôlego e observou, a carranca cada vez mais fechada: 

— Meu pai, graças ao Eterno, continua firme e forte. Nesse momento está sentado na mesa da cozinha batendo um prato cheio de comida enquanto conversa com a mamãe e minhas outras irmãs. Por acaso o senhor está agourando o meu velho?  Saiba que o amigo poderá embarcar primeiro. Eu, particularmente, adoraria chorar e jogar terra no seu buraco.

— Só queria ser gentil, minha filha.

— Não foi. E não sou sua filha.

— Perdão.

— Nada a perdoar. 

Sulamita bem que teve vontade mandar o fofoqueiro para os cafundós do Judas, mas se conteve:

— Tudo bem, até logo.

Ia virar as costas, mas o coscuvilheiro a segurou pela manga da blusa:

— Espere, Su. Sulinha, me fala. Qual é o problema?

— Que problema?

— O de meu amigo Gustavo, seu pai. De quem mais estamos falando?

Sulamita voltou à posição de antes, muito à contragosto:

— Papai está com a Doença de Chagas.

— Hein?!

Desta vez, quem se aporrinhou, de fato, foi o Malaquias:

— Raios. Quem é esse Chagas?

— Chagas não é ninguém, sua besta. A doença é que é de Chagas.

— Desculpe a insistência. Não sabia que Chagas tinha algum tipo de alteração biológica.

— Chagas não tem porcaria nenhuma, Malaquias. O incômodo de papai é o tal do “Mal de Chagas.”

O bisbilhoteiro comia as unhas – tamanho o nervosismo em saber mais pormenores para passar adiante. E o fazia aumentando a história: 

— “Mal de Chagas” ou doença de...?!

— “Doença de Chagas.” Agora, por favor, passe bem. Tenho mais o que fazer.

Sulamita pela segunda vez se viu puxada pela manga da blusa:

— Não dá para explicar?

—Querido parasita, doença de Chagas é aquela transmitida pelo barbeiro. Pelo barbeiro...

Malaquias, de repente mudou de cor. Perdeu o jeitão de bilhardeiro (mandrião) e entrou, realmente em estado de choque:

— Meu Deus! Então... então eu também... eu também estou correndo sério risco de... de comer capim pela raiz? Cortei, hoje cedo, o cabelo. Seguirei seu pai, com certeza...

Sulamita perdeu, de vez a compostura:

— Vá para o raio que o parta. Que tal amolar os porcos?

— Um minuto, Sulinha, um minuto, por gentileza. A senhora...

—... Senhorita.

— A senhorita sabe muito bem que conheço seu pai faz anos. Peguei suas irmãs Solange e Serena no colo. Ajudei a dar banho. Você, peladinha, uma gracinha. Trocar fraldas, um Deus-nos-acuda. Uma vez socorri junto com a empregada de vocês, a dona Soraya, sua mãe. Ela havia sido mordida pelo cachorro do seu Gabriel da banca de revistas. Seu pai saíra em viagem e sua mãe, coitada, entrou em desespero. Lembro como se fosse hoje...

Sulamita se voltou. Soltava fel pela boca:

— Tudo bem. Concordo com o senhor plenamente. Só acho uma falta de respeito e de camaradagem muito grande vir até aqui, na hora do almoço, dar as condolências por uma pessoa que sequer pensa em morrer. Isso dá asco. Repugnância, nojo. O senhor não tem um pingo de educação? Ou de humanidade? Brinca com a paciência e os sentimentos das pessoas. Que coisa ridícula!...

O metediço, por um momento se quedou em silêncio constrangedor. Abaixou a cabeça e de olhos fixos no medidor de água, ficou completamente impassível, sem saber, na verdade, o que dizer ou como agir. No final, vencido o embaraço, mas bastante envergonhado e arrependido disse à Sulamita: 

— Não tinha intenção, acredite, de dar os pêsames. Eu queria, mesmo, de coração, desejar um restabelecimento rápido para o meu amigo Gustavo. No entanto, em lugar disso, fiz essa droga. Vomitei o que não devia. Sula, pela nossa amizade e pela consideração que devoto por seu pai, igualmente por sua mãe, esqueça o incidente. Juro, não tornarei a cair em tamanha asneira novamente.

— Ok. Está perdoado. Agora, por favor, caia fora. Vaza!  

Nesse momento, gritos de desespero surgiram de dentro da residência. Em seguida, apareceram, apavoradas, na soleira da porta, Solange e Serena, chorando copiosamente:

— Depressa, Sula, depressa, mamãe teve um piripaque e caiu, ao lado do tanque. O pai...  o nosso pai...

Malaquias, atônito, sem saber do que se tratava, não deixou por menos. Berrou, à voz tonitruante:

— Virou defunto. Não disse? Tiro e queda... eu tinha razão... partiuuuuuu... 

— O que é que esse imbecil está falando, Sula? 

— Esse maldito é um verme. Deveria estar queimando a carcaça no inferno.

O linguarudo, entretanto, não chegou a ouvir essas últimas palavras. 

Apressado, como se fugisse da polícia, o petulante deu meia volta e saiu pelo meio da rua gritando a plenos pulmões, que Gustavo, seu melhor amigo havia batido com as doze. Que em consequência, dona Soraya, a esposa, tivera um piripaque. Enquanto isso, Sulamita, atarantada, indagava da irmã:

— O que houve com papai?

— Nada, que eu saiba. Nosso velho está lá dentro tentando reanimar a mamãe.

— O quê, mana? Como é que é?

— Venha, irmã... corra...  

As consanguíneas meteram sebo nas canelas para acudir. A empregada ligou para o hospital. Uma ambulância imediatamente acionada pintou no pedaço, e, com ela, um socorrista. 

Vizinhos foram chegando, aos borbotões, em solidariedade, enquanto parentes residentes próximos, avisados, deram logo o ar da graça. Mas tudo, tudo muito tarde demais. Dona Soraya Pereira da Costa, esposa de Gustavo, havia carimbado o passaporte com bilhete só de ida. Tomada toda a frente da residência, uma enorme multidão se fazia solidária. Gustavo chorava não a sua morte repentina, tendo em vista as palavras de alcoviteiro. Entretanto, do nada, uma debandada se fez geral. De repente, gente se atropelando e fugindo assustada. A cena tomou proporções gigantescas quando o próprio Gustavo escancarou seus olhos na frente da sala e dali seguiu inteiraço em direção a varanda, agradecendo a simpatia e a piedade dos domiciliados em massa descomedida albergados em seu portão.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

O nosso português de cada dia (Expressões) = 1

CAIÇARA
Habitante típico de região litorânea, pessoa simples, própria do lugar, caipira, usado sempre no sentido pejorativo.

A expressão vem do tupi kaaías, e quer dizer cerca de ramos, vedação para impedir o trânsito. Uma caiçara implicava em cerca muito rudimentar e própria dos índios que habitavam as costas de São Paulo, no período do descobrimento, daí a associação metonímica entre o objeto e as pessoas,

CAIXA DE PANDORA (ABRIR A)
Contar um grande segredo, deixar escapar muitas coisas que não deveriam se espalhar porque causariam medo. Lugar ou situação repleta de segredo.

A origem também é mitológica e está ligada à lenda de Prometeu, depois de sua punição por Zeus. Pandora é considerada a primeira mulher, criada em conjunto pelos deuses, sob o comando de Hefesto e de Atena, Ela simbolizaria a mãe natureza, era linda, graciosa e possuía grande capacidade de persuasão. Foi enviada por Zeus de presente a Epimeteu, irmão de Prometeu. Ele não deveria aceitá-la, mas casou-se com ela. A moça trazia consigo uma caixa (na verdade um vaso) que tinha a tampa sobre a qual ela nunca deveria abrir. Curiosa, ela abriu a caixa e dela saíram todos os vícios humanos (a inveja, o ódio, a ganância, a luxúria, que foram morar nos corações dos homens). Estava feita a vingança dos deuses contra os homens. A simbologia equivale à expulsão do paraíso para os cristãos.

CALCANHAR DE AQUILES
No sentido de ponto fraco, vulnerabilidade de alguém.

Aquiles vem da mitologia grega, era filho de Tétis e de Peleu. Ao nascer, sua mãe, para protegê-lo e torná-lo invulnerável, mergulhou-o no Estige, o rio infernal. No entanto, para o mergulho, segurou-o pelo calcanhar, que não foi banhado e, portanto, tornou-se seu ponto fraco. Aquiles foi morto por uma flechada de Páris, guiada por Apolo, justamente no seu calcanhar, durante a Guerra de Tróia,

CAMELAR
Trabalhar muito pesado.

É óbvio que o termo vem da comparação com o camelo, mas isto ocorre porque o animal em um dia inteiro de caminhada, consegue carregar uma carga de 15O kg por quase 150 quilômetros, atravessando um deserto seco, sem parar um minuto para beber ou comer coisa alguma. Na verdade, ele consegue ficar até oito dias inteiros sem beber água, mas então fica esgotado. Pode perder mais de 100 kg e ficar magérrimo, apenas osso e pele. Ainda assim, ele se aguentará em pé! Normalmente, o sangue do animal contém 94% de água, exatamente como o nosso. No entanto, quando não encontra água para beber, o calor do sol gradualmente o faz perder um pouco da água do sangue.

Os cientistas descobriram que o animal pode perder até 40% da água do sangue, e mesmo assim continuar saudável. Somente para se ter uma ideia, se um ser humano perder 5% da água no sangue, a visão fica comprometida; se a perda for de 10%, a pessoa enlouquece; com 12%, o sangue fica tão espesso que o coração não consegue bombeá-lo mais e para.

Fontes: Nailor Marques Jr. Será o Benedito?: Dicionário de origens de expressões. Maringá/PR: Liceu, 2002.
Imagem = criação por JFeldman com Microsoft Bing

Recordando Velhas Canções (Quem Sabe?)


(modinha, 1859)

Compositor: Antônio Carlos Gomes e Bittencourt Sampaio

Tão longe, de mim distante
Onde irá, onde irá teu pensamento?
Tão longe de mim distante
Onde irá, onde irá teu pensamento?
Quisera saber agora
Quisera saber agora
Se esqueceste
Se esqueceste o juramento

Quem sabe se és constante
Se ainda é meu teu pensamento
Minh'alma toda devora da saudade
Da saudade agro tormento

Tão longe de mim distante
Onde irá, onde irá o teu pensamento?
Quisera saber agora
Se esqueceste o juramento

Quem sabe se és constante
Se ainda é meu teu pensamento?
Minh'alma toda devota da saudade
Da saudade agro tormento
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Saudade e o Juramento Perdido
A música "Quem Sabe", interpretada por Francisco Petrônio, é uma expressão lírica da saudade e da incerteza no amor. A letra reflete a dor de um amor que se distancia, tanto fisicamente quanto emocionalmente, e o anseio do eu lírico em saber se ainda ocupa os pensamentos da pessoa amada. A repetição da frase "Tão longe de mim distante" enfatiza a separação e a distância que se interpõe entre os amantes, criando uma atmosfera de melancolia e desejo por um reencontro.

O questionamento "Onde irá, onde irá teu pensamento?" revela a insegurança e a preocupação do eu lírico em ser esquecido ou substituído no coração da pessoa amada. A música explora a angústia de não saber se o outro ainda mantém o juramento de amor que foi feito, sugerindo que houve uma promessa de fidelidade e constância que agora parece ameaçada pela distância. A saudade é descrita como um "agro tormento", uma dor profunda e amarga que consome a alma do eu lírico.

Francisco Petrônio, conhecido por sua voz marcante e interpretações emotivas, dá vida a essa canção com uma entrega que toca o coração dos ouvintes. A música, que pode ser classificada como uma seresta ou valsa, carrega a tradição da música romântica brasileira, onde a expressão dos sentimentos e a contemplação da dor amorosa são elementos centrais. "Quem Sabe" é uma canção que fala diretamente aos corações apaixonados e saudosos, evocando a universalidade da experiência do amor e da perda.

Carlos Gomes ficou reconhecido internacionalmente como compositor de óperas. O que pouca gente sabe é que ele compôs a partir de um universo bastante diversificado, bem próprio de seu estilo, influências e contexto histórico. No seu repertório encontramos música sacra, modinhas, cantatas e operetas. Quando ouvimos suas modinhas nos lembramos de sua origem interiorana, das festas de salões em volta do piano, dos saraus lítero-musicais tão frequentes no Rio e São Paulo do século XIX.

Nas modinhas e canções de Carlos Gomes encontramos um pouco do lirismo francês e muito dos tons humorísticos das canções italianas, sobretudo a forte presença do estilo verdiano, tão em voga no ensino musical da época. Da sua primeira fase, ainda como estudante de música, destacamos os títulos mais famosos: Hino acadêmico e Quem Sabe? ambas de 1859. A grande parte dos textos musicados por Carlos Gomes eram de caráter romântico, realçando o estilo melodramático, típico das árias de salão.

sábado, 24 de agosto de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 54

 

Rita Mourão (Trovas em preto e branco)


1
Bilhetes de amor... saudade
que a lembrança hoje cultua
onde a tal felicidade
era o carteiro da rua!…
2
Deriva meu corpo, enquanto
contra os reveses reluto.
Hoje o tempo usa meu pranto
para cobrar seu tributo.
3
Deus ao criar as estrelas
zeloso cumpriu a meta,
mas para alguém descrevê-las
criou também o poeta.
4
Este espinho que me atira
aos braços da dor sem fim,
é o fruto desta mentira
que você plantou em mim.
5
É um velho lar meu legado
onde o amor gerou bonança
e pôs um filho ao meu lado
multiplicando essa herança.
6
Fui juiz de alheios fatos
hoje a vida com razão
me faz réu dos mesmos atos
que aos outros neguei perdão.
7
Meus retalhos de esperança,
juntei-os, pus no correio.
( Destino, velha criança,)
mas a resposta não veio.
8
Não condeno a caminhada
culpo sim, meus passos falhos.
Foi bem larga a minha estrada
fui eu quem buscou atalhos.
9
Ousar não é ser valente
ao buscar gloria e poder.
Ousadia é quando a gente
humaniza o nosso ser!
10
Por mais que o orgulho insista
peço a Deus a quem me entrego
que nas horas da conquista
eu saiba despir meu ego.
11
Quando uma ofensa me oprime
em silêncio enfrento tudo.
Qualquer grito se redime
ante meu protesto mudo.
12
Se o homem abaixasse a fronte
com fé, respeito, humildade,
seria a Terra uma ponte
entre Deus e a humanidade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

SOBRE AS TROVAS DE RITA
por José Feldman

TEMAS CENTRAIS PRESENTES:

1. Saudade e Memória
Frequentemente evoca sentimentos de nostalgia, lembrando momentos de felicidade e amor. A saudade é um sentimento complexo, muitas vezes ligado ao amor perdido ou a momentos felizes. Rita utiliza essa nostalgia para conectar o passado com o presente, sugerindo que as memórias moldam nossa identidade. A ideia de que o tempo passa, mas as lembranças permanecem, é central em suas trovas.

2. Dor e Sofrimento
A dor é uma presença constante, expressando a luta interna e as desilusões que todos enfrentamos. A dor é apresentada não apenas como um fardo, mas como uma parte inevitável da vida. Transforma essa experiência em uma reflexão sobre a condição humana, mostrando que o sofrimento pode levar à compreensão e à empatia. Essa dualidade é uma das características mais marcantes de sua poesia. Ela fala sobre como as experiências difíceis podem ser transformadas em aprendizado e crescimento.

3. Esperança e Renovação
Rita fala sobre a importância de acreditar em um futuro melhor, mesmo quando as respostas parecem ausentes. Apesar das dificuldades, há sempre uma esperança subjacente. Fala sobre a capacidade de recomeçar e a importância de manter a fé em tempos difíceis. Essa esperança é frequentemente personificada em suas trovas, como um guia nas trilhas da vida.

4. Reflexão e Autoconhecimento
Suas trovas muitas vezes abordam a autoanálise, refletindo sobre ações passadas e suas consequências. A busca por perdão e compreensão é uma jornada central. Essa busca por compreensão pessoal é essencial para o crescimento. Ela sugere que reconhecer nossos erros é um passo importante para a evolução.

5. Humanidade e Compaixão
A poetisa enfatiza a importância de tratar os outros com respeito e dignidade. Suas trovas muitas vezes apelam para uma conexão mais profunda entre as pessoas, sugerindo que a empatia é fundamental para a construção de relacionamentos saudáveis. Ela sugere que, ao nos conectarmos uns com os outros, podemos construir um mundo melhor.

6. O Papel do Poeta
Também explora a função do poeta como alguém que traduz a beleza e a complexidade da vida em palavras, destacando o poder da arte de tocar o coração humano, é uma ponte entre o cotidiano e o sublime, capturando a essência da existência humana.

CONCLUSÃO

As trovas de Rita Mourão são um belo exemplo de poesia que explora temas como amor, dor, esperança e a condição humana. Através de uma linguagem simples e direta, ela consegue transmitir emoções profundas e reflexões sobre a vida. Cada estrofe traz à tona sentimentos universais, como a saudade, a busca por perdão e a necessidade de humildade.

As trovas de Rita Mourão são um reflexo da rica tapeçaria cultural brasileira, abordando temas universais com um toque local. Ela oferece uma voz importante na literatura contemporânea, incentivando a reflexão e a conexão entre as pessoas.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco.vol.1. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Antônio Juraci Siqueira (Encavernado)

Chove sobre a cidade. Chuva densa, impiedosa. Chuva que exerce sobre mim o estranho poder de conduzir-me às brenhas de mim mesmo qual animal acuado à procura da toca. Troglodita indefeso em busca do ventre pétreo da caverna...

Mergulho em meus comigos a cismar sobre o destino da Terra e do Homem – esse construtor de estradas para lugar nenhum. Mas quando a antevisão do caos me deixa apavorado e triste, transponho os muros do real e vou colher, no pomar dos sonhos, os pomos dourados da poesia.

Os poetas somos, em nosso ofício, criaturas solitárias por razões que bem não atino. Talvez pela necessidade de estarmos a sós com a palavra no momento mágico da concepção da poesia, para que nenhum mortal possa testemunhar a dor ou a alegria estampadas em nossas faces na hora do parto do poema.

Chove. Cerco-me de palavras para tentar esquecer que neste momento o planeta é oferecido em holocausto aos deuses do progresso e que, em nome de Deus e da Justiça, homens sacrificam-se mutuamente como se fosse possível conceber guerra justas e santas!...

Tento desesperadamente convencer-me de que a poesia está acima do bem e do mal, acima dos homens, de suas leis, crenças e ideologias. Digo a mim mesmo que os poetas somos seres privilegiados, que não devemos, por isso, deixar que a voz das armas fale mais alto aos nossos ouvidos que a voz do vento, que a voz do mar, que a voz do nosso coração. Mas é impossível enganar-se a si mesmo quando se tem o peito dilacerado por uma bala ou por uma lâmina de baioneta que, sem pedir licença, invadem nossos lares via satélite. Impossível não escutar as trombetas do Apocalipse anunciando que mais cordeiros serão imolados para saciar a sede de modernos e sádicos vampiros.

A chuva faz-me regredir no tempo e voltar à caverna, jardim de infância da humanidade onde o homem rabiscou a primeira flor, domou a primeira fera, articulou a primeira palavra, fabricou a primeira arma e, seguramente, organizou a primeira batalha contra seus semelhantes...

Os ruídos da chuva misturam-se ao som do televisor que exibe imagens de um conflito qualquer. Imagens cruéis, animalescas. Fatos que fazem com que eu me sinta, verdadeiramente, um troglodita cercado de feras e condenado aos limites de minha própria caverna. Humana e trágica caverna a se fechar, cada vez mais, em torno de meus medos, meus delírios, minhas convicções...

E é assim que vejo a alegoria platônica da caverna realizar-se em mim. Atualizar-se com o regresso do homem ao seu primitivo útero de pedra. Mas, ao contrário do mito, já não há boas novas para anunciar. Apenas a triste constatação de que o homem moderno, a despeito de sua avançada tecnologia que lhe permite destruir seu semelhante e o meio em que vive com o auxílio do átomo, não conseguiu ser um pouco melhor que seus ancestrais que já faziam o mesmo com paus e pedras. É triste admitir que em plena era da informática as armas continuem a falar mais alto que as palavras e que estas sirvam de instrumento para promover a discórdia entre os povos, para inverter e perverter valores, para transformar a liberdade numa “calça velha, azul e desbotada...”

A chuva passou mas eu continuo entrincheirado entre palavras. Afundo e confundo-me nelas para proteger-me das garras do ódio, para resistir às leis das armas. Com elas fabrico, quixotescamente, meu escudo e minha lança para investir contra os moinhos da insensibilidade humana.

Os poetas somos criaturas solitárias a esgrimir com o verbo. E precisamos, urgentemente, de paz para continuar semeando amor e poesia nos canteiros do mundo, nos pomares da vida, nos corações dos homens.

Flavius Avianus (Júpiter e o camelo)

O camelo, chegando aos campos, e vendo ali uma grande manada de touros bem armados de chifres, amargamente sofria e lastimava-se, porque não lhe pareciam bastantes os dons que a Natureza lhe legara.

Assim, procurou Júpiter e, diante dele, começou a queixar-se e lamentar-se:

— Oh! O quão me é vergonhoso andar assim, sem armadura ou defesa! Porque os touros armam-se de chifres; os porcos, de dentes; os ouriços, de espinhos; e, assim, todos os animais, conforme o seu estado. E, sozinho, ando eu sem armas por estes campos e caminhos, sujeito ao ridículo e ao escárnio de toda a alimária. Portanto, ó Júpiter — o soberano Deus dos deuses —, rogo, suplico e peço-te que, assim como o touro, dê-me cornos com os quais eu me possa defender, esquivando-me, destarte, do menosprezo dos outros animais.

Júpiter, vendo o quão era mal-agradecido o camelo pelo benefício da grandeza, com a qual a Natureza lhe dotou, tirou-lhe, quase que completamente as grandes e formosas orelhas, que lhe conferiam o esplendor. E, sorrindo-se, disse-lhe:

—Porque não te contentaste com os atributos que a Natureza e a fortuna lhe deram, eu te retiro as orelhas, para que te recordes, para sempre, deste castigo, e para que, lamentando-se, e sempre amedrontado, leves a tua vida doravante.

Eis aqui uma advertência: ninguém deve cobiçar as coisas alheias, para que não perca o que antes, pacificamente, possuiu.

Fontes: 
Flavius Avianus. Fábulas. século V.
Imagem: criação JFeldman com Microsoft Bing