segunda-feira, 25 de novembro de 2024

José Feldman (O Cruzeiro das Trapalhadas)


Era uma vez um casal muito peculiar: Epitáfio e Etelvina. Eles decidiram que era hora de uma aventura e, com isso, embarcaram em um cruzeiro para as deslumbrantes Ilhas Gregas. O barco, o "Navegador do Sol", estava repleto de passageiros animados, todos prontos para desfrutar do calor e das belezas naturais. Mas, como todos sabem, quando Epitáfio está por perto, a aventura nunca é apenas uma simples viagem, não consegue ficar quieto, parece que tem tachinhas nos pés.

Assim que embarcaram, Epitáfio, sempre entusiasmado, começou a explorar o navio como se fosse uma criança em uma loja de doces.

— Olha, Etelvina! — exclamou ele, apontando para uma escada em espiral. — Vamos ver onde isso nos leva!

— Epitáfio, espera! — gritou Etelvina, mas ele já tinha desaparecido. Quando ela finalmente o encontrou, ele estava em cima de uma mesa de sinuca, tentando “fazer um truque”.

— Epitáfio, desça daí! Você vai quebrar alguma coisa! — disse ela, com a mão na cabeça.

— Não se preocupe, querida! Eu sou um mestre do equilíbrio! — ele respondeu, e, claro, assim que se inclinou para mostrar isso, escorregou e caiu de costas no chão, fazendo a mesa balançar e as bolas de sinuca rolarem pelo convés.

Os passageiros que assistiam à cena começaram a rir. Um senhor idoso até comentou:

— Olha, o novo esporte do cruzeiro: sinuca acrobática!

No dia seguinte, na hora do almoço, Epitáfio decidiu que era sua vez de ajudar. Ele foi até o buffet e, com toda a sua boa intenção, começou a servir comida para os dois.

— Aqui está, Etelvina! Uma especialidade grega! — disse ele, colocando uma porção generosa de tzatziki* no prato dela.

— Epitáfio, isso é demais! — reclamou ela, mas ele não a ouviu. Em um movimento desastrado, ele derrubou um jarro de azeite, que escorreu pelo chão como um rio dourado.

Os passageiros ao redor começaram a rir novamente. Uma senhora, com um olhar divertido, comentou:

— Acho que o Epitáfio está tentando criar um novo prato: “Azeite à la Epitáfio”.

Depois do almoço, Epitáfio decidiu que era hora de se divertir na piscina. Ele pulou na água de forma tão exagerada que fez uma onda gigantesca, que molhou todos os que estavam próximos.

— Epitáfio! Você não pode fazer isso! — gritou Etelvina, que estava secando o cabelo com uma toalha.

— Relaxa, amor! É só um pouco de diversão! — respondeu ele, enquanto tentava nadar, mas em vez disso, começou a se debater como um peixe fora d'água.

Os passageiros, entre risadas e sustos, começaram a se afastar da borda, enquanto um marinheiro observava tudo com uma expressão de incredulidade.

Eventualmente, o capitão do navio, um homem robusto com uma voz que poderia fazer uma tempestade silenciar, decidiu intervir.

— Senhor Epitáfio! — chamou ele, enquanto se aproximava. — Eu preciso que o senhor fique em sua cabine por um tempo. Você está causando caos!

— Mas eu só estava me divertindo! — respondeu Epitáfio, fazendo uma careta.

— Sua diversão está deixando os passageiros um pouco… nervosos! — disse o capitão, tentando manter a compostura.

— Tudo bem, capitão! — Epitáfio se rendeu, enquanto Etelvina soltava um suspiro de alívio.

No entanto, Epitáfio não estava disposto a ficar em sua cabine. Assim que o capitão se afastou, ele viu uma oportunidade e escapuliu.

— Ah, eu só quero dar uma volta! — murmurou ele para si mesmo, caminhando pelo convés. Sem perceber, ele se aproximou da borda do navio e, ao tentar se esconder de um grupo de marinheiros, escorregou e caiu direto no mar.

O grito que ele deu ecoou pelo navio:

— Etelvina! Socorro! Estou afundando!

Os passageiros, agora em um misto de choque e riso, correram até a borda para ver o que estava acontecendo. Etelvina, horrorizada, gritou:

— Epitáfio! Volte aqui!

Os marinheiros, já acostumados com as trapalhadas de Epitáfio, entraram em ação. Um deles, um jovem chamado João, pulou na água e nadou até Epitáfio.

— Calma, amigo, eu estou aqui! — disse João, enquanto puxava Epitáfio de volta para o barco.

Ao ser resgatado, Epitáfio estava todo encharcado, mas com um sorriso no rosto.

— Eu sempre quis experimentar a natação em alto-mar! — exclamou ele, enquanto todos ao redor caíam na risada.

Quando finalmente conseguiram voltar ao convés, o capitão, agora com um sorriso no rosto, não pôde deixar de comentar:

— Bem, senhor Epitáfio, você definitivamente trouxe um novo significado para o "cruzeiro".

Etelvina, com a cabeça nas mãos, não sabia se ria ou chorava. Mas, no fundo, sabia que, com Epitáfio, cada dia seria uma nova aventura.

— Apenas não me faça passar por isso novamente, por favor! — pediu ela, enquanto abraçava o marido.

Epitáfio piscou:

— Prometo que na próxima vez, eu só vou fazer trapalhadas em terra firme!

E assim, o casal continuou sua viagem pelas Ilhas Gregas.

O casal, agora um pouco mais consciente das reações dos passageiros, tentou se comportar, mas a natureza atrapalhada de Epitáfio estava longe de ser domada.

Na primeira parada, Santorini, a beleza das casas brancas e das vistas deslumbrantes deixou Etelvina encantada. No entanto, Epitáfio estava mais interessado na comida local.

— Vamos experimentar aquele prato que dizem que é uma delícia! — sugeriu ele, apontando para uma taverninha.

Etelvina hesitou:

— Epitáfio, lembre-se da última vez que você decidiu experimentar algo novo.

Mas Epitáfio já estava na porta, e em um instante estava pedindo uma moussaka** gigantesca. Quando o prato chegou, ele não conseguiu conter a empolgação e, em sua pressa, derrubou a bandeja, cobrindo o garçom e a mesa ao lado com molho quente.

— Desculpe! — gritou ele, enquanto todos ao redor se esquivavam.

Na segunda parada, o casal decidiu fazer uma excursão de barco para explorar as caldeiras. O guia, um homem charmoso, começou a falar sobre a história da ilha, mas Epitáfio, distraído pelo movimento do barco, decidiu que era hora de tirar fotos.

Ele se levantou abruptamente para captar a vista e, ao fazer isso, quase derrubou a câmera de um passageiro.

— Olha, pessoal! É uma selfie em alto-mar! — exclamou ele, tentando equilibrar a câmera. O resultado foi um álbum de fotos com Epitáfio em posições hilárias, com o fundo das caldeiras sempre desfocado.

Etelvina não sabia se ria ou se ficava envergonhada. Mas, no final, todos estavam se divertindo e tirando selfies com Epitáfio.

Na última noite do cruzeiro, o navio organizou uma festa de gala. Todos estavam elegantes, e Etelvina, em um vestido deslumbrante, parecia uma verdadeira deusa grega. Epitáfio, por outro lado, decidiu que uma gravata borboleta colorida seria o toque final do seu traje.

Durante o jantar, enquanto a orquestra tocava, Epitáfio tentou dançar, mas acabou pisando no pé de um dos dançarinos profissionais, que estava fazendo uma apresentação. O homem, surpreso, girou e, sem querer, acabou arrastando Epitáfio para o centro da pista.

— Vamos lá, Epitáfio! Mostre o seu talento! — gritou um dos passageiros, incentivando-o.

Epitáfio, sem saber o que fazer, começou a dançar de forma desajeitada, fazendo movimentos engraçados que rapidamente contagiou a plateia. Todos começaram a rir e aplaudir, e logo ele se tornou o centro das atenções.

Quando o cruzeiro finalmente chegou ao seu fim, Epitáfio e Etelvina se sentaram no convés, observando o sol se pôr sobre o mar.

— Apesar de tudo, foi uma viagem incrível, não foi? — disse Etelvina, com um sorriso.

— Com certeza! — respondeu Epitáfio, olhando para ela com adoração. — E quem diria que eu seria o rei no final?

— E o herói das selfies! — brincou Etelvina.

Enquanto o navio se afastava das ilhas, o casal percebeu que cada trapalhada de Epitáfio se tornara uma lembrança especial. Eles não apenas viveram uma aventura, mas também aprenderam a rir juntos, mesmo nas situações mais embaraçosas.

Ao desembarcarem, Epitáfio olhou para Etelvina e disse:

— O que você acha de planejarmos outra viagem? Quem sabe para… as montanhas?

Etelvina riu, balançando a cabeça:

— Apenas se você prometer não escorregar em nenhuma trilha!

E assim, com o coração leve e o espírito divertido, Epitáfio e Etelvina embarcaram em novos planos, prontos para mais aventuras, sabendo que, independentemente das desventuras, o mais importante era estarem juntos.
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* Tzatziki = é um acepipe típico da culinária da Grécia e da Turquia, mas também difundido entre outros países da Europa Oriental, Oriente Médio e Índia, sob diferentes denominações e com inúmeras variações regionais: seja quanto à consistência, seja quanto às ervas e especiarias adicionadas à preparação básica, que se compõe de iogurte, pepino e alho.

** Moussaka = Mussaca ou Mussacá é uma especialidade gastronômica do Oriente Médio, típico das culinárias grega e turca, entre outras, sendo, na versão árabe, um cozido de grão de bico com berinjelas, muito comum na culinária vegana. Pode ser também uma variação de lasanha italiana, só que grega, muitíssimo saborosa. Essa versão é originalmente feita com carne de carneiro, berinjelas, e tomate, sempre condimentado com azeite, cebola, ervas e fortemente temperado com pimenta ou malagueta.


Fontes: 
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Monsenhor Orivaldo Robles (Ao filho de pais caretas)


Você não lembra, é claro. Nem teria como lembrar. Era muito pequeno. Eles o pegavam no colo. Abraçavam, apertavam, acontecia de mordê-lo. Por vezes, você acabava chorando, sufocado pelo excesso de um carinho que eles não sabiam dosar. Se conseguisse falar, você diria: “Parem com isso. Estão me machucando. Sou muito fraquinho”. Mas reclamar para quem? Os avós faziam pior. Parece que disputavam para ver quem judiava mais.

Você nunca pensou nisso, mas sua vinda foi muito esperada. Desde quando descobriram que estava a caminho, você tornou-se o centro da vida deles. Não havia assunto mais importante, preocupação maior. Tudo era para você, que ia chegar.

Você provocou grande transformação em sua mãe. Ela se tornou mais sensível, emotiva, meio dengosa. Chorava à-toa, parecia insegura, se irritava por nada. Voltou a ser, outra vez, uma adolescente. Ou quase. Seu pai sentiu-se meio perdido. De repente, passou a achar estranha a mulher com quem vivia.

Depois que você nasceu, complicou de vez. Vieram trapalhadas com sua higiene, alimentação, saúde... Em várias situações eles se perdiam. Vinha-lhes à mente perguntar: E agora, fazer o quê? Criança devia vir com manual de instruções.

Hoje você é forte, bonitão e se considera dono de um mundo que se abre aos seus pés. Capaz de tomar decisões, de resolver o que é melhor, o que vale a pena na vida. “Sei o que estou fazendo” diz, com uma segurança que talvez nem eles demonstrem. Você os olha com piedoso pouco caso, como se para outra coisa não servissem além de pegar no seu pé.  De vez em quando, não tem vontade de dizer, se é que já não disse: “Pô, velho(a), dá um tempo?”

Com vinte anos, você está quilômetros à frente deles, não? Eles nada sacam do que acontece hoje. Já tiveram a vez deles; agora é a sua. Por que tanta bronca com seu jeito, se assim fazem todos os seus amigos? Você não precisa de conselhos. Não acreditam que ninguém faz a sua cabeça? Que já é grande para decidir entre o certo e o errado? Que sabe escolher o que o fará feliz? Que sabe afastar-se do que vai prejudicá-lo?

Pois é. As desgraças do mundo, que você tanto condena, foram causadas por gente que julgava não precisar de conselhos. Achava que sabia tudo; os outros, sim, é que não passavam de um bando de tapados. “Foram adultos que construíram o mundo podre que está aí”, dirá você. Está coberto de razão. Adultos que, com a idade que você tem hoje, se comportavam como donos da verdade. Não aceitavam palpite nem admitiam mudar coisa alguma em sua vida.

Se amanhã você entrar numa roubada, daquelas que parecem não oferecer saída, sabe quem ficará do seu lado? Não vão ser os amigos que em tudo lhe dão razão, eu garanto. Nem a gata que só lhe diz aquilo que você gosta de ouvir.

Amar não é coisa de momento. Amor de verdade é para a vida inteira. Enquanto você viver, será amado pelos seus pais. Ainda que lhe custe acreditar. Amar não é concordar sempre e a propósito de tudo. É, muitas vezes, ter coragem de dizer não. Mesmo com lágrimas. Guarde esta verdade: lágrima de pai e mãe não sai dos olhos, sai do coração. Porque é com o coração que se ama. Você nem existia ainda e eles já o amavam.

Vereda da Poesia = 166 =


Trova de
JOSÉ RODRIGUES FERNANDES 
Fortaleza/CE (1910 – ????)

Chora o vento lá por fora...
Chora a chuva e vão-se as águas.
O coração também chora,
mas nunca se vão as mágoas.
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Poema de 
ELVIRA BARBOSA CAMARINHA
Braga/Portugal

Donzela

Com violino e rabeca
donzela me sinto,
ao toar de Agosto quente,
com a alma ardente,
corpo decente.

Tesouro guardado.

Chave do cofre, escondida
algures,
perdida,
sinal de nova vida!

Donzela
nua de pés,
adormece na sua tela!

Tesouro apetecido.

Saudades tuas
serão manhãs cruas...
donzela perdeu a sensualidade,
pecado arremessado
pelos senhores da Verdade!
Prazo de validade...

Tesouro requisitado.

Tarde,
fez-se noite,
a donzela fechou-se...
cadeado!

Saudades donzela do
teu Amor quente,
enfeitiçado!

Donzela liberou o passado...
e dela ficou o beijo molhado.
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Limerique de
NILTON MANOEL
Ribeirão Preto/SP, 1945 – 2024

Limerique Urbano IV

Pela longa rua da feira
tem tudo de bom e primeira;
vê-se a granel,
quentinho. pastel...
Tem até gente barraqueira.
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Poema de
SÉRGIO TAVARES
Piabetá/RJ

Eu te peço perdão

Eu te peço perdão, por ser tão inexato,
por não possuir a claridade desse dia,
por ter uma visão de mentecapto,
por ter a vida, assim, sempre vazia.

Eu te peço perdão, por não estar onde me queres,
por dizer não, quando na verdade te queria,
por sorrir, quando tanto tu choravas,
mas, por chorar, quanto tanto tu sorrias.

Mas não me culpe se tudo deu errado,
se o teu amor nunca foi correspondido,
pois apesar de estar sempre do teu lado,
meu sentimento foi mal compreendido.

Culpe menos ainda o meu verso,
que é apenas uma forma de sangria,
é, apenas, o reflexo do meu reverso,
e se nasceu foi porque tu morrias.
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Conheço um tipo de fome
que não se farta de pão:
fome de amor!  Eis o nome
da fome do coração!...
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Soneto de
EMÍLIO DE MENESES
Curitiba/PR, 1866 – 1918, Rio de Janeiro/RJ

Alcoolismo

A leitura do tópico tremendo
À lembrança me trouxe uma anedota
Velha, tão velha quanto aquela bota
Que era toda o Larousse do remendo.

Certo alcoolista, um sábio artigo lendo
De um médico alemão de grande nota
Contra o álcool, diz em compulsão devota:
"Como ele prova quanto o vício é horrendo!"

E acrescenta: "A verdade em mim desperta!
Eu não quero pelo álcool cair morto,
Vou dizê-lo bem alto e de alma aberta!"

Tal leitura me traz tanto conforto,
Que vou beber saudando a descoberta
Três garrafas de bom vinho do Porto!...
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Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Amores na mocidade!...
Depois, a contrapartida:
cansaço, dor e saudade
na curva extrema da vida!
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Poema de 
RABINDRANATH TAGORE
Índia (1861 - 1941) 

Julgamento

Não julgues...
Habitas num recanto mínimo desta terra.
Os teus olhos chegam
Até onde alcançam muito pouco...
Ao pouco que ouves
Acrescentas a tua própria voz.
Mantém o bem e o mal, o branco e o negro,
Cuidadosamente separados.
Em vão traças uma linha
Para estabelecer um limite.

Se houver uma melodia escondida no teu interior,
Desperta-a quando percorreres o caminho.
Na canção não há argumento,
Nem o apelo do trabalho...
A quem lhe agradar responderá,
A quem lhe agradar não ficará impassível.
Que importa que uns homens sejam bons
E outros não o sejam?
São viajantes do mesmo caminho.
Não julgues,
Ah, o tempo voa
E toda a discussão é inútil.

Olha, as flores florescem à beira do bosque,
Trazendo uma mensagem do céu,
Porque é um amigo da terra;
Com as chuvas de Julho
A erva inunda a terra de verde,
e enche a sua taça até à borda.
Esquecendo a identidade,
Enche o teu coração de simples alegria.
Viajante,
Disperso ao longo do caminho,
O tesouro amontoa-se à medida que caminhas.
(tradução de José Agostinho Baptista)
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Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Esta angústia indefinida,
que sempre à noite me invade,
são sombras próprias da vida
ou disfarces da saudade?
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Não tenha inveja!

O voo do urubu tão silencioso
e, na aparência, sem esforço algum,
nos lembra um parapente fabuloso,
cujo piloto tem risco comum....

O nosso pobre abutre é bem feioso,
mas seu voar supera qualquer um;
enquanto o voo à vela é majestoso,
perigo o urubu não tem nenhum!

A lei protege até sua existência,
por sua importante excelência,
limpando sem cansar a Natureza!

Vendo o urubu no céu, não tenha inveja,
(como de quem com risco é que veleja),
já que o manjar do abutre é a impureza!
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Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

A esperança do colono
de sol a sol é cativa...
mas seu patrão não é dono
dos sonhos que ele cultiva!
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Hino de
NOVA GRANADA/SP

Sob as bênçãos de São Benedito,
do valente Francisco dos Santos,
veio a nós este solo bendito,
a quem vou dedicar o meu Canto.

No começo eras Vila Bela,
com orgulho lembra a gente tua;
outro nome surgiu nesta tela,
mas o amor de teus filhos continua!

Deus te salve, oh, Granada,
do "São João" ao "Pitangueiras",
para sempre, terra amada,
do "Matão" ao "Corredeira".

Teu passado é glorioso,
tua face é altaneira;
do teu povo laborioso
é a paz, "Cidade Hospitaleira"!

Brava gente chegada da Espanha
fez o nosso progresso aumentar
e, de força irmanada tamanha,
nossa Nova Granada aí está.

Teu passado foi feito de glórias,
teu presente à luta pertence,
teu futuro já tem uma história;
que alegria é morrer granadense!
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Com as chaves da alvorada,
Deus que é poder e magia,
deixa a noite enclausurada
e abre as portas para o dia.
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Recordando Velhas Canções
QUEM É 
(fox, 1959) 
Oldemar Magalhães e Osmar Navarro

Quem é...
Que lhe cobre de beijos
Satisfaz seus desejos
E que muito lhe quer... Quem é

Quem é...
Que esforços não mede
Quando você lhe pede
Uma coisa qualquer

Quem é...
Que de você tem ciúmes
Quem é 
que lhe ouve os queixumes
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Trova de
CLARINDO BATISTA ARAÚJO
Jardim do Piranhas/RN, 1929 – 2010, Natal/RN

Negra cinza no chão pobre
que resultou da queimada,
é o triste manto que cobre
a Natureza enlutada!...
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Renato Frata* (Sorriso de Algodão Doce)

O escritor Renato Benvindo Frata é de Paranavaí/PR
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Deem-lhe a forma que quiserem, cores que apetecerem e embalagens que imaginarem, o algodão-doce é e continuará como símbolo de alegria e terá sempre o formato do sorriso de criança ao descobrir a delícia.

Garanto que sua receita saiu da imaginação do mais requintado anjo, desses que fazem de um tudo quando estão de bem com a vida.

Eram momentos de espera quando, nas férias escolares, circos e parques de diversões aportavam na cidade. Criavam expectativa desde a montagem com homens movimentando peças e a grande lona, os extensos cordões incandescentes, até a bela iluminação da portaria a dizer a que veio.

Vivas eram dadas quando alguém aparecia com o indefectível carrinho de chapa esmaltada contornado de vidros e, de posse de uma corneta acionada a apertos de mãos, anunciava num megafone de lata o famoso doce. Havia também pipocas, balas, pirulitos, mas nenhum se igualava ao sabor indiscutível do algodão.

As buzinadas assanhavam lombrigas, enchiam de água nossas bocas, arregalavam nossos olhos movidos pela excitação que nos levava a buscar moedas nos bolsos dos pais, ou licença de mães para mexermos na caneca de trocados.

Um algodão-doce valia o dia! A semana! As férias inteiras. 

Eram instantes de agonia que encorajavam na fila reacendendo a fé, porque comer algodão-doce naquela época, só mesmo nessas ocasiões. Não havia as máquinas que hoje habitam shoppings, nem a gastura imposta pela medicina de que provoca cáries em crianças e diabetes em adultos. Ninguém ligava para isso. Médicos, dentistas, eram difíceis de encontrar e, quando se os encontravam, estavam na fila do algodão também.

Delícia era permanecer ali, uma verdadeira tourada à inquietação, até chegar nossa vez e acompanhar, encantados, a vibração do disco quente a produzir teias de fios finíssimos, que rapidamente se amontoavam e engrossavam ao redor de uma hastezinha de bambu inteirando-se em alvos e doces chumaços a adoçar nosso desejo, inquietação, harmonia e felicidade.

Nossos olhos se injetavam nas órbitas, esperando o momento da primeira bocada morna que rapidamente sumia derretida calcando na boca o sabor inigualável do açúcar queimado, para deixar fiapos incrustados ao redor da boca até o nariz que nos faziam estirar a língua para não perder um tico da gostosura... Coisas que produziam felicidade na simplicidade do algodão.

Ouso dizer que não conheço doce mais doce a se inventar, não com a doçura definitiva e inconfundível que trazia o bem-querer entre a transição da infância e puberdade.

Claro que cada um pode escolher qualquer doce que represente o sorriso.

O doce que escolho se esconde no açúcar trefilado por aquecimento e centrifugação em máquinas especiais, magicamente transformado em fios e estes em chumaços... como os que encontrávamos nas portas de circos e parques, no saudoso ontem.

Fontes: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor
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Paulo Cezar Tórtora* (Crônica de uma manhã de sol)


A janela aberta, no sétimo andar do hotel em uma cidade serrana, despeja para dentro do meu 
apartamento a exuberância da mata atlântica, a apenas alguns metros de distância. O sol matinal abraça a vegetação, celebrando a explosão de vida que grassa por entre o arvoredo.

Debruçado à janela reparo, tocaiado entre os arbustos, o menino. Silencioso, espreita sua caça. Tem nas mãos uma atiradeira, que retesa, apontando cuidadosamente para a copa das árvores mais altas. Os dedos que distendem os elásticos abrem-se, simultaneamente! Consigo ouvir a bolinha de gude partir como uma bala, "zásss!...", estraçalhando a folhagem em seu caminho até emudecer o canto de um sabiá, num baque surdo que arrebenta seu peito.

O menino corre a tempo de aparar a queda do corpo agonizante, antes mesmo que ele chegue ao chão. Assiste, impassível, ao último estertor da ave moribunda, em suas próprias mãos. Nem liga para o rubro do sangue que tinge seus dedos. Ao ver-me na janela a observá-lo, esboça um sorriso e some por entre as árvores.

Na sua inocência ignora que seu casto sorriso celebra a ignorância. Desconhece o que seja a covardia, a brutalidade gratuita e as mais elementares leis do convívio harmonioso entre homens, natureza e animais ditos irracionais. Terá pais que moldem seu caráter ainda na infância? Tornar-se-á um homem de bem? Quem poderá adivinhar os caminhos que lhe reservam os enredados fios do destino?...

Sem muita convicção, disse para mim mesmo que tudo daria certo, era preciso ser otimista. Afinal, era apenas um menino. Recolhi minhas dúvidas e apreensões. Fechei a janela. Fui para a rua. Lá fora a aurora me chamava.
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* O autor é Do Rio de Janeiro/RJ

(esta crônica obteve o 4. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
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domingo, 24 de novembro de 2024

Luiz Poeta (Nuvens de Sonhos) 02

 

José Feldman (O Relógio das Memórias)

Em um futuro não muito distante, as pessoas começaram a perceber que o tempo não era apenas uma sequência de momentos, mas uma tapeçaria intricada de memórias. Em uma pequena cidade chamada Palatium, um inventor excêntrico chamado Victor criou um dispositivo revolucionário: o “Relógio das Memórias”. Este relógio tinha a capacidade de capturar e reproduzir memórias de forma vívida, permitindo que as pessoas revivessem momentos de suas vidas como se estivessem acontecendo novamente.

Victor, um homem de cabelos desgrenhados e olhos brilhantes, sempre acreditou que as memórias eram a essência da vida. Ele passou anos em seu laboratório, cercado por engrenagens e dispositivos, até que finalmente completou sua obra-prima. O Relógio das Memórias não apenas armazenava recordações, mas também as transformava em experiências sensoriais completas. As cores, os sons, os cheiros — tudo poderia ser revivido com um simples toque.

A cidade estava em polvorosa quando Victor apresentou seu invento ao público. 

“Imaginem, meus amigos!” ele exclamou. “Poder reviver os melhores momentos de suas vidas! Conhecer novamente aqueles que amamos, sentir a euforia da juventude, ou até mesmo corrigir erros do passado!” 

A multidão estava atenta, maravilhada com a ideia de ter suas memórias ao alcance da mão.

Entre os espectadores estava Clara, uma jovem professora de história. Clara sempre teve um amor profundo pelas memórias, especialmente as de sua infância, quando passava horas ouvindo sua avó contar histórias de tempos passados. Ao final da apresentação, Clara sentiu uma atração irresistível pelo Relógio. O desejo de reviver suas memórias mais queridas a levou até Victor.

“Posso experimentar?” perguntou Clara, sua voz trêmula de emoção.

“Claro!” respondeu Victor, ajustando os dials do relógio. “Escolha uma memória.”

Clara hesitou, mas logo decidiu: “Quero reviver o dia em que minha avó me contou sobre sua juventude.”

Assim que Clara tocou o relógio, a sala se iluminou e, em um piscar de olhos, ela se viu na cozinha de sua avó, o aroma de bolo de cenoura fresco no ar. As paredes estavam adornadas com fotos antigas, e o sol filtrava-se pelas cortinas, criando um ambiente acolhedor. Sua avó, com um sorriso caloroso, começou a falar sobre sua juventude e as aventuras que a vida lhe proporcionara.

Clara sentiu a alegria inundar seu coração. Ela riu, chorou e se lembrou do quanto amava aquelas histórias. O tempo passou, mas para Clara, tudo parecia tão real quanto antes. No entanto, quando a experiência terminou, uma tristeza profunda a envolveu. Ela percebeu que, apesar de reviver momentos felizes, não poderia alterar o que havia passado.

Com o passar do tempo, o Relógio das Memórias se tornou uma sensação na cidade. As pessoas começaram a usá-lo com frequência, cada vez mais dependentes das memórias que podiam reviver. No entanto, algo bizarro começou a acontecer. As pessoas estavam se tornando incapazes de viver no presente. Elas se isolavam, preferindo a segurança de suas memórias a enfrentar a realidade.

Clara, preocupada com o que estava vendo, decidiu confrontar Victor. 

“Victor, as pessoas estão se perdendo! Elas estão tão obcecadas por reviver suas memórias que esquecem de viver! O relógio se tornou uma prisão!”

Victor, que antes estava entusiasmado, agora parecia preocupado. 

“Eu não previ isso. A intenção era boa, mas talvez tenhamos aberto uma porta que não deveria ser aberta.”

Determinada a mudar a situação, Clara começou a pesquisar sobre o impacto das memórias e do tempo na vida humana. Ela descobriu que as memórias, embora belas, também podiam ser dolorosas. A idealização do passado impedia que as pessoas apreciassem o presente e planejassem o futuro.

Clara decidiu que precisava fazer algo radical. Junto com algumas pessoas da cidade, criou um movimento chamado “Viva o Agora”. As pessoas eram incentivadas a se desconectar do Relógio e a redescobrir a alegria de viver no presente. Era uma batalha difícil, pois o Relógio havia se tornado um símbolo de status e felicidade.

Em um evento público, Clara subiu ao palco e se dirigiu à multidão. 

“Amigos, o passado é uma parte de quem somos, mas não podemos deixá-lo nos aprisionar! Precisamos viver cada dia como se fosse um novo começo! O Relógio das Memórias pode ser uma ferramenta, mas não pode ser a nossa vida!”

Enquanto falava, Victor a observava, orgulhoso e triste ao mesmo tempo. Ele percebeu que havia criado algo que não só capturava memórias, mas também capturava as pessoas. Ele decidiu desativar o Relógio, mesmo que isso significasse perder sua invenção.

A decisão de Victor trouxe a cidade de volta ao presente. As pessoas começaram a se reconectar com suas vidas, a valorizar o que tinham agora, ao invés de viver no passado. Clara tornou-se uma líder na comunidade, ajudando as pessoas a entender o valor do presente.

O Relógio das Memórias foi desmontado e suas peças foram transformadas em arte. As pessoas começaram a criar suas próprias histórias e memórias, agora sem a ajuda de um dispositivo. Elas aprenderam a aceitar o tempo como um fluxo natural, onde cada momento, por mais simples que fosse, tinha seu valor.

Anos depois, em uma tarde ensolarada, Clara estava sentada em um parque, cercada por crianças rindo e brincando. Ela sorriu ao lembrar de sua avó e das histórias que tanto amava. Agora, Clara contava suas próprias histórias para as crianças, criando novas memórias.

E assim, a passagem do tempo tornou-se uma celebração da vida. As memórias não eram mais algo a ser revivido, mas uma parte de uma narrativa contínua. O Relógio das Memórias pode ter desaparecido, mas a essência do tempo, com todas as suas alegrias e tristezas, continuava a ser a verdadeira magia da vida.

Fontes: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Ronaldo Henrique Barbosa Júnior* (A um passarinho)


Mal pus os pés no chão, ouvi um barulho diferente vindo da janela da sala de estar. Eu ouvia periódicas batidas no vidro, no que me apressei em afastar as cortinas para descobrir a causa de tal barulho.

A manhã ainda guardava uma névoa da madrugada, e o sol era apenas uma fresta a dar um tom azul-grisalho para o céu, ostentando suas dimensões nas peculiaridades infinitas: cada canto era um novo sabor a inundar os olhos, alumiando as retinas recém-acordadas.

O visitante que batia no vidro tinha a beleza de uma pétala e a efemeridade de uma gota de orvalho: um canário vinha chamar a atenção nas vidraças repleto de fugacidade a ensolarar aquele pedaço de manhã.

Minha primeira reação foi de espanto; não se tratava de uma visita típica, e o sabor da primeira vez possui nuances de felicidade.

Desde então, recebo-o todos os dias por volta do mesmo horário, como se viesse a mando do sol para anunciar a vida, repleto da leveza e da altivez própria dos pássaros, sempre trazendo o aprazimento que incendeia o espírito com seus manifestos trilantes.

Tenho para mim que ele vem me visitar por uns versos: a inspiração bate asas e toca com o bico na janela de casa, voando para o fio com sua beleza fundamental quando me aproximo para lhe contemplar.

Eu, no entanto, dou-lhe esta prosa na esperança de que retorne na próxima manhã e me traga as boas-novas do dia, extraindo de mim um primeiro riso a caçoar do tempo, posto que o vento me traz um suspiro de enlevo a me tornar locupleto.

As aves são fascinantes; fico a observar os serelepes passarinhos a sobrevoar a praça; os inquietos cantores no alto das árvores; e até aqueles que, podendo voar, arriscam-se a passear no chão, em pulinhos sem rumo à procura de algo para beliscar.

Meu visitante é um desses tantos pequeninos – fragmento de natureza - a traduzir seus sentimentos em cantos, numa pureza intocável, vítima da selvageria cega, incapaz de poluir a própria alma com mazelas do mundo: ele absorve as misérias e as dissipa pelo universo, talismã que é.

Queria eu poder não ser notado para abrir a janela e observá-lo calmamente mais de perto, pois pedaços do céu não ficam por muito tempo: esvoaçam no primeiro olhar de um admirador terreno - mal sabe que o quero era liberdade!

Há quem não entenda a beleza das aves; presas em gaiolas, são bibelôs a simbolizar o cárcere, pois desconhecem os infinitos azuis e cantam pela alforria num divino lamento. Soltas, guardam latente o lirismo que traduz a alma, são versos insensatos a nos advertir sobre o valor da existência - basta ter ouvidos para suas batidas na janela.
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* O autor é de Campos dos Goytacazes/RJ

(esta crônica obteve o 3. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
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