segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Silmar Bohrer (Croniquinha) 141

A chuva invadiu a noite silenciosa, varou a madrugada na sinfonia da calha, borrifando a manhã de domingo. A tarde surgiu com nuvens bordando o infinito como mágicos cágados celestiais. 

Assim também no mapa do tempo dos nossos dias somos assolados por chuvas, temporais, negrumes que assustam e abalam qualquer um.  Mas nossos EUS – eles são dezenas - nos acodem e nos sossegam quando temos necessidades. 

Tantas vezes ligo o modo do EU ESPERANÇA, do latim "Sperare, contar com, confiar em", em situações de alarme e medo, e depois sou municiado com alguns dos EUS companheiros que alimentam a vida - EU do OTIMISMO, EU da REALIDADE, EU do BOM SENSO, EU do BEM ESTAR, EU do INSÓLITO, EU das VERDADES INSOFISMÁVEIS... 

A legião dos nossos EUS inspira e apoia e instiga a combater, rebatendo ideias e sentimentos negativos em momentos de aflição. Guarida ao mundinho interior que resguarda o "de vez em quando" das maldades e infortúnios. 
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Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).
Fontes:
Texto enviado pelo autor
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Aparecido Raimundo de Souza (Versos bobos de quem não tem o que fazer)


1
Voltei ao lugar onde nasci.
Revi rostos, matei saudades.
Muitos não estão mais aqui,
partiram em tenras veleidades.
2
O meu silêncio está no seu rosto,
o meu dá para se ver também.
Meu Deus, que grande desgosto 
para em você e em mim, meu bem.
Estou boquiaberto,
além de sozinho,
me vejo num deserto
sem você e sem carinho.
4
Parti sem dizer adeus
e agora bateu a saudade...
Ainda recordo os olhos seus
perseguindo-me pela cidade.
5
Foi uma noite de tormento,
a saudade de você apertou,
a ponto de até em pensamento
esquecer que você me abandonou.
6
Volte para mim,
não me abandone...
Sem você será meu fim,
sem falar na dor que me consome.
7
O que eu fiz da minha vida?
Perdi tudo e aqui estou...
Minha estrada se fez perdida,
tudo o que eu tinha desmoronou.
8
Você chegou
de repente, do nada
e eu sorri...
de felicidade.
Contudo, logo depois
você se foi,
e ainda agora
aqui estou
acorrentado em enorme saudade.
9
Sou a saudade
que você deixou
à hora amarga do seu adeus...
Hoje sou “o tudo
que restou do nada” ,
além das lágrimas dos olhos seus.
10
Vai, me leva pra sua casa,
quero ser o seu amor.
Com você a minha imaginação cria asas
apesar desse seu desamor...
Porém, não sou desistir,
nem entregar os pontos,
um dia você vai descobrir
que fomos em matéria de amor... dois tontos.

Por fim, para terminar, 
entre dois olhares, 
a distância se estendeu como um suspiro.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.
Fontes:
Versos enviados pelo autor.
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A. A. de Assis (A Galinossaura)

Primeiro uma coisinha: para a gramática, “dinossauro” é um substantivo epiceno, ou seja, unissex. Acho, porém, complicado ter que dizer “dinossauro macho / dinossauro fêmea”. Prefiro então simplificar: digo “a dinossaura”. Tá bem assim?

A descoberta é bem antiga, provavelmente do tempo do professor Darwin, mas só recentemente vi no Google a confirmação de que a galinha (nossa pacata galinha dos gostosos ensopados de mandioca) é uma minidinossaura. É sim.

Tá lá escrito: “As galinhas são descendentes de um grupo de dinossauros chamados terópodes. Essa relação é evidenciada por semelhanças anatômicas e genéticas”. 

Com base numa bonita história tecida ao longo de um montão de milênios, os cientistas concluíram que a galinha teve como tataraparenta uma dinossaura. Como prova disso chamam atenção para o jeito como as galinhas andam e para o esqueleto delas: as pernas, as asas, o pescoço comprido, os ossos ocos. 

Reparando bem, a semelhança é grande mesmo, inclusive e também pelo fato de a dinossaura  se multiplicar botando ovo. Só que porém fico pensando no tamanho do ovo dela. E no barulho do coró-cocó que ela fazia cada vez que botava um daqueles ovões. Devia tremer a terra alguns quilômetros em redor. 

Mas o mais complicado seria entender como foi que a dinossaura, originalmente um bicho tão grande, conseguira encolher a ponto de caber num micro-ondas...

Então fico com uma hipótese que me parece mais viável: a de que a galinha não “foi” uma dinossaura; a galinha “é” uma dinossaura.

Tá lá igualmente anotado no Google o registro de que havia numerosas espécies de dinossauros e essas espécies variavam muito em tamanho – desde aqueles baitas de 70 toneladas até um pássaro pequenininho.

Vai daí que me permito crer que pode ter sido assim: os dinossauros grandes devoravam tudo o que aparecesse à sua frente, disso resultando que começou a faltar alimento. Foi indo até que os bichos maiores acabaram morrendo de fome, sobrevivendo somente os menorzinhos, que a natureza conseguia sustentar, entre os quais os tico-ticos e as nossas mimosas “galinossauras”.

Porém calma lá. Não sou naturalista, biólogo, etólogo, paleontólogo, geólogo, ecólogo, não tenho nenhuma dessas competências. Falo apoiado apenas na intuição de poeta, e nesse campo há poesia à beça.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 04-9-25)
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A. A. DE ASSIS (Antonio Augusto de Assis), poeta, trovador, haicaísta, cronista, premiadíssimo em centenas de concursos nasceu em São Fidélis/RJ, em 1933. Radicou-se em Maringá/PR desde 1955. Lecionou no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá, aposentado. Foi jornalista, diretor dos jornais Tribuna de Maringá, Folha do Norte do Paraná e das revistas Novo Paraná (NP) e Aqui. Algumas publicações: Robson (poemas); Itinerário (poemas); Coleção Cadernos de A. A. de Assis - 10 vol. (crônicas, ensaios e poemas); Poêmica (poemas); Caderno de trovas; Tábua de trovas; A. A. de Assis - vida, verso e prosa (autobiografia e textos diversos). Em e-books: Triversos travessos (poesia); Novos triversos (poesia); Microcrônicas (textos curtos); A província do Guaíra (história), À moda de haicais, etc.
Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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domingo, 7 de setembro de 2025

Asas da Poesia * 87 *


Poema de
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE
Pinhalão/PR

Doce realidade
"As vigas de nossa casa são de cedro;
suas traves, de cipreste”
(Ct. 1.16)

Lembram o azul do brilhante
Teus radiantes olhos vivos,
Contemplando a liberdade,
Que não mais te está distante.
Que dia feliz é este,
Oh, doce realidade!

Têm o frescor do jasmim
Os teus discretos cabelos;
Aroma e suavidade,
Que nunca se viu assim.
Que dia feliz é este,
Oh, doce realidade!

O mais ardoroso humor
Cora tua face tão alva,
Com suspiros de ansiedade
De um coração de amor.
Que dia feliz é este,
Oh, doce realidade!

Libertar-te-ão dos grilhões,
Meiga pomba dos meus sonhos,
Unirá a felicidade
Os nossos dois corações.
Que dia feliz é este,
Oh, doce realidade!

Que vá embora a tristeza!
Enxuga a lágrima, amor!
Abraçando a liberdade,
Serás feliz, com certeza...
Que dia!.. Quanta alegria!.
Oh, doce realidade!..
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QUADRA POPULAR

A árvore do amor se planta
no centro do coração;
só a pode derrubar
o golpe da ingratidão.
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Poema de
ARTUR DA TÁVOLA
(Paulo Alberto Moretzsohn Monteiro de Barros)
Rio de Janeiro/RJ,  1936 – 2008

Manhãs

Manhãs indefinidas,
O Cisne de Tuonela
Vagueia na alma.
O vento está enigmático.

Manhãs sem sol,
Nem definição de vida,
Esparsas lembranças,
Atiçam o burlar deveres.

Manhãs molengas,
Somos todo interioridades,
Lembranças do ignoto
Sem alegria ou tristeza.

Manhãs brumosas
O céu indefinido.
Nenhuma cor predomina
Na alma estapafúrdia.

Manhãs ganho-perdidas
Na falta de vontade
E um torpor com algo de delícia
Pacifica a imposição do poema

Manhãs serenas
Nem preguiça nem ações
Espaço da alma em preparo,
Sem recados, alusões ou deveres.

Manhãs sorrateiras,
O bem e o mal em silêncio.
Uma dor que alivia
O susto de existir.
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Soneto de 
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895 – 1926

História Antiga

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi… um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era… Não sabia…

Desde então transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente…

Nunca mais nos falamos… vai distante…
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la…
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Trova de 
ADELIR COELHO MACHADO 
São Gonçalo/RJ, 1928 - 2003, Niterói/RJ 

Se a noite chega cansada
de caminhar sempre ao léu,
Deus dá vinhos de alvorada
na taça rubra do céu.
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Poema de
ÉLBEA PRISCILA DE SOUZA E SILVA
Piquete/SP, 1942 – 2023, Caçapava/SP

Cromo

Tro – pe – ga – men – te
sobe a ladeira,
bengala em punho,
passo de rola cansada.

Estanca… é hora
de atravessar a larga avenida.

Vermelho? Verde? Olha o sinal,
o sol é forte, seus olhos fracos,
o mundo, jovem, e ela… tão velha!

Ela vacila: – Será que há tempo?
Suor frio sob o sol quente…

- Vamos, vovó?
E a mão macia
Conduz a sua.

O sol sorriu ao ver a cena,
a tarde aplaudiu
e o pano se fecha
guardando o pequeno e imenso gesto
de cordialidade…
cordial… de coração…
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TROVA FUNERÁRIA CIGANA

Brilhava em céu azulado...
Negra nuvem me toldou...
Por perder quem me seguia,
minh'alma aflita chorou.
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Soneto de 
BENI CARVALHO
Aracati/CE, 1886 – 1959, Rio de Janeiro/RJ

O cais

Quando te vejo, velho cais, em ruínas,
perscruto a tua vida secular:
— Manhãs radiosas em que te iluminas!
— Serenas noites de encantado luar!

Viste, partindo, ao canto das matinas,
velhas naus, brancas velas, pelo mar:
— Dourados sonhos, ilusões divinas,
ânsia de descobrir e conquistar!

Hoje, todo em tristeza, te esbarrondas;
mas uma voz oculta, dentre as ondas,
te diz: "A sorte não te foi tão má:

Terás, em ti, esta legenda impressa:
— Recolheste o sorrir do que regressa
e a saudade de quem não voltará".
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Trova de
LEONILDA YVONNETI SPINA 
Londrina / PR

Com fé, ao romper da aurora,
vai à luta o agricultor;
de sol a sol, não tem hora
para findar seu labor.
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Poema de 
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Procura-se um Papai Noel

Procura-se um Papai Noel bem brasileiro,
Com total verde-amarelo em seu visual.
Nada de indumentária vinda do estrangeiro,
Terá que mostrar sua origem tropical.

Procura-se um Papai Noel de tez morena,
Trazendo às crianças o sabor da surpresa,
Magia que o comércio retirou de cena
Na ânsia de vender, de acumular riqueza.

Procura-se um Papai Noel que abrace forte,
Um abraço bem ao modo tupiniquim...
Um gesto sem a frieza do Polo Norte,
Bem ao estilo dos que meu pai dava em mim.

Procura-se um Papai Noel, sorriso aberto,
Que a criança possa tocar, ver e curtir.
E que seu presente só seja descoberto
No exato momento em que o "Velhinho" partir.

Procura-se um Papai Noel de nossa gente.
Viajante de trenó e renas, jamais!
Nós almejamos alguém que esteja presente.
Muito nosso, sim!... Dos Pampas aos Seringais.
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

A renúncia corresponde, 
muita vez, a muito amar; 
como quando o Sol se esconde 
para que brilhe o luar! 
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Soneto de
OVÍDIO FERNÁNDEZ RIOS
Montevidéu/Uruguai, 1883 – 1963

Elogios

Teus olhos têm momentos desiguais;
sua luz ora é plácida, ora é ardente,
é o suave fluir da água corrente
ou o relampejar de dois punhais.

Estranhos pirilampos de savanas
brilhando nos meus céus tão desolados,
são dois negros diamantes resguardados
por tuas magníficas pestanas.

Únicos olhos que hão por mim chorado,
únicos olhos que hão interpretado
toda a minha alma lutadora e forte;

quero que sejam, com sua luz querida,
os únicos a rir em minha vida,
os únicos que chorem minha morte.
(Tradução de Othon Costa)
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Trova de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Lembrando a ternura antiga,
minha saudade se exalta...
- Bendigo a penumbra amiga
que me esconde a tua falta!
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Hino de 
MOSSORÓ/RN

I
Nas crônicas da gente brasileira,
Queremos um lugar pra Mossoró,
Cidade centenária e pioneira,
Desbravadora do ínvio Sertão;
Sofreram os seus filhos a canseira;
Viveram na esperança a vocação:

Mas assim se fez a sorte
Com inusitado amor;
A cruel gleba gleba domaram
E fluíram seu valor

Estribilho
Mossoró de Baraúnas a terra;
heroico sítio da Virgem Luzia;
Teu nome sonoro remonta a era
De índios valentes das margens do rio
Que longe nasce no Oeste bravio.

II
Lembramos hoje teus anos de glória:
Ousada foste sempre Mossoró;
Por ti começa, a senda da vitória
Na luta ao cangaceiro lampião;
Precursora exemplar da Pátria História
Em abolir a negra escravidão:

Nem a seca já temeste
Com seu infernal calor;
Encontraste a boa linfa
Que teu povo saciou

III
Bondosa se mostrou a Natureza
Em cumular de dons a Mossoró:
Das várzeas e do sol vem a riqueza,
O Sal, precioso sal, que o mar produz;
Nas matas da Caatinga ao estio acessa,
A nívea vela do Algodão reluz;

Vem a brisa do Nordeste,
Mensageira do alto Mar,
As carnaubeiras belas,
Sussurrantes, embalar

IV
Ao povo, a seus feitos, à cidade,
Cantemos este hino de louvor,
Legado de esperança à mocidade
Em grandiosos dias no porvir;
Moldado desta forma se retrate
Como em gesso fiel nosso sentir:

Seja nosso grande lema,
Construindo pela Paz,
A conquista do Progresso
Que feliz o povo faz
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Trova de 
JOSÉ MACHADO BORGES
Belo Horizonte/MG

Do peixe, como eu dizia, 
sem pretensão de iludi-los, 
somente a fotografia 
pesava mais de oito quilos!
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Poema de 
CASSIANO RICARDO
São José dos Campos/SP (1895 – 1974) Rio de Janeiro/RJ

O acusado

Quando eu nasci, já as lágrimas que eu havia
De chorar, me vinham de outros olhos.

Já o sangue que caminha em minhas veias pro futuro
Era um rio.

Quando eu nasci já as estrelas estavam em seus lugares
Definitivamente
Sem que eu lhes pudesse, ao menos, pedir que influíssem
Desta ou daquela forma, em meu destino.

Eu era o irmão de tudo: ainda agora sinto a nostalgia
Do azul severo, dramático e unânime.
Sal - parentesco da água do oceano com a dos meus olhos,
Na explicação da minha origem.

Quando eu nasci, já havia o signo do zodíaco.

Só, o meu rosto, este meu frágil rosto é que não
Quando eu nasci.

Este rosto que é meti, mas não por causa dos retratos
Ou dos espelhos.

Este rosto que é meu, porque é nele
Que o destino me dói como uma bofetada.
Porque nele estou nu, originalmente.
Porque tudo o que faço se parece comigo.
Porque é com ele que entro no espetáculo.
Porque os pássaros fogem de mim, se o descubro
Ou vêm pousar em mim quando eu o escondo.
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Trova de
DIONEZINE DE FÁTIMA NAVARRO 
Ponta Grossa / PR

Mil auroras já vivi
e a que almejo é sem igual:
Pura tela em frenesi,
joia rara e... boreal!
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O faceto* e os peixes

À mesa dum fidalgo
Um faceto jantava.
Graúdos peixes servem aos convivas;
A ele, um mui pequeno.
«Esperem, que eu lhes conto!» — diz consigo;
E, pegando no peixe,
Finge baixo falar-lhe, — e de resposta
Parece estar à espera,
Pasmam todos, perguntam
Da charada o conceito.
«É que receio, —
Diz então o faceto, — que um amigo,
De infância um companheiro, naufragasse
Da Índia na carreira.
Informar-me tentei deste peixinho;
Porém diz-me que sendo ainda tão novo
Nada pode contar-me; que os mais velhos
Decerto me esclarecem.
Permitam, pois, senhores, que interrogue
Algum dos mais graúdos!»
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
faceto = brincalhão, humorístico, folgazão
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Trova de
GERALDO TROMBIM 
Americana / SP

Vida de noites sombrias,
de sonhos jogados fora:
é sinal de que os meus dias
não são mais feitos de aurora!
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José Feldman (A Porta fujona)

Era uma manhã ensolarada em um bairro tranquilo, onde a rotina dos moradores seguia em um compasso sereno. No entanto, na entrada de uma casa localizada em uma ladeira, um grupo de homens estava prestes a transformar essa tranquilidade em um espetáculo cômico. Eles eram os instaladores da nova porta de correr, e a expectativa era alta — uma porta de correr sempre traz um toque de modernidade!

Com a fita métrica em mãos e a serra elétrica zumbindo, os homens estavam concentrados na tarefa. Entre eles estava o chefe, um tipo bem-humorado chamado João, que sempre fazia piadas para aliviar a tensão. “Se essa porta fosse mais rápida, eu a contrataria para correr na maratona!” disse ele, rindo.

Após algumas tentativas e erros, a porta estava finalmente instalada, mas os homens, em um momento de distração e descoordenação, esqueceram de fixá-la corretamente. E, como se a própria porta tivesse vida, ela decidiu que era hora de uma aventura.

De repente, a porta escapuliu de suas garras e, com um estrondo, começou a deslizar ladeira abaixo. 

“Ei! Volta aqui!” gritou Carlos, o ajudante mais jovem, enquanto seus colegas se entreolhavam em estado de choque. 

A porta, agora em plena fuga, derrubou uma lata de lixo, espalhando garrafas e restos de comida por toda a calçada.

As pessoas que passavam, inicialmente perplexas, começaram a reagir. Uns corriam para se afastar da porta descontrolada, enquanto outros paravam para rir da cena inusitada. Uma senhora, com um gato no colo, soltou uma gargalhada tão alta que fez o animal pular e sair correndo.

Carlos e seus colegas, em uma corrida frenética, tentavam alcançar a porta. 

“Parece que a porta tem mais energia que a gente!” gritou Pedro, um dos instaladores que já estava sem fôlego. 

A porta continuava sua corrida, desgovernada, e a cada metro que descia, deixava um rastro de destruição. Bicicletas foram derrubadas, e um ciclista que vinha descendo a ladeira teve que se desviar, quase caindo ao chão.

“Isso é um verdadeiro filme de ação!” exclamou um morador que assistia a tudo de sua varanda, enquanto outros começavam a filmar a cena com seus celulares.

Em meio à confusão, um dos homens, o robusto Roberto, decidiu que seria o herói do dia. Ele viu a porta se aproximando e, em um impulso, lançou-se na direção dela como um jogador de futebol, tentando agarrá-la. Mas a porta, indiferente aos seus esforços heroicos, continuou deslizando. Roberto ficou agarrado na borda, sendo arrastado ladeira abaixo como um brinquedo de criança.

“Me solta! Me solta!” ele gritava, enquanto a porta ignorava seu apelo, correndo mais rápido do que ele. O grupo de instaladores, agora em uma verdadeira missão de resgate, corria atrás deles, com gritos de desespero.

Finalmente, após o que pareceu uma eternidade, a porta encontrou um obstáculo: uma árvore robusta. Com um baque surdo, ela colidiu contra o tronco e parou abruptamente. Roberto, aliviado, se desvencilhou da porta, caindo no chão com um suspiro de alívio e uma expressão que misturava cansaço e incredulidade.

Os homens se reuniram ao redor da porta, agora paralisada, e começaram a rir descontroladamente. 

“Acho que ela estava apenas procurando uma nova casa!” comentou Carlos, enquanto todos riam para aliviar a tensão.

Aquela manhã, que havia começado como um simples dia de trabalho, se transformou em uma memória inesquecível para todos os presentes. E, claro, a ladeira nunca mais seria vista da mesma forma. Para os moradores, a porta de correr que havia fugido se tornaria uma lenda local — a história da porta que decidiu dar uma volta.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais e oficina de trovas. Morou 40 anos na capital de São Paulo, onde nasceu, ao casar-se mudou para Curitiba/PR, radicando-se em Maringá/PR, cidade onde sua esposa é professora da UEM. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a Confraria Brasileira de Letras, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, etc. Possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações: 
Publicados: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”.
Em andamento: “Pérgola de textos”, "Chafariz de Trovas", “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Asas da poesia”, "Reescrevendo o mundo: Vozes femininas e a construção de novas narrativas".

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Contos Tradicionais da Irlanda (O homem que não sabia nenhuma história)

Há muito, muito tempo, os campos estavam cheios de pessoas, na sua maioria malabaristas, cantadores, tocadores de violino e outros músicos. Chegou um momento em que os habitantes expulsavam da sua porta quem não soubesse tocar música ou executar qualquer outra diversão.

Mas houve uma vez, um jovem caminhante chamado Paití Nábla Móire, que não sabia histórias, nem canções, e era tão triste que ninguém fazia caso dele, nem o queria receber em sua casa. 

Uma noite, chegou a Teilionn e andou de porta em porta à procura de alojamento, mas ninguém o aceitava. Continuou, então, a caminhar e não se deteve até chegar a Glen, onde também não encontrou acolhimento. Por fim, bateu à porta de um homem que não era dali, cuja mulher disse:

— Como não tens qualquer diversão para oferecer, não te recebo com gosto, mas, em todo o caso, não acho acertado bater com a porta na cara de ninguém, sobretudo a uma hora tão avançada. Podes ficar até amanhã no palheiro que há aí fora.

— Agradeço-te de todo o coração.

Paití Nábla Móire encaminhou-se para lá e instalou-se o melhor possível entre a palha.

Havia algum tempo que estava deitado, quando entraram três homens que transportavam um cadáver, um dos quais lhe deu um pontapé.

— Levanta-te, Paiti Nábla Móire, e vela este homem até ao amanhecer — ordenou-lhe. — É o nosso pai, que morreu, e temos de ir procurar comida. — Acenderam uma fogueira junto do corpo sem vida. — Aconteça o que acontecer, não deixes as chamas chegarem à mortalha.

O infortunado Paití ficou a guardar o cadáver o melhor que podia. Um pouco mais tarde, pareceu-lhe que o morto o olhava, pelo que se encolheu a um canto atrás da porta, fora do seu campo visual. De repente, levantou-se uma forte rajada de vento, que abriu a porta violentamente e espalhou o lume, pelo que a mortalha também ardeu, ante o profundo pavor de Paiti. Só Deus sabia a angústia terrível que o assolou!

Pouco depois, regressaram os três irmãos.

— Fizeste um bonito serviço, Paití Nábla Móire! A mortalha ardeu! Vais ter de pagar por isso. Lançar-te-emos ao lume, para que ardas também.

Dois deles seguraram-no pela cabeça e pelos pés, mas o terceiro disse:

— Larguem-no. Talvez nos possa ajudar a enterrá-lo.

Por conseguinte, levaram-no para fora do palheiro e começaram a abrir uma fossa com a pá. Ao mesmo tempo, puseram-se a discutir — um achava que era suficientemente grande e o outro pensava o contrário.

— Está bem — acabou por dizer um. — O Paití e o nosso pai são da mesma estatura. Atiremo-lo a ele para a cova. Se couber, também servirá para o pai.

Assim, pegaram no cada vez mais alarmado Paití, largaram-no na abertura e lançaram-lhe em cima algumas pazadas de terra. Quando tentava levantar-se, um dos irmãos atingiu-o com a pá na cabeça. Deste modo, permaneceu deitado até que ficou totalmente coberto, enquanto soltava uivos de medo tão intensos que quase poderiam comover as pedras. 

Finalmente, o dono da casa ouviu os gritos e inteirou-se da loucura que se desenrolava no palheiro. Levantou-se da cama, correu para lá e, quando abriu a porta, o infortunado Paiti já perdera o juízo em virtude do pânico.

— Céus! — bradou. — Que aconteceu?

— Fiz mal em ficar na tua casa — lastimou-se Paiti. — Deus e a Virgem Maria sabem bem a noite que passei.

— Vem comigo — indicou o outro. — Dar-te-ei de comer antes que sigas o teu caminho.

— Não, obrigado.

— Tens de me acompanhar, para que te compense de certo modo dos aborrecimentos que sofreste.

— Passei a noite mais horrível de toda a minha vida.

Quando terminaram de tomar o pequeno almoço, o homem disse:

- Tiveste muita sorte em vir ontem à minha casa, depois de vagueares por aí sem que ninguém quisesse receber-te. Doravante, não haverá nenhuma em que queiras entrar sem que sejas bem recebido, pois já tens uma bela e longa história para contar!
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OS CONTOS TRADICIONAIS DA IRLANDA, são um rico legado cultural que reflete a história, as crenças e as experiências do povo irlandês ao longo dos séculos. Esses contos frequentemente giram em torno de temas como magia, heroísmo, amor e tragédia, e são povoados por uma variedade de personagens fascinantes, incluindo fadas, gigantes, heróis e deuses. Um dos aspectos mais notáveis destes contos é a presença de criaturas mágicas, como os "leprechauns", pequenos duendes associados à sorte e ao tesouro, e as "sídhe", que são espíritos das colinas, muitas vezes vistos como os antigos habitantes da terra. Os contos frequentemente exploram a interação entre os humanos e essas entidades, refletindo uma profunda crença na magia que permeava a vida cotidiana dos irlandeses. Os heróis das histórias, como Cú Chulainn e Fionn mac Cumhaill, são frequentemente retratados como figuras valentes que defendem sua terra e seu povo. Suas aventuras não apenas entretêm, mas também transmitem valores como coragem, lealdade e honra, fundamentais para a identidade irlandesa. Além disso, muitas narrativas abordam temas de amor e perda, como em "Deirdre de Lamentações", uma tragédia que fala sobre amor proibido e sacrifício. 

O impacto desses contos na vida dos irlandeses é profundo, servindo como uma forma de preservação da cultura e da história. Eles são frequentemente contados em reuniões familiares, festivais e celebrações, ajudando a manter viva a conexão com as tradições ancestrais. Além disso, esses contos influenciaram a literatura e as artes irlandesas modernas, inspirando escritores como W.B. Yeats e James Joyce. A tradição da narrativa oral influenciou a forma como os escritores irlandeses estruturam suas histórias. Elementos como repetição, diálogo vibrante e personagens arquetípicos são comuns na literatura irlandesa. O uso de símbolos e metáforas, como a natureza e os seres mágicos, é uma característica marcante na obra de escritores como W.B. Yeats, que frequentemente buscava transmitir significados mais profundos através de seus poemas. A literatura contemporânea irlandesa, como a obra de Colm Tóibín e Anne Enright, frequentemente dialoga com essas tradições, mantendo viva a conexão com o passado.

As crenças expressas nos contos refletem uma visão de mundo onde o sobrenatural é parte integrante da realidade. A reverência pela natureza, a importância da comunidade e a conexão com os ancestrais são temas recorrentes que evidenciam a espiritualidade do povo irlandês. Assim, os contos tradicionais não são apenas histórias; são um espelho da alma da Irlanda, que continua a ressoar nas gerações atuais. 

Fontes:
Contos Tradicionais da Irlanda. in Ulf Diederichs. Palácio dos Contos. Lisboa: Círculo de Leitores,  maio de 1999. Disponível em http://guida.querido.net/contos/irlanda.htm#homem
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