quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Puxa-Saco”


No uso doméstico, é um equipamento de tecido com formato de biruta de aeroporto, que na vertical serve para guardar sacos plásticos, nele inseridos pela parte de cima e retirados por baixo. Geralmente fica pendurado na copa ou cozinha e serve até de elemento decorativo, com vários desenhos, frases, bordados e estampas diferentes, dependendo do gosto das donas de casas e podem ser comprados em lojas de utilidades domésticas ou de artesanato. 
 
Sem qualquer alusão ao puxa-saco domiciliar, velho refrão proclama também que “O cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais...”. Esse sim e não aquele, é objeto da crônica de hoje, para que fique aclarada a sua origem e em que sentido é usado no nosso português de cada dia. 

É de sabença geral que “puxar saco” é a atitude de bajular (do latim bajulare) servilmente a outrem. Não é difícil encontrar quem pratique abertamente a bajulação, pelo vezo compulsivo de entregar elogios excessivos e derramados, que visam afagar o elogiado, seja para conseguir recomendar-se, buscar aprovação, conseguir prebendas ou merecer aplausos dos circunstantes.  

Eles medram em todos os ambientes. Nos escritórios, escolas do ensino fundamental ou superior, empresas, quartéis, clubes, redações dos jornais, nas associações civis e comerciais, nada escapa à nefanda presença dos aduladores. Os chamados “mãos-de-seda” são exemplos rematados de subservientes à cata de simpatias, da sonhada promoção funcional ou do recebimento de alguma outra vantagem, que a falta de talento lhes sonega.

A televisão tirou proveito da sabujice, quando na “Escolinha do Professor Raimundo” liderada pelo genial Chico Anísio, divertiu o público com a figura de Rolando Lero, imortalizada pelo ator Rogério Cardoso, que antes de responder a qualquer pergunta, derretia-se num preâmbulo que virou sua marca inconfundível: “Amado Mestre, meu Incontestável Guru, quisera eu ser um escravo fugitivo, para poder abrigar-me com seguridade, no quilombo do vosso coração”. 

Armando Volta, o “Sambarilove”, também aluno da “Escolinha”, protagonizado pelo ator David Pinheiro, era outro bajulador inveterado, usando como artifício para agradar o mestre, presenteá-lo sempre com mimos escolhidos a dedo, alardeado com o seu conhecido bordão: “A propósito Digníssimo, vinha eu para essa maravilhosa aula, quando vi esse belo estojo de canetas e aí pensei - porque comprá-lo, porque não comprá-lo; compreio-o, aceite, é de coração, sem o menor interesse...”, com essa estratégia garantindo boas notas, facilitadas pelas “dicas” dadas pelo professor para garantir o acerto das respostas.

A figura do bajulador, convenhamos, não deixa de ser um retrato da nossa sociedade, onde há sempre alguém disposto a rasgar elogios para obter vantagens. São tipos que vivem na ânsia de cair nas boas graças de alguém ou de serem beneficiados por esse comportamento servil. Jamais comentam algum assunto diretamente, pois seu DNA lhes pespegou o palavreado meloso que antecede qualquer intervenção. É patético, mas verdadeiro. E agem como se isso fosse à coisa mais natural na face da terra. 

Há os que não precisam dessa encenação para serem aceitos, felizmente a maioria. São bem resolvidos, não cultivam esse costume, talvez por terem na memória a máxima de Shakespeare: “Aquele que gosta de ser adulado é digno do adulador”. Ser amigo desse tipo de pessoa é complicado, porque todo bajulador é um falso. A bajulação é a moeda falsa que só circula por causa da vaidade humana. A cada louvaminha, o ego do lisonjeado infla tal qual um baiacu rajado, após ser fisgado na água turva dos manguezais.

Mas como surgiu essa expressão? Dizem que se originou nos quartéis brasileiros como apelido dado aos recrutas e praças que nas viagens ou deslocamentos da tropa, carregavam os sacos de suprimentos e os pertences dos superiores. Na caserna ronda a maldosa versão sobre o coronel que tendo esquecido o relógio, pergunta a hora para o soldado bajulador, obtendo como resposta: - “Que hora o senhor quer que seja, comandante?...”. Com o passar do tempo, “Puxa-saco”, tal qual o recruta da piada pronta, passou a se referir  ao sujeito servil que lisonjeia outro, prestando-se a vilanias para obter algum ganho, por mais módico que seja.

Em contrapartida, ser adulado e até gostar disso é aceitar as oblações, deixar-se inebriar no turbilhão do fogaréu incensado pelo bajulador, vulgarmente conhecido como escova-botas, capacho, chaleira, louvaminheiro, mesureiro, sabujo e servil, termos que descrevem com nitidez o badameco que agrada alguém que lhe pode propiciar vantagens. 

Quer identificar um deles? Observe um figurão sendo entrevistado. Atrás dele tem sempre um baba ovo sorrindo, concordando, aplaudindo. São “papagaios-de-piratas” assumidos. Os demais que se danem para conseguir aparecer ao lado do chefão! Aspiram eles ser da copa e da cozinha do mandão, precisam ganhar a importância, precisam lisonjear pois do contrário não se afirmam. 

Na música brasileira, Zeca Pagodinho arrasou, interpretando “O PUXA-SACO”, composição de Alamir Filho, Levy Viana e Roberto Lopes da Costa:

“Botou o nome do patrão no filho e deu
a filha dele, orgulhoso para batizar
o cara vira bicho se escuta alguém falando
mal do chefe, ele quer brigar
não mede sacrifício e diz que é o seu ofício fazer tudo
e mais um pouco que o patrão mandar
Se o chefe chora, ele consola, também chora
sem demora pega um lenço para enxugar...
se a piada é sem graça, nem disfarça, ele é o primeiro
puxa o coro para gargalhar, é o queridinho do patrão
é protegido, baba ovo, pela saco,
é um carrapato que no saco dá!"

Cansada de ser preterida, a gaúcha Luciana Azevedo criou um curso, batizado de ”Puxa-saco sem frescura”, que ensina adular de forma metodológica, promovendo o aprendizado dos seus alunos nessa arte, sem que eles percam por completo a dignidade – se isso é mesmo possível. Seriam os primeiros bajuladores profissionais do País, aptos para a tarefa em troca de progressão funcional nos locais de trabalho. Diz ela que o retorno tem sido muito positivo, segundo o feedback dos próprios alunos treinados para essa tarefa.

Por igual, o escritor Ademar Gomes lançou o livro de humor intitulado “Manual do puxa-saco” (Editora Venture, 1993). A obra, caprichosamente ilustrada, fornece dicas irônicas sobre como se tornar um bajulador de sucesso, trazendo valiosas informações como a eliminação da própria personalidade, a mitigação do amor próprio, o jogo de cintura para agradar o chefe, gargalhar das suas piadas, mesmo aquelas manjadas, etc. O adulador sabe que vai ser olhado com reserva pelos demais, mas... e daí? Aos interessados, boa leitura!
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras (Floresta/PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.
Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Contos das Mil e Uma Noites (As-Sámet: O barbeiro calado)

Numa cidade da China, numa residência de gente fina, prepara-se uma festa em homenagem aos principais membros das corporações: alfaiates, sapateiros, comerciantes, barbeiros, carpinteiros e outros. Quando tudo está pronto para o início da festa, entra o dono da casa acompanhado de um adolescente estrangeiro, trajado à moda de Bagdá, bem constituído e belo, mas coxo. 

Mal esse jovem senta e olha em volta, algo perturba-o visivelmente. Levanta-se com a disposição de partir. O dono da casa pede-lhe que pelo menos explique este comportamento estranho. 

Responde: “Há entre vós alguém cuja presença me obriga a sair. Se insistirdes em saber quem é, é aquele barbeiro ali.”

O dono da casa comenta: “Como pode alguém que acaba de chegar de Bagdá ser incomodado pela presença de um barbeiro desta cidade?” 

Todos pedem uma explicação, e o jovem acaba cedendo: “Este barbeiro, que tem um aspecto de alcatrão e alma de betume, foi a causa de uma tragédia que nunca deveria ter ocorrido e que acabou por danificar uma das minhas pernas, como vedes. Jurei nunca mais viver na mesma cidade que ele, nunca me sentar onde ele estiver. Deixei Bagdá, minha cidade natal, por causa dele, e viajei até este país remoto. E eis que o encontro à minha frente na primeira reunião social de que participo. Sairei logo desta cidade, e espero estar bem longe deste parvo abominável antes do fim do dia.”  

O barbeiro ouve essas imprecações de olhos baixos e sem adiantar uma palavra. Os outros convencem o coxo a contar sua história. 

Diz: “Meus senhores, eu era filho único de um dos mais ricos mercadores de Bagdá. Apesar das solicitações de meu pai, não constituí família porque Alá havia plantado em mim uma aversão invencível pelas mulheres. Um dia, porém, uma jovem, vista à janela de um palácio, inverteu essa aversão numa paixão irresistível. Fiquei doente por não saber quem era e por não encontrar alguém que me pusesse em contato com ela. Mas Alá teve pena de mim e, um dia, uma velha conhecida me disse: “Meu filho, aquela jovem é a filha do cádi de Bagdá. Conheço pessoas capazes de te arrumar um encontro com ela. Prepara-te.” 

“Curei-me na hora e readquiri as cores e o vigor da juventude. Antes de ir ao hammam, quis cortar o cabelo. Mandei um de meus escravos trazer um barbeiro, recomendando-lhe: “Escolhe alguém que tenha a mão ágil, mas sobretudo que seja discreto, educado, de poucas palavras e sem curiosidade para que não me venha atormentar com a loquacidade e a impertinência próprias à gente daquela profissão. 

“Meu escravo trouxe-me um barbeiro que não era outro, senhores, que este sinistro velho que vedes sentado entre vós. Cumprimentou-me e disse: “Trago-te boas notícias, meu mestre, muito boas notícias. Aliás, não são boas notícias, mas bons votos para que recuperes a saúde e a força. Todavia, negócio é negócio. Que queres exatamente que faça? Que te corte o cabelo ou te submeta à sangria? Não podes ignorar que o grande Ibn Abbas disse: “Quem mandar cortar o cabelo às sextas-feiras concilia-se com a graça de Alá, que afastará dele setenta tipos de pragas.” Por outro lado, não podes esquecer que o mesmo Ibn Abbas disse numa outra oportunidade: “Quem ousar sangrar-se ou fazer aplicações de ventosas as sextas-feiras, correrá o risco de tornar-se cego e sujeito a todas as doenças.”

“- Meu velho, respondi, peço-te que pares com esta conversa e me cortes o cabelo tão rapidamente quanto puderes, porque estou ainda fraco em consequência da doença e cansa-me tanto falar como ouvir.

“O barbeiro levantou-se, pegou um embrulho similar aos que os homens de sua profissão carregam, abriu-o e tirou dele, não os utensílios de seu trabalho como navalhas, tesouras, mas um astrolábio de sete facetas. Carregou-o até o centro do pátio, olhou o sol de frente e voltou para dizer-me: “Deves saber que esta sexta-feira é o décimo dia do mês de Safar do ano 763 da Hégira de nosso santo profeta, que as bênçãos do céu estejam sobre ele! Coincide assim, segundo a ciência dos números, com o momento preciso em que o planeta Marrikh se encontra com o planeta Mercúrio, à altura de sete graus. Isso significa que hoje é um dia auspicioso para cortar o cabelo. Os mesmos cálculos revelam-me que tens a intenção de visitar hoje uma jovem senhora, e que essa visita pode trazer-te ou bem ou mal. Não digo que preciso de minha ciência para profetizar o que se passará exatamente quando tu e a jovem senhora estiverem juntos, mas isso pouco importa. Pois há coisas que é melhor calar. 

“- Por Alá, explodi, sufocas-me com tua verbosidade. Acabarás por me matar. Trouxe-te para que me cortes o cabelo. Corta-o já sem mais uma palavra.” 

“ – Farei exatamente como desejas, replicou, embora não possa deixar de pensar que, se conhecesses a verdade, pedirias que te dê mais informações e conselhos. Pois, deves saber que, embora barbeiro - o mais célebre desta cidade - não sou apenas barbeiro. Possuo na ponta dos dedos as ciências da medicina, das plantas, da química, da geometria, da álgebra. Além delas, conheço a astronomia, a astrologia, a filosofia, a literatura, a história, o folclore de todos os povos e muito mais.

“E o barbeiro prosseguiu assim, falando e falando e falando, até que o interrompi violentamente, gritando: “Irá me enlouquecer e me matar com este transbordamento interminável de palavras, velho assassino!” 

“ – Aí está o ponto em que te enganas, mestre, replicou. Todo mundo me conhece como As-Sámet, o homem calado, pela parcimônia com que uso as palavras.” 

Essa afirmação pôs-me completamente fora de mim mesmo. Senti meu fel prestes a romper-se. Gritei a um de meus criados:

“Dá um quarto de dinar a este homem e manda-o embora. De qualquer forma, nunca me cortará o cabelo.”

“Ao ouvir a ordem dada, disse o barbeiro: “Eu poderia chamar essas palavras, palavras rudes, meu mestre. Sim, acho que qualquer um teria o direito de chamá-las palavras rudes. Permite-me dizer que não te dás conta de que desejo ter a honra de atender-te sem pensar em dinheiro. E já que me ofereço para cortar-te o cabelo sem retribuição, como podes imaginar que aceitaria dinheiro sem te ter prestado um serviço correspondente? Não, não, nunca poderia conceber uma coisa dessas. Considerar-me-ia desonrado por toda a vida se aceitasse a menor retribuição. Vejo claramente que não fazes justiça a meu valor. Isso não me impede de ter uma ideia exata de teu próprio valor. Asseguro-te que te considero digno em tudo de teu grande e lamentado pai, para quem peço a compaixão de Alá. Ele era mesmo um fidalgo. Sim, teu querido velho pai era um fidalgo. Tenho para com ele uma dívida. Por algum motivo, ele sempre me cumulou com favores. Nunca houve homem mais generoso, nunca houve homem igual na sua grandeza se me permites falar assim; e por algum motivo, ele me estimava muito. Lembro-me, como se fosse ontem, do dia em que teu bondoso pai me fez chamar. Achei-o cercado por visitantes ilustres; mas deixou-os assim que cheguei e veio até mim e cumprimentou-me, dizendo: “Meu bom amigo, peço-te que me sangres hoje.” Aí abri meu astrolábio, medi a altura do sol e descobri que, naquela hora exata, a sangria não era aconselhada, mas que o seria momentos depois. Comuniquei minhas conclusões a teu pai - que pena que tal patrão tenha ido para a eternidade! Acreditou em mim sem fazer uma pergunta, e ficou batendo papo comigo como se fosse meu amigo e não meu amo, até que soou a hora certa para a operação. Sangrei-o então. Ele sangrou bem, pois era sempre um bom paciente, e agradeceu-me calorosamente. E não apenas ele. Seus amigos se juntaram a ele e me agradeceram também. Agora, estou me lembrando de um fato que esquecia quando comecei esta história: teu honroso pai, satisfeito com a sangria, deu-me cem dinares de ouro.” 

O adolescente interrompeu sua narração e, olhando para todos os presentes, disse: 

“Estaria assassinando-vos como este malvado barbeiro me assassinou se continuasse a repetir aquela enxurrada de palavras enfadonhas, ocas, irritantes com que este patife me torturou. Não havia meio de livrar-me dele, nem de levá-lo a me cortar o cabelo, nem de obrigá-lo a calar-se. A certa altura, fez um grande descobrimento: descobriu que era um chato! Disse-me: “Receio estar irritando-te, ó jovem.” Mas logo acrescentou uma frase que o retratava definitivamente. Disse: “Contudo, sou sábio demais para me importar com detalhes como este.” E recomeçou a falar, falar, falar.

“Por fim, começou a cortar-me o cabelo. Mas parava a cada movimento para falar, falar, falar. Eu estava desesperado para livrar-me dele e de sua horrível presença, pois a hora de meu encontro com a filha do cádi se aproximava. Em desespero de causa, disse-lhe: “Estou com pressa porque vou a uma festa na casa de um amigo.” “Mal ouviu a palavra festa, quis acompanhar-me. Para fazê-lo desistir, dei-lhe todas as provisões de minha casa para que fosse festejar com seus amigos. Mas nem isso me libertou dele. Mandou um escravo levar as provisões para sua casa e seguiu-me secretamente na rua para me espionar. Quando entrei na casa do cádi para ver a filha antes da chegada do pai, este canalha postou-se em frente à casa e quando viu o cádi chegar, armou um escândalo desastroso. Tentando passar de um esconderijo a outro na casa do cádi, caí e quebrei a perna, e tornei-me coxo pela vida toda. 

“Lavrei então meu testamento, legando meus bens a minha família e deixei Bagdá, minha cidade natal, decidido a ir viver em qualquer lugar onde não pudesse encontrar-me face a face com este parasita calamitoso. Percorri as sete partes do mundo e estabeleci-me nesta terra longínqua, pensando estar aqui a salvo deste mastim.

“Mas eis que, ao atender ao primeiro convite social que recebo, encontro o mesmo horrendo barbeiro sentado num lugar de honra entre os convidados. Todos os gastos que fiz, a vida errante que me impus, a desgraça de ser coxo são devidos a este demônio de cabelo branco, a esta relíquia perversa e assassina. Possa Alá amaldiçoá-lo, a ele e à sua posteridade até o fim do tempo. E agora, não terei paz até que abandone este país como abandonei o meu.” 

Tendo falado assim, o jovem levantou-se e partiu. Ficamos olhando para o barbeiro que se conservava calado e cabisbaixo. 

“O jovem tem razão ou não?” perguntou-lhe um de nós.

“Por Alá, eu sabia o que fazia ao proceder como fiz. Pois assim evitei-lhe desgraças maiores. Que agradeça a Alá e a mim por ter ficado estropiado de uma perna só quando podia ter perdido as duas. Eu não sou nenhum indiscreto ou linguarudo. Ao contrário, sou um homem útil, cauteloso e, sobretudo, calado, como vereis ao ouvir minha história. Por isso, meus amigos me chamam As-Sámet, o homem calado.” 

(Na sua história, esse homem calado fala ao longo de vinte e três páginas da edição original árabe para passar em revista o comportamento de seus seis irmãos, cada um dos quais mais horrendo que o outro.)
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As Mil e Uma Noites é uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia e compiladas em língua árabe a partir do século IX. As histórias que compõem as Mil e uma noites têm várias origens, incluindo o folclore indiano, persa e árabe. Não existe versão definitiva da obra, uma vez que os antigos manuscritos árabes diferem no número e no conjunto de contos. O Imperador brasileiro Dom Pedro II foi o primeiro a traduzir diretamente do árabe para o português partes da obra mais conhecida da literatura árabe, e o fez com um rigor raro para a época. Já em idade avançada, aos 62 anos, ele começou o processo, o último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte.

O que é invariável nas distintas versões é que os contos estão organizados como série de histórias em cadeia narrados por Xerazade, esposa do rei Xariar. Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando histórias maravilhosas sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mantém viva ao longo de várias noites - as mil e uma do título - ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Chafariz de Trovas * 19 *

 

Asas da Poesia * 103 *


Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/SP

Morte da árvore
(Lendo o soneto “Árvore morta”, do Padre Saturnino de Freitas)

Árvore triste, que ontem foi bonita,
Não tens mais ramos, frutos e nem flores,
Dos pássaros não és mais favorita
E não abrigas mais tantos amores.

Neste teu tronco já ninguém habita,
Sequer amantes loucos, sonhadores,
Que outrora segredavam na mesquita
De suas folhas vivas, multicores...

Quantas vezes ouviste namorados
Em carinhos e beijos, descuidados,
Como se o tempo não fosse passar.

Hoje, teus galhos secos, ressequidos,
São lembranças de sonhos esquecidos,
Que nunca mais, na vida, vão voltar!
= = = = = = = = =  

Poema de
MARIA LUÍZA WALENDOWSKY
Brusque/SC

Musa Espada 

Como duas bocas vivas, 
que dividem 
a mais tênue luz da vida, 
protegendo ou ferindo. 
Segue a musa da espada, 
avançando sobre tudo 
e todos que a cercam. 
Por ora, 
usa esta arma 
para libertar e trazer a nova vida 
cortando o que une à sua mãe. 
Por vezes, 
a espada machuca, 
mata 
toda a dor que tem dentro de si 
para assim, 
talvez, 
vir a paz terrena 
e alcançar uma vida plena, 
ou cheia de esperança. 
= = = = = = = = =  

Poema de
CAILIN DRAGOMIR
Timisoara/ Romênia

Caminho na Floresta

Entre as árvores um caminho se traça,  
e os raios de sol filtram-se com cuidado,
pintando de ouro o chão enfeitado.
Sussurram os pássaros a vida que passa.  

O rio corre, com risos e cantos,  
pedras e musgos em verde profundo,  
reflete o céu claro, em seus encantos,  
guardando segredos do mundo fecundo.

E ao final da trilha, um lago sereno,  
espelho do céu num azul pleno.  
A natureza abraça com calor e ternura...  
Um convite ao descanso, à alma pura.
(tradução por José Feldman)
= = = = = = = = =  

Spina de
ANA MEIRELES
Belém/PA

Comigo ninguém pode 

Comigo ninguém pode,
Maria era dessas
sem firulas, falava. 

Sentia, dizia, palavras saíam quentinhas.
O Amigo Moura sabia, presenteou-lhe
com simbólico colar que personificava
uma força interior quase inabalável 
de fragilidade, fortaleza, se temperava.
= = = = = = = = =  

Soneto de
VESPASIANO RAMOS
Caxias/MA, 1879 – 1915, Porto Velho/RO

Soneto da Volta

Desde este instante, sem cessar, maldigo,
Aquele instante de felicidade!
Para que tu vieste ter comigo,
Meu amor! Minha luz! Minha saudade?!

Dês que te foste, foram-se contigo
Todos os sonhos desta mocidade...
A tua vinda — fora-me um castigo;
A tua volta — uma fatalidade!

Dês que te foste, dentro em mim plantaste
A ânsia infinita dos desesperados
Porque voltando, nunca mais voltaste...

Correm-me os dias de aflições, cobertos:
Eu entrei para o amor de olhos fechados
E saí para a dor de olhos abertos!
= = = = = = = = =  

Soneto de
MARIA NASCIMENTO SANTOS CARVALHO
Rio de Janeiro/RJ

E-mail

Deletei muitas coisas que me disse,
digitadas em seu computador;
assim que descobri que era tolice
guardar frases bonitas, sem amor.

Temendo que a memória me traísse,
deixei à vista as que me causam dor
para que, nunca mais eu me iludisse
e, em vão, corresse o risco de me expor...

Deletei muita coisa e, na verdade,
não pude deletar toda a saudade
que salvei num arquivo do meu peito...

Pois quanto mais tentava deletar,
mais vinha uma mensagem me avisar
que deletar saudades... não tem jeito...
= = = = = = = = =  

Soneto de
LUÍS VAZ DE CAMÕES
Coimbra/Portugal, 1524 – 1580, Lisboa/Portugal

Soneto I 
         
Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus versos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co' tormento,
Para que seus enganos não dissesse.

      Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

  Verdades puras são, e não defeitos...
E sabeis que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos!
= = = = = = = = =  

Poema de
PEDRO DU BOIS
(Pedro Quadros Du Bois)
Passo Fundo/RS, 1947 – 2021, Balneário Camboriú/SC

Calma

Na calmaria cede espaço ao cansaço.
Descansa o silêncio e se desentende
em ritos descontinuados. Desavenças
e calçadas ressoam passos. Acalma
o vento. Reclama ao vento a passagem.
Impressiona o sono em ideias aleatórias
de descobertas e conformismos. No
dito recupera da razão o lídimo saber
sobre a calma na alma despossuída.
Em passos atravessa a hora e despede
do gerânio a flor inacabada. Gira o Sol
em retorno: o dia permanece na explosão
sintética da espera. A calma na calúnia
desdita arrebenta os sinos entre torres.
O desafogo na morte: calma arrebatada
ao espírito. Acalma o corpo ao começo.
= = = = = = = = =  

Soneto de
ANTÔNIO OLIVEIRA PENA
Volta Redonda/RJ

Improviso

Não qual a estrela, na manhã serena,
à flor de um lago, quase a se esconder,
o modo peculiar de me envolver
com o riso à flor da boca, tão pequena!

Nem qual a ave do céu, que, junto ao ninho,
chama contente pelo companheiro,
em cujo peito o amor é mais fagueiro,
e é calmo, pra que haja algum espinho.

É várzea em flor, à noite, escondida,
emanando um perfume sem igual
à minha mal-aventurada vida...

(Quem dera fosse o seu olhar, quem dera!
a pino o sol, sobre esse mesmo val,
numa confirmação da primavera!)
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Poema de
JOSÉ CARLOS MOUTINHO
Maia / Porto / Portugal

Rio Tejo

Tu que vens de tão longe,
Pequeno, quase criança,
Deslizas, crescendo pela avenida do teu leito,
Ladeado pelas alamedas,
Verdejantes, arborizadas e floridas
Das margens da tua vida,
Tornas-te adulto,
Mais maduro e belo,
Quando os raios solares,
Refletem no teu corpo,
És romântico com o luar,
És sereno quando queres,
Turbulento, quando te provocam,
Podes ser a alegria e a morte,
Exiges respeito!

Não corras tão depressa,
Porque vais perder-te no mar.

Um dia, recusaste-me,
Nas águas do teu ventre,
Devolveste-me à vida,
Toleraste a minha inocência!

Tens a grandeza da tua autoridade
Serás eternamente importante
Marcaste a minha vida.
Meu Rio Tejo!
= = = = = = = = =  

Setilha Sobre o Mar de
MARIA ROSÁRIO PINTO
Bacabal/MA

É bom pegar uma onda
É bom nos banhar no mar.
O mesmo mar que atraí
Sempre vem nos assustar
Nele nos purificamos
Por Yemanjá clamamos
Mãe! Vem nos ajudar.
= = = = = = = = =  

Glosa de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

MOTE:
Sofredor desde menino 
e tendo o sonho por meta 
quis saber qual seu destino 
diz-lhe o cigano: - Poeta!
CAROLINA RAMOS 
Santos/SP

GLOSA:
Sofredor desde menino 
neste mundo deletério, 
sem instrução, sem ensino, 
seu destino era um mistério. 

Pelo mundo peregrino 
e tendo o sonho por meta 
o menino, em desatino, 
pensou até ser profeta. 

Nesta procura o menino, 
quase louco, pobrezinho, 
quis saber qual seu destino 
consultando um adivinho! 

Vejo uma luz reluzir 
no teu futuro de esteta, 
e posso te garantir, 
diz-lhe o cigano: - Poeta!
= = = = = = = = =  

Poema de
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa/Portugal, 1919 – 2004, Porto/Portugal

Jardim perdido

Jardim em flor, jardim de impossessão,
Transbordante de imagens mas informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.

A verdura das arvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.

A luz trazia em si a agitação
De paraísos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidades e suspensão.

Mas cada gesto em ti se quebrou, denso
Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazias em ti sempre suspenso
Outro jardim possível e perdido.
= = = = = = = = =  

Poema de
ARMANDO SILVA CARVALHO
Lisboa/Portugal

A chave inglesa

Era um corpo inteiramente
português.
Transido de ternura
o óleo das suas mãos
protegia-me
o coração.

 Não sei que mecanismo
despertava em si
quando chorava,
fazia crescer a relva,
meus dentes indecisos
como crias
corriam e devoravam.

 Escreveu-me duas cartas
em cima de um trator
e nelas descrevia
em frases simples
o modo tortuoso
que me fez traidor.
= = = = = = = = = 

Silmar Bohrer (Croniquinha) 143

"Até sei de pessoas que propendem a cisco mais do que a seres humanos", escreveu Manuel de Barros. Talvez eu seja um deles. Porque o ser humano permeia entre o tudo e o nada, entre o máximo e o mínimo. E a quantidade deles é grande. 

Bem pensando, tantas vezes me sinto um cisco qualquer, folha seca ao sabor das coisas, um graveto inerte propenso a adubo, passarinho que não alça voo. A sensação de quase nada me incorpora o ócio improdutivo. Não gosto nem do trabalho das formigas - deve ser penoso. De olhar já canso.   

Deve ser sina, a mesma "signa" que veio do latim como "destino inevitável". O destino de pedra que rola e rola e não cria limo. O destino de palavras ao vento, o destino do eco que some na imensidão . . . 

O poeta pantaneiro constatou que "há outros componentes do cisco, porém de menos importância". Ainda bem, nossa vida de ciscos não é tão desimportante assim.
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Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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Vladimir Fedorovich Odoievsky (Pobre Gnedka)

Olha, olha, meus amigos, que motorista de táxi malvado, como ele bate na égua!.. Na verdade, ela corre muito mal... Porque é que isto? Oh, pobre Gnedka, ela está mancando...

- Terrível, taxista! Que vergonha: você arruinará completamente sua égua; você a matará até a morte...

– Que necessidade, responde o motorista do táxi. - Ou para mim ou para ela morrer! Hoje é feriado.

– Isso é que um banquete, amável: você deu um passeio e não viu que a égua havia perdido a ferradura: por isso escorregou, tropeçou e chutou a perna. O que é tão inteligente que ela não pode correr? Coitadinha, quaisquer que sejam os passos, a machuca: você não pode correr para cá. E sabes que terás de pagar pelo tratamento dela, pela ferradura, e o dono também te repreenderá. Então você quer ganhar dinheiro a todo custo, visitar, como você diz; Agora é uma bênção, tem muita direção, eles pagam caro... Qual é a culpa da pobre égua? A culpa é tua, rapaz estúpido: porque não cuidaste dela, porque não a viste quando ela perdeu a ferradura?

Mas ele não nos ouve, já está longe. Lá está ele no Neva e continua maltratando a pobre égua, e a égua continua tropeçando, e quaisquer que sejam os passos, dói. Pobre égua! Que tormento é!

E as crianças também correm atrás do trenó e riem tanto da égua quanto do taxista. E ele fica ainda mais irritado e joga a raiva na égua.

Mas diz-me, faz-me um favor, como não envergonhar este senhor gordo que está sentado num trenó! Como não proibir o taxista de torturar a pobre égua! Este cavalheiro gordo se envolveu em um casaco de pele, puxou o chapéu sobre os olhos e sentou-se sentado lá como se nada tivesse acontecido.

“O que me importa”, murmura o cavalheiro gordo para si mesmo, "estou com pressa para almoçar. Deixe o taxista matar sua égua; não é minha égua, o que me importa?"

O que achas disto, meus amigos? Como se, por não ser esta égua, ele devesse olhar indiferentemente para o seu tormento?

Pobre Gnedka! Que pena que penso nela! Conheço esta égua há muito tempo. Lembro-me de como ela ainda era uma potra. Depois, costumava ser que na primavera o sol brilhava, os pássaros esfriavam, o orvalho brilhava nos gramados, o ar fresco e perfumado. Aqui Serko está arando o chão, e nossa potra está correndo ao redor: ou ela vai correr até ele, então ele vai pular para trás, beliscar a grama jovem, e novamente para sua mãe, e novamente ele vai chutar: sua vida foi alegre, então! À noite ele voltará para casa: Vanyusha e Dasha o encontrarão, pentearão sua crina curta e a limparão com canudos. Como Vanyusha e Dasha amavam sua potra! 

Aconteceu que, em vez de correrem sem fazer nada, colhiam grama jovem, colocavam-na em uma caixa e alimentavam sua potra; elas a vestiam em roupas de cama à noite, e não comiam um pedaço de pão durante o dia, para compartilhar com sua amiga. E como a potra os conhecia! Antigamente ele via Vanyusha e Dasha de longe, ia até elas o mais rápido que podia, vinha correndo, parava e olhava para elas como um cachorro. Em tal buraco nossa potra cresceu, nivelou-se e tornou-se uma égua imponente. Então o pai de Vanyusha pensou, pensou e disse fortunas: "É uma pena banir tal égua do arado; vou levá-la para a cidade e vendê-la; eles vão me dar o preço de dois cavalos por isso". 

Assim que disseram do que fizeram: trouxeram a potra para Konnaya, para São Petersburgo, e venderam-na a um motorista de táxi. E como Vanyusha e Dasha choraram, como imploraram ao motorista do táxi que cuidasse de sua potra, que não a obrigasse a carregar cargas pesadas, que não a atormentasse... Eles voltaram para casa muito tristes: faltava alguma coisa. O pai ficou feliz por ter recebido um bom dinheiro por Gnedka, mas os filhos choraram amargamente.

Mas nessas conversas caminhamos por quase todo o aterro... Olha, olha: por que as pessoas estão lotadas lá!.. Vamos embora. Oh, este é a nossa pobre Gnedka! Olha: ela caiu e não consegue mais se levantar; os transeuntes ajudam o taxista a levantá-la; eles a levantarão, ela cairá novamente. Como a perna dela está inchada! O próprio motorista do táxi agora chora amargamente. "Serve-lhe direito", dizes tu; não, não digas isto: ele já vê a sua culpa e já está bastante castigado. Como vai aparecer ao proprietário? E o que fazer agora com a égua? Você não pode deixá-la na rua; ela não pode andar sozinha; precisamos contratar outro cavalo com trenó e colocar a pobre Gnedka no trenó. Mas isso exige dinheiro, mas o taxista não tem: o cavalheiro gordo ficou bravo porque a égua caiu e não pagou nada... Pobre Gnedka! Ela não consegue se mover, enterra a cabeça na neve, respira pesadamente e move os olhos, como se exigisse ajuda. Pobre, ela nem consegue gritar porque os cavalos não gritam, por mais cruel que sofram. "Um motorista de táxi malvado! Por que atormentaste tanto a pobre Gnedka?  

Mas deixemos de censurá-lo, embora ele seja muito culpado, ou melhor, vamos dar-lhe dinheiro, deixemos que ele contrate um amigo para levar Gnedka ao apartamento, vamos acrescentar alguns conselhos: não cavalgue um cavalo manco para a frente e não exija que uma pessoa doente corra como uma pessoa saudável. Um dia destes enviaremos você para saber se nossa égua está melhor.

Em geral, meus amigos, é pecado torturar pobres animais que nos servem para benefício ou prazer. Aquele que tortura animais desnecessariamente é um homem mau. Quem tortura um cavalo ou um cão é capaz de torturar uma pessoa. E às vezes pode ser muito perigoso. Você viu como às vezes crianças más provocam cães e gatos na rua, espancam-nos, amarram paus no rabo; ouça o que aconteceu com essas crianças, quão cruelmente eles foram punidos por sua caça maligna.

Há vários anos, aqui em São Petersburgo, na praça, um cachorro pequeno e quieto, Charlot, caiu atrás do dono: assustou-se, pressionou-se contra a parede e não sabia o que fazer. Então as crianças a cercaram; bem, provocaram-no, bateram nele, jogaram pedras, arrastaram-no pelo rabo. Eles deixaram o pobre cachorro sem paciência, ele correu para eles e mordeu um pouco. O que aconteceu? O cachorro permaneceu saudável, mas as crianças?.. Sabes o que acontece a uma pessoa quando é mordida por um cão raivoso? Ele recebe uma aversão à água, um desejo de morder e morre no mais terrível tormento: é assustador pensar! Vais acreditar? Aconteceu o mesmo com as crianças mordidas: elas enlouqueceram. Sim, meus amigos, este incidente foi uma nova evidência de que quando um cão é provocado por muito tempo e fica com raiva, pode ser tão perigoso morder, como morder um cão raivoso. Não torturem nenhum animal, meus amigos, porque é pecaminoso e mostra um coração maligno, e não torturem cães, nem que seja por brincadeira, porque é ao mesmo tempo mau e perigoso.
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Vladimir Fyodorovich Odoievsky (Moscou/Rússia, 1803 – 1869) foi um filósofo, escritor, crítico musical, filantropo e pedagogo russo. Chegou a ser conhecido como o Hoffmann russo devido ao seu enorme interesse por contos fantásticos e pelo jornalismo crítico. Odoievsky publicou uma série de contos para crianças (por exemplo, A Vila da Caixinha de Surpresas), e historias fantásticas para adultos (por exemplo, Cosmorama e Salamandra). Inspirou-se no conto de Alexander Pushkin, A Dama de Espadas, para escrever uma série de historias semelhantes, sobre a dissoluta vida da aristocracia da Rússia (por exemplo, A Princesa Mimi e A Princesa Zizi). A sua obra-prima foi uma coleção de ensaios e novelas intitulada As Noites Russas (1844), para a qual se inspirou na obra As Noites Áticas de Aulo Gélio. Como crítico musical, Odoievsky propagou o estilo nacional de Mikhail Glinka e seus seguidores. Escreveu muitos artigos sobre temas musicais, e um tratado sobre antigos cantos na Igreja Russa. Johann Sebastian Bach e Beethoven aparecem como personagens em algumas das suas novelas. Odoievsky promoveu a fundação da Sociedade Musical Russa, do Conservatório de Moscovo e do Conservatório de São Petersburgo. (fonte: wikipedia)

Fontes:
Odoievsky, Vladimir Fedorovich. Contos do Avô Irineu. Publicado originalmente em 1841. Disponível em Domínio Público.    
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Arthur Thomaz (Cururuquira)


Enfim, chegara o momento da tão temida pergunta:

— Mãe, pode me explicar como eu nasci assim?

O pai, tomando a frente, responde tentando mostrar altivez.

— Meu filho, o papai colocou uma sementinha na barriga da mamãe, ela germinou e você nasceu.

— Pai, eu sei que vocês fizeram sexo, mas a minha dúvida é porque nasci assim, um cururuquira?

Atarantados, os pais entreolharam-se, permanecendo calados.

— Eu quero saber o porquê não nasci um lindo pavão, um forte leão ou mesmo um esbelto cavalo. Nem pesquisando no Google e sequer na Wikipedia encontrei qualquer referência à espécie Cururuquira.

Ainda estupefato, o pai retrucou:

— Meu filho, nossa família vem de um passado glorioso, onde nossos ancestrais sobreviveram às intempéries, às sucessivas pandemias e aos ferozes predadores. Somos uma raça forte e temos que nos orgulhar disso.

Diante deste quadro, insatisfeito, ele fez as malas e despediu-se, afirmando que só voltaria quando obtivesse respostas às suas dúvidas existenciais.

Adquiriu um exemplar do livro “A origem das espécies”, de Charles Darwin, e foi lendo em sua viagem inicial até as Ilhas Galápagos.

Nada encontrou no livro e tampouco no arquipélago algo relacionado à sua genealogia. Desapontado, mas obstinado em seus objetivos, resolveu empreender uma viagem por todos os continentes em minuciosa pesquisa.

Visitou alguns países da América do Sul, findando sua busca no Brasil. Desistiu quase imediatamente, quando no aeroporto foi cercado por estranhos seres trajando roupas vermelhas e que insistiram em levá-lo a um cartório para trocar seu nome para “Cururuquire”, por causa de uma tal ideologia de gênero que queriam impor no país.

Inconformado com esse absurdo, embarcou no primeiro voo com destino à América do Norte, pensando que ele, preocupado em encontrar as origens de sua espécie, e aqueles idiotas querendo trocar seu gênero.

Desembarcou no México, onde empreendeu muitas buscas em sítios arqueológicos das antigas civilizações astecas e maias, mas nada encontrou de seu interesse.

Foi assediado por “coyotes” que prometiam transportá-lo através da fronteira até os Estados Unidos. Conseguiu escapar desse bando e já no país vizinho reiniciou sua procura.

Visitou bibliotecas de inúmeras universidades, onde encontrou farto material, mas nada interessante que o ajudasse em seu propósito.

Nessa estadia angariou alguns quilos de tanto comer fast food. Em seu próximo destino, o continente africano, deparou-se com centenas de locais para pesquisar, porém, observou que eram semelhantes ao que estudara na América do Sul, o que comprovava a teoria da separação dos continentes em priscas eras.

Nas savanas escapou do ataque de alguns animais selvagens que estranharam sua aparência e embarcou para o “antigo continente”.

Vários países com culturas diversas e algumas dificuldades com as inúmeras línguas faladas tornaram extremamente dificultosos os seus estudos. Em algumas aduanas encontrou problemas para se identificar, pois os agentes não conseguiam constatar sua espécie, entretanto, o deixavam prosseguir, talvez com “pena” dessa “insignificante e inofensiva criatura”.

Isso naturalmente não o deixava feliz, mas facilitava sua locomoção. Na Ásia, as geleiras restringiram muito seu campo de ação. Escapou de alguns policiais russos e bielorrussos que teimavam em considerá-lo um potencial espião imperialista.

Em certo país, cientistas aventaram a hipótese de dissecá-lo para estudos genéticos em um laboratório. E quando estava quase sendo sacrificado, alguns hamsters condoeram-se daquele estranho ente e indicaram-lhe a saída e o melhor momento para a fuga.

Desalentado, alquebrado e já alguns anos mais velho, resolveu voltar à terra natal. Após demorados abra- ços em seus pais, e muito choro derramado, resumiu toda sua inútil procura em poucas frases.

— Meus amados pais, desejo externar a vocês minha gratidão por ser um cururuquira. Depois de conhecer várias espécies diferentes neste mundo imenso, cheguei à conclusão que somos os “esquisitos” mais interessantes e felizes.

— Imaginem se tivéssemos nascido seres frios de alma e materialistas como muitos neste planeta?

Os cururuquiras, a partir desta descoberta, tornaram-se uma das mais fortes e perenes espécies do planeta.
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Arthur Thomaz é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, publicou os livros: “Rimando Ilusões”, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”.

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 
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