UM CASO ESTRANHO
Não sei se no momento eu contemplava as águas da enchente ou se pensava em outras épocas, quando uma boca com dentes de outro me interrompeu:
- Tenho ordem de prendê-lo como envolvido no crime da mala.
- Que mala? - indaguei ainda surpreso, como alguém que acabasse de descer de Marte ou de outra região qualquer.
- Siga-me que na delegacia tudo será esclarecido.
Diante do tom autoritário com que a boca com dentes de outro me falava, resolvi seguir o investigador. Atravessamos uma rua deserta, cruzamos uma praça cheia de crianças brincando, desembocamos num largo e por fim entramos num prédio baixo com aspecto de casa de comércio.
Quando menos esperava, fui empurrado para dentro de uma sala escura onde o delegado de plantão me recebeu com ar teatral:
- Então! Custou mas caiu nas mãos da justiça! Ninguém escapa da lei! Confesse, que é a única cousa inteligente que tem a fazer!
A princípio achei graça em tudo aquilo. Pensei mesmo que estava sendo vítima de uma brincadeira de mau gosto. Depois, diante da insistência do delegado, comecei a suar frio. Que sabia eu do crime da mala? É bem possível que alguém, parecido comigo, tivesse cometido o crime pelo qual me acusavam. Há tanta gente parecida no mundo. Ainda há tempos encontrei no bonde um cidadão tão parecido com Henry Fonda que fiquei abismado. Tinha até o jeito de sorrir do simpático artista. Por um pouco não chamei a atenção do cavalheiro para o fato. O próprio delegado, que me interrogava, tinha qualquer cousa de semelhante com o investigador que me havia dado voz de prisão. O verdadeiro culpado talvez se parecesse comigo. Não encontrava outra explicação para tudo aquilo. De súbito fui despertado pela boca com dentes de ouro, que me disse:
- Acompanhe-me.
Segui como um autômato o investigador que me fechou numa sala tão baixa que tive que me curvar para não bater com a cabeça no teto. Justamente no momento em que me curvei, dei com um morto estendido dentro de uma mala meio aberta. Recuei e fiz um grande esforço para não gritar. O morto parece que me acusava com os seus olhos parados, com os seus olhos que vinham de um outro mundo. Tive a impressão de que estava sendo vítima de uma alucinação. Os olhos do morto parece que se dilatavam cada vez mais.
Dominei-me a custo de debrucei-me sobre o morto para examinar melhor a sua fisionomia e não pude conter um grito: o morto era eu. Era eu que estava dentro da mala meio aberta...
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Não sei se no momento eu contemplava as águas da enchente ou se pensava em outras épocas, quando uma boca com dentes de outro me interrompeu:
- Tenho ordem de prendê-lo como envolvido no crime da mala.
- Que mala? - indaguei ainda surpreso, como alguém que acabasse de descer de Marte ou de outra região qualquer.
- Siga-me que na delegacia tudo será esclarecido.
Diante do tom autoritário com que a boca com dentes de outro me falava, resolvi seguir o investigador. Atravessamos uma rua deserta, cruzamos uma praça cheia de crianças brincando, desembocamos num largo e por fim entramos num prédio baixo com aspecto de casa de comércio.
Quando menos esperava, fui empurrado para dentro de uma sala escura onde o delegado de plantão me recebeu com ar teatral:
- Então! Custou mas caiu nas mãos da justiça! Ninguém escapa da lei! Confesse, que é a única cousa inteligente que tem a fazer!
A princípio achei graça em tudo aquilo. Pensei mesmo que estava sendo vítima de uma brincadeira de mau gosto. Depois, diante da insistência do delegado, comecei a suar frio. Que sabia eu do crime da mala? É bem possível que alguém, parecido comigo, tivesse cometido o crime pelo qual me acusavam. Há tanta gente parecida no mundo. Ainda há tempos encontrei no bonde um cidadão tão parecido com Henry Fonda que fiquei abismado. Tinha até o jeito de sorrir do simpático artista. Por um pouco não chamei a atenção do cavalheiro para o fato. O próprio delegado, que me interrogava, tinha qualquer cousa de semelhante com o investigador que me havia dado voz de prisão. O verdadeiro culpado talvez se parecesse comigo. Não encontrava outra explicação para tudo aquilo. De súbito fui despertado pela boca com dentes de ouro, que me disse:
- Acompanhe-me.
Segui como um autômato o investigador que me fechou numa sala tão baixa que tive que me curvar para não bater com a cabeça no teto. Justamente no momento em que me curvei, dei com um morto estendido dentro de uma mala meio aberta. Recuei e fiz um grande esforço para não gritar. O morto parece que me acusava com os seus olhos parados, com os seus olhos que vinham de um outro mundo. Tive a impressão de que estava sendo vítima de uma alucinação. Os olhos do morto parece que se dilatavam cada vez mais.
Dominei-me a custo de debrucei-me sobre o morto para examinar melhor a sua fisionomia e não pude conter um grito: o morto era eu. Era eu que estava dentro da mala meio aberta...
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HISTÓRIA DE UMA TRAÇA
Conheci uma traça que se tornou espírita por ter passado uma temporada dentro de um volume de Allan Kardec.
Nunca vi espetáculo mais engraçado do que ouvi-la dissertar sobre a teoria da reencarnação para o aperfeiçoamento das almas.
Por mais que eu tentasse convencê-la do absurdo do espiritismo, nada pude conseguir. Parece que a traça sentia certo bem-estar íntimo.
Certa vez confessou-me:
- Numa vida anterior fui um elefante que vivia feliz nas florestas da Abissínia. Uma tarde, quando me dirigia a um lago para matar a sede, fui ferido em pleno coração pelo poeta Rimbaud, que negociava com marfim para esquecer seu sonho de poesia.
- Você, que me ouve, dizia-me, talvez já tenha sido um tigre e um dia será uma árvore.
Era uma traça terrível. Falava com tanto ardor que muitas vezes pensei que fosse amiga do vinho. Porém, verifiquei com o tempo que detestava a bebida porque o álcool ataca o fígado. Não era, como se vê, por virtude que não bebia.
Ainda me lembro do meu último encontro com a traça. Foi numa noite fria de agosto. O minuano soprava com tanta força que parecia um demônio em liberdade. Nesse encontro ela me falou sobre a loucura. Disse-me que a loucura se dá quando espírito de um morto encarna no corpo de um ser vivo. O espírito dono do corpo protesta contra o usurpador e o usurpador resiste; trava-se a luta e a luta é a loucura.
Depois dessa noite nunca mais a vi. Talvez a esta hora tenha voltado ao volume de Allan Kardec para resolver alguma dúvida que haja surgido em seu cérebro teimoso de traça.
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Fontes:
– LOPES, Paulo Corrêa. Um caso estranho. RS: Ed. do autor, 1942.
– COSTA, Flávio Moreira da (organizador). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.
– Imagem = Sherlock Holmes Br
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