quarta-feira, 10 de junho de 2009

Raul de Leoni (Poesias)


A HORA CINZENTA

Desce um longo poente de elegia
Sobre as mansas paisagens resignadas;
Uma humaníssima melancolia
Embalsama as distancias desoladas...

Longe, num sino antigo, a Ave-Maria
Abençoa a alma ingênua das estradas;
Andam surdinas de anjos e de fadas,
Na penumbra nostálgica, macia...

Espiritualidades comoventes
Sobem da terra triste, em reticência
Pela tarde sonâmbula, imprecisa...

Os sentidos se esfumam, a alma é essência
E entre fugas de sombras transcendentes,
O pensamento se volatiliza...

ARGILA

Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs na carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranqüila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço de longe o oráculo de Elêusis),

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo,
E do teu ventre nasceriam deuses...

DECADÊNCIA

Afinal, é o costume de viver
Que nos faz ir vivendo para a frente.
Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente
O hábito melancólico de ser...

Vai-se vivendo... é o vício de viver...
E se esse vício dá qualquer prazer à gente.
Como todo prazer vicioso é triste e doente,
Porque o Vício é a doença do Prazer...

Vai-se vivendo... vive-se demais,
E um dia chega em que tudo que somos
É apenas a saudade do que fomos...

Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos
Que somos sombras, que já não somos mais nada
Do que os sobrevivente de nós mesmos!...

TRANSUBSTANCIAÇÃO

Esta chance em que existo há de tornar-se um dia,
Em húmus germinal, em seiva fecundante,
Decompondo-se em Pó, há de ser a energia
De vidas que sobre ela hão de viver adiante...

Será fonte, Princípio, a tábida apatia
De um movimento novo intérmino e constante,
Sua ruína será a feraz embriogenia
De outros tipos de Vida, instante para instante.

Há de um horto florir por sobre o seu passado.
Borboletas iriais e anêmonas olentes,
Vidas da minha Morte, eu mesmo transformado...

E, assim, irei buscando a Perfeição perdida,
Vivendo na Emoção de seres diferentes
Que a Morte é a transição da Vida para a Vida...

DESCONFIANDO

Tu pensas como eu penso, vês se eu vejo,
Atento tu me escutas quando falo;
Bem antes que te exponha o meu desejo
Já pronto estás correndo a executá-lo.

Achas em tudo um venturoso ensejo
De servir-me a verdade num gracejo.
Serias, se eu quisesse, o meu cavalo...

Mas não penses que estólido eu te creia
Como um Patroclo abnegado, não
De todos os excessos de receia...

O certo é que, em rancor, por dentro estalas;
Odeias-me quem eu sei, mas, histrião,
Beijas-me as mãos por não poder cortá-las…

“ ALMAS DESOLADORAMENTE FRIAS...”

Almas desoladoramente frias
De uma aridez tristíssima de areia,
Nelas não vingam essas suaves poesias
Que a alma das cousas, ao passar, semeia...

Desesperadamente estéreis e sombras
Onde passas (triste aura que as rodeia!)
Deixam uma atmosfera amarga, cheia
De desencantos e melancolias...

Nessa árida rudeza de rochedo,
Mesmo fazendo o bem, sua mão é pesada,
Sua própria virtude mete medo...

Como são tristes essas vidas sem amor,
Essas sombras que nunca amaram nada,
Essas almas que nunca deram flor…

CREPUSCULAR

Poente no meu jardim... O olhar profundo
Alongo sobre as árvores vazias,
Essas em cujo espírito infecundo
Soluçam silenciosas agonias.

Assim estéreis, mansas e sombrias,
Sugerem à emoção em que as circundo
Todas as dolorosas utopias
De todos os filósofos do mundo.

Sugerem... Seus destinos são vizinhos:
Ambas, não dando frutos, abrem ninhos
Ao viandante exânime que as olhe.

Ninhos, onde vencida de fadiga,
A alma ingênua dos pássaros se abriga
E a tristeza dos homens se recolhe...

UNIDADE


Deitando os olhos sobre a perspectiva
Das cousas, surpreendo em cada qual
Uma simples imagem fugitiva
Da infinita harmonia universal.

Uma revelação vaga e parcial
De tudo existe em cada cousa viva:
Na corrente do Bem ou na do Mal
Tudo tem uma vida evocativa.

Nada é inútil; dos homens aos insetos
Vão-se estendendo todos os aspectos
Que a idéia da existência pode ter;

E o que deslumbra o olhar é perceber
Em todos esses seres incompletos
A completa noção de um mesmo ser...

PUDOR

Quando fores sentindo que o fulgor
Do teu Ser se corrompe e a adolescência
Do teu gênio desmaia e perde a cor,
Entre penumbras em delinquescência,

Faze a tua sagrada penintência,
Fecha-te num silêncio superior,
Mas não mostres a tua decadência
Ao mundo que assistiu teu esplendor!

Foge de tudo para o teu nadir!
Poupa ao prazer dos homens o teu drama!
Que é mesmo triste para os olhos ver

E assistir, sobre o mesmo panorama,
A alegoria matinal subir
E a ronda dos crepúsculos descer...

PRUDÊNCIA

Não aprofundes nunca, nem pesquises
O segredo das almas que procuras:
Elas guardam surpresas infelizes
A quem lhes desce às convulsões obscuras.

Contenta-te com amá-las, se as bendizes,
Se te parecem límpidas e puras,
Pois se, às vezes, nos frutos há doçuras,
Há sempre um gosto amargo nas raízes...

Trata-se assim, como se fossem rosas,
Mas não despertes o sabor selvagem
Que lhes dorme nas pétalas tranquilas,

Lembra-te dessas flores venenosas!
As abelhas cortejam de passagem,
Mas não ousam prová-las nem feri-las..

AOS QUE SONHAM

Não se pode sonhar impunemente
Um grande sonho pelo mundo afora,
Porque o veneno humano não demora
Em corrompê-lo na íntima semente...

Olhando no alto a árvore excelente,
Que os frutos de ouro esplêndidos enflora,
O Sonhador não vê, e até ignora
A cilada rasteira da Serpente.

Queres sonhar? Defende-te em segredo.
E lembra, a cada instante e a cada dia,
O que sempre acontece e aconteceu:

Prometeu e o abutre no rochedo,
O calvário do filho de Maria
E a cicuta que Sócrates bebeu!
---------------------

Nenhum comentário: