quinta-feira, 25 de junho de 2009

Natália Correia (Caravelas da Poesia)


"A DEFESA DO POETA"

Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prêmio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de perdão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.

FIZ UM CONTO PARA ME EMBALAR

Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.

Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.

Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.

AUTO RETRATO

Espáduas brancas palpitantes:
Asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
Para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vozes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
Embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
Presa na teia dos seus ardis.

(1955)

QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS

Dão nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão nos um prêmio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam nos os crânios ermos
com as cabeleiras dos avós
para jamais nos parecermos
conosco quando estamos sós

Dão nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte.

ODE À PAZ

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego, dos pastos,
Pela exatidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz,
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
–––––––––––––––––––––––––-
(durante o debate da Lei contra o alcoolismo)


Num país de beberrões
Em que reina o velho Baco
Se nos tiram os canjirões
Ficamos feitos num caco.

E querem os deputados
Com um ar de beatério
Que fiquemos desmamados
Quais anjos num baptistério.

Se o verde e o tinto são
As cores da nossa bandeira,
Ai, lá se vai a nação
Se acabar a bebedeira.

De abstemia não se faça
A lex neste plenário
Que o direito à vinhaça
Esse é consuetudinário.

A ALMA

Votada ao fogo obediente ao perigo
feroz do amor ser muito e o tempo pouco,
Chegas ébrio de sonho, ó estranho amigo
E eu não sei se por mim és anjo ou louco

Num beijo infindo queres morrer comigo.
Nesse extremo és sagrado e eu não te toco
Esquivo me. o teu sonho mais instigo.
Fujo te: a tua chama mais provoco.

A incêndio do teu sangue me condenas
E com ciumentas ervas te envenenas
Dizendo às nuvens que só tu me viste.

Bebendo o vinho de amantes mortos queres
Que eu seja a mais prateada das mulheres.
E de ser tão amada eu fico triste.

FALAVAM ME DE AMOR

Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,

menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.

Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.

O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.

Fonte:
Estudio da Raposa

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