ATÉ ONTEM...
(POR ENTRE RESTOS DE ROSAS)
Até ontem, a tarde trazia
um pouco de cheiro de rosa,
apesar de serem poucas
as floradas do meu jardim.
Havia, na cumeeira das casas,
o medo aos morcegos,
aos fantasmas desdentados,
e aos bruxos de antanho.
Mas, nesta tarde fria e longa,
me encontro sem halo
de camélias, e com o vaso
aposentado das rosas.
E com um espinho lancinante
na fala, recendendo a abandono.
Sem jardins, vejo a noite
cair pesada, e tenho saudade
dos meus fantasmas,
dos morcegos de Santana, e
dos bruxedos do faz-de-conta...
A vida lá fora me garroteia,
e agarro-me a estes humildes
restos poéticos, único barco
deste pouco que ficou de mim.
DESPOJOS
O palhaço partiu,
os balões ficaram flácidos,
o bolo carcomido, e
as crianças despedem-se sem graça.
Na rua em frente, um balão a quicar,
com o vento trigueiro a levá-lo...
Preguiçoso, a rolar pelas pedras,
cabreiro, a acenar para a noite da favela.
De repente, uma luz dúbia na janela,
um olho na fresta, e um coração,
infante, a rezar pelo atraso do lixeiro,
para reinar cedo nos despojos da alegria.
MEANDROS
A noite não vem,
o sol não quer se despedir,
e a felicidade pende como promessa.
Enquanto isso, lá fora, nos meandros
dessa tarde infinda, o bicho-homem
insiste em festejos, apesar do peito,
necrotério, repleto da nefasta abulia.
A REGALIA DE UM DESVARIO
Na beira da estrada solteira,
cabelos lisos, sem riso.
Em meio às pedras toscas,
a regalia de um desvario.
À leira do cântico, em estilo,
os versos a escorrerem da boca.
Dentes a mastigar o uivo
da aurora, amistosa, a lhe fazer
em lobo. No canto, contido.
DAS ESCOLHAS
De todas as dores, a mais do meio;
Dos loucos amores, quero o mais doído.
Das flores, a da rosa do centeio;
Desta fria noite, o mal, calmo e banido.
De tudo, o resto do resto do pouco;
Do pouco, pouco, o que foi mais moído;
Mas que, desta funda noite, escoa o soro
De uma vida por demais ultra-sentida.
CABRA DE PEDRA
A João Cabral de Melo Neto
Ser racional, rocha, pedra.
Fitar o consciente, faca afiada.
Correr com o rio do riso, banir o tolo sorriso.
Exorcizar a volúpia, o transbordamento.
Arquitetar, raspar os excessos.
Ouvir o canto primal, verão solar.
Procurar, catar a palavra exata, sonata-miolo.
Nada que falte ou exceda.
Mastigar, ulcerar, triturar o excedente...
Tecer o cerne da pedra, miolo inconsútil da pedra...
.................................................................................
Arquiteto da pureza que choca,
Fostes o maior dos estetas – anti-supérfluo:
Cabra, e cobra, do pensar, e criar, com pedras.
A pedra das pedras. Sem plumas, com unhas.
Poesia severina. Tradução de todas as sinas.
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(POR ENTRE RESTOS DE ROSAS)
Até ontem, a tarde trazia
um pouco de cheiro de rosa,
apesar de serem poucas
as floradas do meu jardim.
Havia, na cumeeira das casas,
o medo aos morcegos,
aos fantasmas desdentados,
e aos bruxos de antanho.
Mas, nesta tarde fria e longa,
me encontro sem halo
de camélias, e com o vaso
aposentado das rosas.
E com um espinho lancinante
na fala, recendendo a abandono.
Sem jardins, vejo a noite
cair pesada, e tenho saudade
dos meus fantasmas,
dos morcegos de Santana, e
dos bruxedos do faz-de-conta...
A vida lá fora me garroteia,
e agarro-me a estes humildes
restos poéticos, único barco
deste pouco que ficou de mim.
DESPOJOS
O palhaço partiu,
os balões ficaram flácidos,
o bolo carcomido, e
as crianças despedem-se sem graça.
Na rua em frente, um balão a quicar,
com o vento trigueiro a levá-lo...
Preguiçoso, a rolar pelas pedras,
cabreiro, a acenar para a noite da favela.
De repente, uma luz dúbia na janela,
um olho na fresta, e um coração,
infante, a rezar pelo atraso do lixeiro,
para reinar cedo nos despojos da alegria.
MEANDROS
A noite não vem,
o sol não quer se despedir,
e a felicidade pende como promessa.
Enquanto isso, lá fora, nos meandros
dessa tarde infinda, o bicho-homem
insiste em festejos, apesar do peito,
necrotério, repleto da nefasta abulia.
A REGALIA DE UM DESVARIO
Na beira da estrada solteira,
cabelos lisos, sem riso.
Em meio às pedras toscas,
a regalia de um desvario.
À leira do cântico, em estilo,
os versos a escorrerem da boca.
Dentes a mastigar o uivo
da aurora, amistosa, a lhe fazer
em lobo. No canto, contido.
DAS ESCOLHAS
De todas as dores, a mais do meio;
Dos loucos amores, quero o mais doído.
Das flores, a da rosa do centeio;
Desta fria noite, o mal, calmo e banido.
De tudo, o resto do resto do pouco;
Do pouco, pouco, o que foi mais moído;
Mas que, desta funda noite, escoa o soro
De uma vida por demais ultra-sentida.
CABRA DE PEDRA
A João Cabral de Melo Neto
Ser racional, rocha, pedra.
Fitar o consciente, faca afiada.
Correr com o rio do riso, banir o tolo sorriso.
Exorcizar a volúpia, o transbordamento.
Arquitetar, raspar os excessos.
Ouvir o canto primal, verão solar.
Procurar, catar a palavra exata, sonata-miolo.
Nada que falte ou exceda.
Mastigar, ulcerar, triturar o excedente...
Tecer o cerne da pedra, miolo inconsútil da pedra...
.................................................................................
Arquiteto da pureza que choca,
Fostes o maior dos estetas – anti-supérfluo:
Cabra, e cobra, do pensar, e criar, com pedras.
A pedra das pedras. Sem plumas, com unhas.
Poesia severina. Tradução de todas as sinas.
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Fontes:
Antonio Miranda
Jornal de Poesia
Imagem = montagem José Feldman
Antonio Miranda
Jornal de Poesia
Imagem = montagem José Feldman
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