quarta-feira, 15 de julho de 2009

Clauder Arcanjo (O Retorno do Burguês)


Lutara avidamente para superar as inexorabilidades do destino. Fizera-se homem, edificara posses, construíra uma carreira digna e bendita pelos cânones capitalistas. Carro, casa, esposa e filhos, patrimônio para o futuro, profissão e algumas passagens pelas colunas sociais. Batismo de pequeno burguês. Enfim, aquele estágio que satisfaz o ego dos parentes, que identificam ter com ser, e atrai um ligeiro sentimento de inveja dos não-aquinhoados.

Voltemos no tempo e vejamos como tudo começou. Fora uma criança que não tivera olhos para as brincadeiras da época. Só lhe estimulava os jogos de poder e ganância. Era maluco por ter um níquel entre os dedos. Com o tostão de hoje se preparava para o milhão de amanhã. Avidamente. Sentia-se sempre incomum. Seus conterrâneos, presos e amantes daquela pequena vida, ele com asas sedentas para novos mundos... Um Ícaro em busca do céu da riqueza.

O tempo corria e só aumentava esta ânsia pela posse, compra da vida. Resolvera abandonar a pequena cidade natal. “Aquela gente era muito parada!”, vociferava. “Tal local não reúne as oportunidades para satisfazer minhas ambições!”. Assistira boquiaberto aos programas de televisão na casa de Zé Gerardo, seu colega de colégio, e babara com a visão da metrópole: cheia de cifras e de prédios arranhando os céus. “Gente! Era isso!”, pensara. E não dormira aquela noite, olhos abertos para este novo mundo. Já se via lá, entre os eleitos. Dois meses depois, pé na estrada. Viajara no misto até a cidade próxima e de lá, trem até a cidade grande.

Sofrera e ralara muito. Tudo demandara muito esforço e superação. Foram lutas em matas escuras e densas, parcas de estímulo e cheias de ossadas de desistentes. Só o farol do sonho do ter, lá no fundo, a iludir os músculos e cérebro de que o alvo estava próximo. Anos e anos de estudo, trabalho, luta, poupança, privações e de não se entregar. Hoje aquela rala sensação de que chegara lá. Meio cisma de dever cumprido. Procurava externá-lo com o carro da moda, a mansão moderna apesar de incômoda, a casa de praia opulenta, mas nunca visitada, roupas de grifes, corte de cabelo moderno com creme... Enfim, um exímio cartão-postal ambulante. Um modernoso.

Formara-se, casara-se, montara patrimônio, tivera seus filhos e...

Vários anos escoaram pelo ralo do tempo quando nosso burguês João Batista de Alencar se deparou com alguma melancolia. Certo peito preso, meio indefinível para alguém que se achava detentor de tudo. Passou a sonhar com a sua província e com os seus. Como andavam seus pais Zé e Maria? E os colegas de escola: Pádua, Gazumba, Totonho, Expedito?... Um silêncio cortava o ar.

Os filhos cresceram e, educados em sua cartilha, largaram a família e foram vencer no mundo. E nem mandavam notícias... Certo dia, encontrou-se com os versos de Drummond: “... hoje Itabira é apenas um quadro na parede e como dói...”. Danado desse verso se transformara em uma pedra no meio do seu caminho. Caminhava para morrer gordo, burocrata e feliz, sem grandes atribulações. E um poema no meio do caminho colocara uma pedra na sua consciência. O relógio trabalhava e aquela sensação só lhe cutucava a mente. Como já se percebera supérfluo em sua casa (mulher nos chás e nas fofocas, filhos no mundo brigando por dinheiro), resolveu visitar sua pequena cidade. Precisaria consultar o mapa para não errar o caminho.

Tinham se passados cinqüenta anos.

Ao chegar, não foi reconhecido por ninguém. Rodou a esmo pela cidade, caminhando sem pressa. Aquilo fez uma limpeza em suas memórias, locupletadas de cédulas e vazias de emoção... E as lembranças da infância foram se apresentando. Eram poucas e isso lhe incomodava. Fugira do lúdico na busca frenética e cega pelo vil metal. Rodou pelas ruas da sua província, reconheceu sua antiga casa, hoje ocupada por outra família, visitou a antiga escola, velha e com as paredes prestes a desabar... Tudo foi lhe invadindo o corpo num crescendo, foi tomado por uma enxaqueca forte e súbita, parou. Sentou-se no banco da praça da matriz e chorou. Chorou copiosamente.

As lágrimas escorriam pela face aos borbotões: fora o primeiro choro da sua vida. Aquele líquido, ao sair de seu corpo, limpou-lhe a visão, adubou seus sentimentos e baniu a terrível dor de cabeça. Respirou profundamente aquele cheiro de vida, levantou a face alegre e... Viu debaixo do grande tamarineiro no meio da praça três crianças rindo e jogando bila (na grande cidade eram bolas de gude)...

Aproximou-se, dobrou a camisa de mangas longas, tirou o sapato da moda, pôs os pés no chão de terra batida e propôs comprar uma bila dos meninos, a fim de participar da brincadeira. “Comprar?”, gritou alto o menor deles. “Tome uma para você e entre no nosso jogo. Sempre cabe mais um quando se usa Rexona!”, fechou ele resoluto.

O velho burguês entrou no jogo, fez-se criança e se sentiu, pela primeira vez na vida, conhecedor de algo simples que sua cidade sempre tivera: felicidade.

Fontes:
Jornal de Poesia
Imagem recortada de Fashion Bubbles

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