quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “28”

 

José Feldman (Pafúncio na Exposição de Quadros)

Era uma noite elegante e sofisticada no renomado Museu de Arte Moderna, onde uma exposição de quadros de artistas contemporâneos estava prestes a ser inaugurada. Pafúncio, o jornalista da revista “Fuxicos & Fofocas”, foi enviado para cobrir o evento e, claro, trazer algumas fofocas quentinhas sobre a alta sociedade local.

Vestido com um terno que parecia ter sido emprestado de um filme dos anos 80 e uma gravata estampada com desenhos de patos, Pafúncio entrou no museu com um sorriso radiante, mal sabendo que a noite se tornaria um verdadeiro desfile de trapalhadas.

Assim que chegou, Pafúncio observou as pessoas da alta sociedade conversando em pequenos grupos, todas vestidas com roupas de grife e segurando taças de champanhe. Ele, por outro lado, parecia um pato fora d’água. 

“Aqui estou eu, pronto para fazer história!” ele pensou, enquanto caminhava em direção ao coquetel.

Ao se aproximar da mesa do coquetel, Pafúncio viu uma bandeja cheia de canapés e, sem pensar duas vezes, pegou um punhado deles. 

“Deliciosos! Vou dar uma entrevista sobre eles!” ele exclamou, enquanto começava a mastigar e a falar com um grupo de convidados.

“Desculpe, você é…?” uma mulher bem-vestida perguntou, olhando para ele com uma expressão de confusão.

“Sou Pafúncio, da revista “Fuxico & Fofocas”! Estou aqui para cobrir a noite e descobrir os segredos da alta sociedade!” ele respondeu, com um pedaço de canapé preso entre os dentes.

Pafúncio decidiu que era hora de tirar algumas fotos. Ao tentar ajustar a câmera, ele acidentalmente esbarrou na mesa, fazendo com que uma taça de champanhe voasse pelo ar e aterrissasse bem em cima do vestido da mulher que acabara de entrevistá-lo. 

“Ai!” ela gritou, enquanto todos ao redor se viravam para olhar.

“Desculpe! Era para ser uma homenagem ao seu vestido!” Pafúncio disse, tentando se desculpar, mas as pessoas apenas o encararam, perplexas.

Determinado a se recuperar, Pafúncio começou a se mover em direção aos quadros. Ele parou em frente a uma obra de arte abstrata e começou a explicar para uma pequena multidão o que achava que era a mensagem do quadro. 

“Eu vejo aqui um grito pela liberdade, uma luta contra a opressão dos… das azeitonas!” ele comentou, fazendo referência a um prato que ainda estava na sua mente.

As pessoas começaram a cochichar entre si, claramente divididas entre o riso e a perplexidade. 

“Quem é esse?” alguém murmurou.

Enquanto tentava tirar uma selfie com a pintura ao fundo, Pafúncio, em sua animação, deu um passo para trás e, sem querer, esbarrou na mesa de bebidas. A bandeja, cheia de copos, fez um movimento pendular e se despedaçou no chão, com um barulho estrondoso que fez todos os convidados se virarem, boquiabertos.

“Meu Deus!” gritou um dos organizadores, enquanto Pafúncio tentava ajudar a limpar a bagunça, mas acabou escorregando no líquido derramado e caindo de joelhos. 

“Estou apenas testando a resistência do chão!” ele gritou, enquanto se levantava, agora com as calças molhadas.

Finalmente, chegou a hora do discurso do curador da exposição. Pafúncio, pensando que poderia ajudar a animar o ambiente, decidiu se posicionar perto do microfone. 

“Eu tenho algo a dizer!” ele interrompeu, mas o curador já estava no palco.

“Por favor, não…” o curador murmurou, já prevendo o desastre.

Pafúncio puxou o microfone com tanto ímpeto que ele se soltou e fez um ruído ensurdecedor, causando um alvoroço. 

“Desculpe, só queria dizer que a arte é como um… um sapato apertado! Às vezes, você só precisa tirar para se sentir livre!” ele gritou, enquanto as pessoas cobriam os ouvidos.

A essa altura, a situação era tão cômica quanto caótica. Os convidados começaram a olhar para Pafúncio com uma mistura de medo e diversão. O que ele faria a seguir? Uma mulher de um grupo próximo murmurou: “Espero que ele não derrube mais nada!”

E foi então que, ao tentar fazer uma pose engraçada para uma foto, Pafúncio decidiu subir em uma cadeira para ser mais visível. No entanto, a cadeira não aguentou o peso e se quebrou, fazendo com que ele caísse novamente, agora em uma pilha de casacos que estavam pendurados em um cabideiro.

No final da noite, enquanto todos estavam atordoados, Pafúncio, ainda tentando se recompor, levantou-se e olhou para a multidão. 

Os convidados começaram a se dispersar, alguns ainda rindo, outros balançando a cabeça em incredulidade. “Quem era aquele?” alguém perguntou, enquanto Pafúncio se despedia, feliz e satisfeito por ter, de alguma forma, conseguido alguma coisa naquela noite.

Enquanto saía, ele pensou: “Talvez eu devesse fazer mais reportagens em eventos da alta sociedade.” 

E assim, com sua personalidade peculiar, Pafúncio deixou sua marca — e um pouco de caos — na noite que deveria ser de arte e sofisticação.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Vereda da Poesia = 145 =


Soneto de
LUIZ POETA
Rio de Janeiro/RJ

Caricaturarte

Perdoa, amigo, mas... enquanto eu me voltava
para os encantos que movem a poesia,
não reparei o teu olhar que captava
alguns detalhes da minha fisionomia:

Nariz adunco, riso sério... um violão,
olhos puxados, uma boina italiana,
camisa simples, velha barba... um bigodão...
Como Camões, fui muito além da Taprobana.

Fiquei, confesso, tão feliz, pus na moldura
A tua arte espontânea, amiga e pura,
Para que todos possam ver que a amizade

Pode mostrar, numa bela caricatura,
O quanto a vida que às vezes é tão dura,
Faz da ternura, a luz da fraternidade.
= = = = = = 

Trova de
RENATO FRATA
Paranavaí/PR

Corra em busca do carinho
bem de mansinho, eu lhe rogo
venha bem devagarzinho
que esta vida passa logo.
= = = = = = 
Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Fugaz

Em meu sonho 
vi você passeando
pelos caminhos
do meu coração. 

Nossos olhos,
num repente, 
se cruzaram 
em louca contemplação.

Pensei comigo: 
“Ela vai voltar”
e todo “meu eu” se engalanou... 
por um instante apenas... que triste decepção!

Havia, ao lado, um outro recipiente
Igualmente com flores enfeitando
Pequenas almas em animada festa
Numa alegria pra lá de incandescente.

O meu desespero... chorou...
Derramou lágrimas da mais pura felicidade 
Esse momento, confesso, eu amei.
Mas, para meu espanto, em seguida, acordei!
= = = = = = 

Trova Premiada de
ALBA CHRISTINA CAMPOS NETTO
São Paulo/SP

Nossa história inacabada
acabou sem começar…
é uma página virada
que eu tento em vão resgatar.
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Amor único

Amor do passado,
Do presente
Que dobra as falas do tempo
Em um origami,
Inebria-me,
Semeando em mim teu néctar
Em gotas de vento
E, com tuas cores despenteia
Meu cabelos...
Um amor único
Que enquanto
Acaricia minhas mãos
Beija-me com a doçura
Do teu sorriso...
Um amor único
Imensurável
Intenso e misterioso
Permanece
Na quietude
E, na troca de carinhos -
Centelha que inunda
A fonte dos desejos
Do amor que se fez,
Intensamente,
Belo e inesquecível...
= = = = = = 

Fábula em Versos
adaptada dos Contos e Lendas da África
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

A Fada do Rio

No vale encantado, onde o rio dançava,
vivia uma fada, cuja luz brilhava.
Ela cuidava das águas, com amor e carinho,
protetora dos peixes, do sapo e do passarinho.
Mas um dia, a poluição ameaçou,
e a fada, aflita, um plano traçou:

Reuniu as crianças, com corações valentes,
“Vamos limpar o rio, seremos persistentes!”
Com mãos unidas, e sorrisos brilhantes,
transformaram o rio, em águas vibrantes.
A fada sorriu, seu coração agradeceu,
o rio reviveu, e a magia renasceu.

Juntos, podemos curar a natureza ferida,
o amor e a ação trazem vida à vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Popular

Quem  tiver filhos pequenos
por força há de cantar:
quantas vezes as mães cantam
com vontade de chorar.
= = = = = = 

Soneto de
JERSON BRITO
Porto Velho/RO

Versos dolentes

Voragem tenebrosa que me abraça
Suplico a ti meu breve livramento
Dos tragos espinhosos dessa taça
Já farto quero o fim do sofrimento

Navalha do amargor que me traspassa
E vive a propagar abatimento
A lâmina que inflige tal desgraça
Retires deste peito... Eis meu lamento

Em frias madrugadas, vago aos prantos
Momentos a lembrar, tantos e tantos
Estampa-se em minh'alma uma ferida

Cingido pel'angústia sem remédio
Sou vítima indefesa desse assédio
Amor, como a saudade é dolorida...
= = = = = = 

Trova de
YEDDA RAMOS PATRÍCIO
São Paulo/SP

A força da sedução
vem de forma tão intensa
que ela atinge o coração
sem mesmo pedir licença!...
= = = = = = 

Poema de
SAMUEL DA COSTA
Itajaí/SC

Escada para o céu

Escrevo um poema com toda a urgência
Escrevo com poesia
Sem regra e sem lógica

Preciso escrever o poema perfeito!!!
Re-produzir a vida sem regra
Re-escrever a vida
Sem crase...
Sem vírgula...
E sem ponto final

Escrever o poema perfeito
Com poética!
Milimetricamente errado
Em uma mimese
Que não imita nada

Re-produzir o vazio dentro de mim
Nas belas-letras
Sem grito
Sem sustos
E sem ponto final

Quero ver a minha poesia
Virar a página
Ganhar as ruas
Dobrar a esquina
E subir os céus
= = = = = = 

Trova de
MILTON SOUZA
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

Luz que ilumina a partida,       
luz que brilha nos caminhos:
os alicerces da vida
são lar e escola, juntinhos...
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Felicidade

“Ser rico é ser feliz...” Frase enganosa!
Pois por aí se matam opulentos,
enquanto, pobres, nós vemos aos centos
querendo vida, mesmo que impiedosa!

Felicidade é coisa caprichosa,
que vem e vai bem ao sabor dos ventos...
Jamais sossega, além de alguns momentos
em que visita... E vai-se pressurosa...

Para instigá-la dizem que a pessoa,
como fazem as flores na atração,
tem que se ornar de cores bem febris...

Se um beija-flor, em louco voa-voa,
Buscando néctar, beija um coração...
Nesse instante fará alguém feliz!
= = = = = = 

Trova do
Príncipe dos Trovadores
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

A terra oferece à gente
o exemplo da gratidão:
trata-a bem... dá-lhe a semente...
que os frutos logo virão...
= = = = = = 

Soneto de
FLORBELA ESPANCA 
Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos

Inconstância

Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer…
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando…

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há de partir também… nem eu sei quando!
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Num ermo triste, isolado,
eu choro minha orfandade.
Pois assim deve fazer
quem tem su'alma em saudade.
= = = = = = 

Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Calmaria

Plantio de sonhos
saúdam em cores
seus ares gentis,

até as estrelas sorriem sutis.
Em arranha-céus paira o eco
seco, pêndulo de uma matiz.
As brandas nuvens são elos
poéticos de novas eras viris.
= = = = = = 

Trova Humorística de 
DIRCE DAVENIA GUAYATO
Londrina/PR

Diz um fantasma ao colega:
Hoje, a moda é dadivosa
lençol branco, como é brega,
chique mesmo é ... cor de rosa!
= = = = = = 

Soneto de 
JANSKE NIEMANN SCHLENCKER
Curitiba/PR

A alguém que partiu

Verso após verso eu me desfiz em pranto,
noite após noite sem poder dormir
e compreendi que te adorando tanto,
talvez não possa nunca mais sorrir ...

Destino atroz: matou aquele encanto
que eu procurava para me iludir.
Foi-se a ilusão; agora vejo o quanto
me é doloroso ver que vais partir!

É luz que morre em plena mocidade,
fazendo entrar as trevas da velhice ...
Meu louco amor, perdeste a eternidade!

Adeus! Não vás ... Eu morrerei por certo!
Nem quero a vida, já que vais embora
deixando a sombra da saudade perto ...
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Casamento é uma loucura 
para o marido hoje em dia: 
ela impõe a ditadura 
e ele nem pia, nem chia... 
= = = = = = 

Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/SP

Elogio ao amor

Neste caminho eu sigo contemplando
a Natureza exuberante e bela,
passarinhos nos ramos saltitando
entoando canções em aquarela.

Aonde quer que eu vá, eu vou cantando
a pureza do amor, pintado em tela,
que Deus o produziu, por certo amando,
para mostrar ao mundo, em passarela.

O amor? Triste de quem não tem amor,
nem sentiu nesta vida alguma dor,
nem teve uma saudade a recordar?

Pois o amor é um sublime sentimento
que ferve, vibra e invade o pensamento,
e  nos leva ao delírio para amar!
= = = = = = 

Poetrix de
AILA MAGALHÃES
Belém/PR

solitário amor

toco-me
e, em transe,
te executo
= = = = = = 

Soneto de
JOSÉ XAVIER BORGES JUNIOR
São Paulo/SP

A magia do anoitecer
 
Caía a noite na floresta imensa,
Enquanto o lago desaparecia
Na escuridão da mata triste e densa
Dizendo adeus ao dia que partia...
 
Entristecido pela indiferença
Desta floresta, que durante o dia
Ele enfeitava com sua presença,
Fitava a luz que desaparecia...
 
Tornou-se negro, opaco e triste o lago
sem um luzeiro a espelhar-lhe a face
ou uma brisa a lhe fazer afago...
 
Então Jacy surgiu em esplendor,
e com Yara, no mais puro enlace,
Iluminou o lago com amor...  
= = = = = = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/ SP

Seu dono, pra castigá-lo,
— perdeu, na rinha, outra vez —
com um dos filhos do galo
fez um franguinho xadrez!
= = = = = = 

Poema de 
FERNANDO PESSOA
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

Uma maior solidão

Uma maior solidão
Lentamente se aproxima
Do meu triste coração.

Enevoa-se-me o ser
Como um olhar a cegar,
A cegar, a escurecer.

Jazo-me sem nexo, ou fim...
Tanto nada quis de nada,
Que hoje nada o quer de mim
= = = = = = 

Trova Humorística de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Maracutaia na vila!
A pulga é presa em flagrante,
por vender, justo na fila,
seu lugar para o elefante!
= = = = = = 

Hino de 
Arapiraca/AL

Sob um céu de safira estrelado,
Num agreste deste imenso Brasil,
Fora um rincão pequenino fadado
A ser majestoso, soberbo e viril.

CORO
Arapiraca, Estrela radiosa,
Que fulgura sob o céu do Brasil,
Cidade sorriso, cidade formosa,
Cheia de esplendores e de encantos mil.
Arapiraca fora a inspiração
De um sertanejo cheio de fé,
Rendamos, pois, de coração
O nosso "Hosana" a Manoel André.

A cultura do fumo, a sua riqueza,
O "ouro negro", que os seus campos veste
Lhe adquirira um título de nobreza,
"cidade Galã, Princesa do Agreste".

Terra adorada, Gloriosa terra,
Crisol da Pátria, abençoada por Deus
Receba, pois, o afeto que se encerra
Nos meigos corações dos filhos teus.
= = = = = = 

Trova de
EXCLUÍDO
= = = = = = 

Soneto de 
FRANCISCA JÚLIA
(Francisca Júlia da Silva Munster)
Eldorado/SP (antiga Xiririca) 1874 –  1920, São Paulo/SP

Noturno
 
Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério...
À frente, um vulto agita a caçoula do incenso.
 
E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de misticismo aéreo.
 
Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua...
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.
 
E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele, em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

No lar que me fez honrado
ante os conceitos de espaço,
o respeito era sagrado
mesmo que o pão fosse escasso.

Eduardo Affonso (Mentiras que os donos de cachorro contam)

A mentira 1 que os donos de cachorro contam é que são donos de cachorros.

Ninguém é dono de ninguém, muito menos de um cachorro.

Cachorros são seres insólitos. Têm um ranço nato dos gatos, criaturas que os ignoram e cujos olhos felinos lhes dedicam, no máximo, uma mirada de indulgência. Têm inexplicável interesse por porcos espinhos, animais cujo leiaute é um cartão de visitas claríssimo: não mexa comigo. Têm fetiche por pneus, entidades que perseguem com afinco, como se cravar os dentes numa roda de borracha lhes fosse descortinar o sentido da vida.

E se afeiçoam justamente a seres humanos.

Qualquer organismo inteligente se afeiçoaria aos gatos, não aos seres humanos. Qualquer indivíduo sensato manteria dos humanos e dos porcos espinhos uma prudente distância. Qualquer entidade racional saberia que humanos e pneus não levam (metaforicamente, pelo menos) a lugar nenhum.

Pois os cachorros resolveram se afeiçoar aos seres humanos. Ignorar os alertas de perigo que os humanos emitem em cada gesto. E vivem correndo atrás de nós, seja abanando o rabo, seja cravando os dentes, como se para isso tivessem nascido.

Os “donos de cachorro” se encantam com esses paradoxos. Veem no cachorro um avatar peludo e arfante, uma versão melhorada de si mesmos. E deles se apropriam, oferecendo-lhes vacina, coleira, ração, tosa e dois passeios diários em troca do amor maior que há no mundo (mãe perde) – da mesma forma como os exploradores trocavam miçangas espelhos e quinquilharias por ouro prata terras sem fim.

Donos de cachorro mentem (mentira 2) quando dizem que vão levar os cachorros para passear.

Cachorros não passeiam. Cachorros urinam e cheiram. O passeio é um meio, o instrumento do qual o cachorro tem que lançar mão (no caso, lançar pata) para poder urinar em vários lugares e cheirar tudo que estiver no raio de alcance da guia presa à sua coleira.

O passeio é uma mentira social que o suposto “dono de cachorro” inventa para não ter que assumir que apenas se presta a viabilizar as urinadas necessárias à comunicação olfativa do cachorro.

A mentira número 3 é a de que o cachorro é educado e só faz evacua na rua. Isso não é educação: é chantagem. Uma forma que o cachorro encontra de constranger seu humano a levá-lo para urinar e cheirar em locais onde essas atividades sejam mais estimulantes que na área de serviço ou na varanda.

E cachorro não evacua na rua: faz na calçada. De preferência, nas saídas de garagem ou diante de aglomerações, de modo que o ritual de enluvar a mão no saco plástico, se agachar e catar o dito cujo sejam devidamente apreciados por quem estiver saindo de casa ou esperando o ônibus.  É que o cachorro gosta de exibir o adestramento do seu “dono”, fazê-lo demonstrar suas habilidades (“Estão vendo o meu “dono”? Olhem os truques que ensinei a ele: Luvinha! Agachado! Catando caca! Carinha de nojo! Nozinho no plástico! Isso! Bom garoto!”).

Mentira 4:  tratamos cachorros como filhos. Jamais. Filhos são filhos, cachorros são cachorros. Filhos saem sozinhos; cachorros, não – do cachorro a gente cuida direito e não permite que corram riscos desnecessários. Filhos um dia se casam e vão cuidar da própria vida –  cachorros ficam para sempre.

Cachorros envelhecem conosco. Morrem nos nossos braços. Quando se vão, nos deixam de herança um pote vazio e uma coleira adormecida que são a própria Dor em forma de vasilha, o Desalento em fivela e fita.

A mentira 5 é a maior de todas:  a do “nunca mais”. Todos dizemos “Nunca mais quero passar por isso”. “Outro cachorro, nem pensar”. E daí a pouco lá estamos nós desviando o olhar na Feira de Adoção (desviando o olhar, não o coração). E um minuto depois fazendo contato visual com um filhote, um adulto sem rabo, um ancião de focinho grisalho.

Aí lá vamos nós de novo. De novo “donos” – do Tião, da Duda, da Luna, que não são mais que novas manifestações da Bené, do Negão, do Bento, do Luke e de todas essas versões melhoradas de nós mesmos – só que com pulga e soltando pelo, que ninguém é perfeito.

[Levei Cacau para ser sacrificada. Despedimo-nos longamente. Fiz uma foto dela –a última – na maca.

Saí da clínica repetindo o mantra da mentira 5, a do “nunca mais”. Mas não custava fazer mais uma tentativa, e Cacau reagiu à medicação. Dois dias depois, fui buscá-la, e me recebeu andando com dificuldade, mas andando – ela que chegara no meu colo. O mesmo olhar, a mesma respiração ofegante, o mesmo jeito de abanar o rabo como se não houvesse amanhã. Houve amanhã.

Substituí a mentira 5 pela 1, e voltei a mentir para mim mesmo que sou “o dono da Cacau”, como um dia fui dos seus pais, Negão e Benedita.

Cachorros são seres estranhos. Ao contrário dos seus “donos”, que os levam “para passear”, “fazer cocô na rua” e os tratam “como filhos”, eles não precisam mentir. Jamais.]

Recordando Velhas Canções (Quero morrer cantando)


(samba, 1934)

Compositor: Valfrido Silva

Quero morrer cantando um samba
No meio de uma roda bamba
Quero zombar da própria morte
Cercado das pequenas
Que me deram inspiração e forte

No outro mundo
Vão me rir e caçoar
E decida se matando em trabalhar
Pensando somente na riqueza
Sendo a vida mergulhada
Mergulhada na tristeza

Quero morrer cantando um samba
No meio de uma roda bamba
Quero zombar da própria morte
Cercado das pequenas
Que me deram inspiração e forte