terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Luiz Eduardo Caminha (Lenda de Iaraguaçu)


Lenda premiada em 1º.Lugar no 1º. Concurso Internacional de Lendas e Poesia ME (Mulheres Emergentes) - 2010

Iaraguaçu, grande mãe d’água, era uma velha índia da aldeia Mbyá, do tronco Guarani-karijós, que habitava a ilha de Santa Catarina nos séculos XVI a XVIII, quando o homem branco chegou. Sua tribo descendia dos últimos sete casais fugitivos dos brancos invasores que massacraram a maioria dos Guaranis-karijós da Ilha da Magia. Antes, os casais refugiaram-se no sul da ilha, donde atravessaram para a Praia da Pinheira. Ali, permaneceram apenas um verão, temerosos de novos massacres. Foram para o Morro dos Cavalos. Anos mais tarde, seus pais e parentes migraram para o local onde vivia. Eram pescadores e não podiam viver longe das águas. Dela tiravam seu sustento em canoas de um pau só de garapuvu. Assentaram-se, ainda na segunda metade do século XVII, às margens da Lagoa de Fora, como chamavam a Lagoa de Santo Antônio onde, na margem oposta, crescera a Vila de Laguna.

Iara, como gostava que a chamassem, vivia numa choupana de paus e telhado de folhas de Indayá, uma palmeira da região. Desde pequena tinha visões que prenunciavam coisas boas ou ruins. Na tribo, estas atribuições eram próprias dos Pajés, mas muitos de seus “irmãos da terra” - como ela chamava os índios – dela se valiam. Também era dada a práticas medicinais e até caciques vinham atrás de seu conhecimento sobre as ervas.

Era o ano de 1838. Sua idade era desconhecida, mas os fatos que narrava ter vivido, como a fundação de Laguna em 1776, supunham que beirava os 75 anos. Sua vida resumia-se aos arredores da choupana e, boa parte do dia, em torno de um fogão de barro construído por um de seus netos. Curava muita gente, dava muitos conselhos e mesmo as autoridades de Laguna e as famílias de posse, de vez em quando, a ela recorriam. Afirmavam que, além das curas, ela mudara a vida de muita gente com seus aconselhamentos e adivinhações.

Ainda menina, fora levada pela mãe para servir a uma família da Vila, mas não sabia viver longe da liberdade da mata. Quase nada fazia que fosse costume dos brancos. Sua Senhora, uma mulher má, surrava-lhe com açoites e com uma espalmadeira “pra aprender as coisas”, como dizia.
Um dia, já moça feita, depois de inúmeras tentativas de fuga, fora mandada embora. A mãe já não vivia mais. Havia morrido de fraqueza nos pulmões, doença trazida pelos brancos. A maioria da aldeia havia deixado o lugar.

Iara foi catequizada aos 30 anos e aprendeu malmente a língua dos brancos misturando palavras com o tupi-guaraní. Era assim que falava com as pessoas que a procuravam. A todos atendia e transmitia sua paz interior, fruto das bênçãos de Nhanderú-etê, o Deus Verdadeiro, em quem acreditava.

Vivia com o neto, um cachorro velho e uma formosa águia cinzenta que ela mesma amestrara. Os moradores de Laguna já haviam se acostumado com sua presença soberana e solitária nos céus. Sempre que ela aparecia com seus estridentes trinados, alguma coisa estava por acontecer. Diziam que era Iaraguaçú que a enviava para lhes avisar. Era corrente a crença: quando a águia de Iaraguaçú plainava silente era época de calmaria e peixe em abundância, mas quando aparecia gritando e fazendo voos rasantes, um tempo ruim estava por vir. Era melhor guardar os animais, não sair para o mar e recolherem-se em suas casas, “prá modo de mal algum assussedê”, como diziam os matutos pescadores. Era dito e feito. Quando alguém desafiava o aviso, alguma tragédia acontecia. Barcos que soçobravam, pessoas que adoeciam – e até faleciam – vítimas de uma molha de chuva, gado que morria por ter ficado fora dos potreiros, enfim, o melhor era se precaver.

Uma das protegidas de Iaraguaçú era Aninha, a quem chamava kunhataí, filha do tropeiro Bentão. Fora Iara quem prevenira Aninha que seu casamento, arranjado pela mãe, com o sapateiro da cidade, não vingaria. Também previra que Aninha iria esposar um aventureiro de outras terras, vindo do mar, um valente que viria junto com a guerra que aconteceria no sul do Brasil e que tentaria criar em Laguna uma outra nação, a República Juliana. Tudo acontecera como dissera. Até a doença do pai, também vítima dos pulmões, quando tomara uma chuvarada no alto da Serra do Dose, assim escrita, com “esse”, em virtude de um estalajadeiro italiano da família Dose que vivia no sopé da escarpada montanha. O pai não aguentara e, como previra Iara, atravessara “manõ yvy ugwa” - o vale da morte, para se juntar a Nhanderú-etê.

Aninha não dava um passo sem consultar a velha índia. Muitas vezes, quando algo lhe afligia, era a própria águia que pousava num galho alto de um garapuvu, perto de sua casa, emitindo trinados peculiares, sinal de que a índia queria lhe falar.

Por isso, Aninha muito chorou quando a velha amiga partiu. Teve um estranho pressentimento naquela manhã, ao ver a chuva incomum com raios e trovões como se fosse uma chuvada de verão.

De repente, o sol se abriu, o vento parou e um duplo arco-íris, que ia em direção à Lagoa de Fora, apareceu no céu.

A passarada, que já vinha se ocupando do acasalamento, no leva e trás de palhas e raminhos para os ninhos, parecia ter sido convocada por um Ser Supremo para uma revoada conjunta. O barulho dos pardais, tico-ticos, sabiás laranjeiras, coleirinhas e dos sanhaçus azuis, se misturavam com o gorjeio das pombas rolas e com o grito agudo dos gaviões. Uma Sinfonia da Natureza. Todos os pássaros seguiam o mesmo rumo, em direção ao final do arco-íris. Nas ruas, cavalos relinchavam como se pressentissem um predador. Cães ladravam. Não um latido comum. Uivavam como se estivessem a sofrer, a chorar.

Foram três minutos daquela algaravia. E uma calada se fez. Um grito agudo, da águia cinzenta que voava acima de tudo, rompeu o silêncio. A atenção se voltou para os lados da Lagoa de Fora.

A notícia correu pela Vila como o vento gelado vindo do Sul. Era trazida por “pena-esvoaçante” o pequeno indiozinho carijó, o neto que vivia com Iaraguaçu.

~ Mãe Iara suspirou! Foi pra terra de seus pais! Seu espírito viaja pra encontrar “Nhanderú etê”.

Aninha montou seu cavalo assim mesmo, no pelo, sem perder tempo de encilhá-lo. Disparou em cavalgada para as bandas de onde, à beira da laguna, jazia no leito de palha, o corpo da amiga. Chorava pelo caminho. Suas lágrimas escorriam pelo rosto e embaçavam-lhe a visão.

Não foi só Aninha a única que para lá se dirigiu. A cidade quase se esvaziara para reverenciar a velha índia. Até o Vigário se abalou, em uma charrete, para lá estar. Embora guardasse alguma ligação com aquela espécie de ocultismo dos silvícolas, ele não tinha dúvidas, ali, naquele corpo, habitara um Anjo. Não! Iaraguaçu não era uma bruxa como insistiam alguns poucos maldizentes. Seu Deus era o mesmo Deus da Cristandade. Quando fazia uma prece a “Nhanderú etê”, estava orando ao Deus Verdadeiro dos cristãos. Quando rogava a “Nhanderu ra'y”, o filho de “Nhanderú etê”, era a Jesus Cristo que evocava. Por isso, e por ser batizada, merecia um enterro cristão, no Cemitério da Vila.

Mas, estas vãs preocupações eram desnecessárias. Iara tinha um testamento. Queria um enterro cristão, mas também, de acordo com a tradição tupi-guarany, ser enterrada no Campo dos Espíritos, aonde muitos de sua tribo jaziam em paz. Manifestou ainda em vida, o desejo de ter os serviços funerais de um padre, mas queria que seus restos repousassem com sua gente.

Aninha estava desolada, mas ao mesmo tempo resignada. Embora triste, ficou ali, velando aquele corpo cuja alma, cujo espírito, já estava no lugar que a vida eterna lhe reservara. Um lugar diferente da choupana humilde e pobre que vivera, embora Iara sempre lhe dera a impressão que era feliz do jeito que vivia, da sorte que “Nhanderú etê” lhe reservara. Talvez porque soubesse que a morte era uma passagem para um lugar de Paz, sem sofrimentos, sem o frio gelado do inverno e o calor insuportável dos verões. Uma vida onde as primaveras e os outonos eram as únicas estações. Lá, onde dizia que seu pai Bentão também estava, Iara seria uma luz a brilhar em todos os momentos.

Hoje, as águias cinzentas são uma raridade. Como os índios, foram enxotadas por seu predador, o homem. Mas o espírito de Iaraguaçu ainda paira sobre a Lagoa. Dizem os mais antigos que quando uma tormenta vinda do sul ameaça os pescadores, basta uma prece: “Iaraguaçu, grande mãe d’água, socorrei-nos!” Logo o vento se dissipa e a calmaria reina absoluta.

Quando uma águia cinzenta ainda é vista plainando silente e graciosa sobre os céus da região, os mais velhos sabem que a pesca do camarão e das tainhas será afortunada.
E ainda se recolhem e se protegem quando ouvem alguma delas, com trinados agudos voarem em rasantes por ali.

Luiz Eduardo Caminha
Ratones, Florianópolis

Fontes:
– O autor
– Imagem = http://www.angela.amorepaz.nom.br

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.91)


Uma Trova Nacional

Na calmaria aparente,
num silêncio enganador,
saudade, dentro da gente,
grita mais alto que a dor...
(DOMITILLA BORGES BELTRAME/SP)

Uma Trova Potiguar

Minha mãe, favo de mel,
doçura de um alfenim,
quando estiveres no céu
guarda um lugar para mim.
(CELSO DA SILVEIRA/RN)

Uma Trova Premiada

2010 > Camboriú/SC
Tema > SEGREDO > Vencedora

A vida é tão passageira,
para que tanto segredo?
Se você me ama inteira
revele ao mundo, sem medo!
(GLEDIS TISSOT/SC)

Simplesmente Poesia

– Selmo Vasconcellos/RJ –
MATA

Hoje me matas
violentamente com este machado.
Mas, amanhã das minhas flores
te farão uma coroa,
do meu caule
tua urna mortuária.
Aí sim,
irás ao encontro da minha raiz.

Uma Trova de Ademar

Na natureza eu obtive
uma verdade que ocorre:
sem sangue a gente não vive...
e, sem seiva a planta morre!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Dentro do próprio conceito,
sejam quais as conseqüências,
a justiça, por direito,
não permite reticências...
(CAROLINA A. DE CASTRO/PE)

Estrofe do Dia

Não troco o meu Deus por nada,
Ele é o meu soberano.
Sem Ele eu sou um qualquer
Sem eira e beira, sem plano.
Deus é a minha alegria,
Inspiração, poesia,
Dia, noite, mês e ano...
(DAMIÃO METAMORFOSE/RN)

Soneto do Dia

– Diamantino Ferreira/RJ –
CONSELHO

Afasta de mim os teus olhos... Procuras
curvar-me ao seu brilho? Por que não desistes?
Nas lutas de amor não triunfam loucuras:
mais pode um sorriso que os olhos mais tristes...

Se almejas da vida somente as venturas
por que – se é frustrado – no intento persistes?
Não poupes sorrisos, palavras, ternuras...
E foge de tudo, daquilo em que insistes.

Repara nos outros que vivem ditosos:
felizes, tranqüilos, semblantes formosos...
Sem manchas no dia do Eterno Juízo!

A vida é tão bela! Desterra a tristeza!
Insere em teus olhos a eterna beleza!
Reabre teus lábios num doce sorriso!...

Fonte:
Ademar Macedo

domingo, 9 de janeiro de 2011

Vladimir Cunha dos Santos (Antologia Poética)


REENCONTROS

Quantas vezes nos encontramos
pelas ruas e avenidas....

Quantas vezes nos desencontramos
pelas ruas e avenidas....

Casas velhas
edifícios
velhas árvores
velhas vidas...

Hoje
Fala-se de coisas novas
velhas ficam esquecidas
cicatrizando as feridas
que o tempo
nos propôs.

Quantas vezes
haveremos de nos encontrar
neste caos disfarçado de calmaria?

Quantas vezes?
Quantos dias ?

EU PENSO QUE EXISTO

Eu não existo.
Eu penso que existo
e fico imaginando
mil coisas para mim
que não existo.

Tento negar
esta existência
mas me reencontro
com meras carências mundanas
fraquezas espirituais
dores e ais
obsessões sexuais, musicais...
e digo, escrevo, repito
que não existo
sou fantasia de mim
eu
o poeta
insurgindo-me do nada
ao som de Bach

repassando as cenas do mar
das mulheres nuas e gentis
dos pais e irmãos rindo na ceia

eu criança humana
eu jovem bacana
eu homem responsável
eu velho esperando a morte chegar
eu sempre poeta
meditando, versando....
para descobrir
que não existo.

Sou química?
Apenas isto?

Insisto nisto!

PRESSÁGIO

Mais uma vez
a cafeteira Arno entra em ação.
A manhã é uma loura, louca, plácida.
A agenda, uma perfeita companheira
dos óculos
e as pessoas em volta da cafeteira Arno
entram em ação.

Chega um raio na cidade
e pelas frestas dos edifícios
seca o suor das ruas.

Depois, de uma janela
grita Madalena
louca
aguda
o desabrochar
do 3º milênio.

Sua caricatura
é estampada flácida
nos boletins
do submundo.

CANÇÃO DO MAR

Ai meu velho mar
Ai meu lindo mar
Vou lavar toda a tristeza
que eu trouxe de lá.

Devemos aprender
amar a solidão
amar a tristeza
amar a reclusão.

Ai meu velho mar
Aqui eu quero trabalhar, filosofar...
e a mulher que me quiser, vou namorar.

Ai meu lindo mar
Dai-me alegria e energia
pra eu custar me terminar.

POESIA

Quase tudo é poesia, penso.
A música, o cinema, o teatro
a vida real, o dia a dia...
desejos... tudo tem poesia.

A inspiração das edificações
dos arquitetos do mundo....
é poesia...

a fábrica de juros do capitalismo
e o êxtase nas bolsas de valores
comemora-se com poesia e amores.

Mulheres -alegria dos homens-
são puras poesias
essências dos versos
como a natureza é para os naturalistas
como a revolução para os modernistas...

a vida toda
o mundo gira gira
e tudo vira
poesia.

FOTOGRAFIA

Nos destroços desta geração
lá encontrarão minha fotografia,
um tanto amarelada do tempo
e no cenário uma ventania.

Minha face pálida, morena, colorida...
meu cabelo contrastando com o contra-mar
meu encontro estranho com o flash
e o sorriso mórbido de amar.

Um tanto exótico, desarmado,
esperando que uma morena de olhos verdes confesse
que tanto como ela, ele é amado.

Lábios secos, olhos oblíquos, obstinado
com os destroços desta geração,
um tanto do tempo orfaico a correr pelas mãos.

Fonte:
http://www.vladimirsantos.com.br/

Movimento União Cultural (Participe!)


Vamos unir nossas culturas?

Venha participar do movimento UNIÃO CULTURAL, um grupo com representantes em várias cidades brasileiras e no exterior, sem quaisquer cobranças obrigatórias de taxas, e que visa a busca do conhecimento, a união dos povos, o cultivo da paz universal, dentre outros princípios;

Na UNIÃO CULTURAL você terá:

- Campanhas pela fraternidade, cordialidade, respeito, tolerância, cidadania, caridade, cultura, artes, literatura, dentre outras;

- Um site que está sendo idealizado por LUIZ ANTONIO CARDOSO (Seção Taubaté-SP-Brasil) e que será confeccionado por WALLACE MOURA(Parnamirim-RN-Natal);

- Intercâmbio de informações culturais das seções e núcleos das mais diversas localidades;

- Notícias diversas;

- Um boletim divulgador enviado por e-mail;

- Curiosidades;

- Muitos textos literários;

- Convites para eventos em geral;

- Espaço aberto para seus membros divulgarem seus projetos, eventos, produções, blog´s, etc.;

- Um vasto circulo de amigos com objetivos em comum;

- Eventos culturais conforme os Núcleos e Seções forem se estruturando.

Participe! Informe-se! Basta preencher a fica abaixo e enviar para o e-mail: movimentouniaocultural@gmail.com

FICHA PARA UNIÃO CULTURAL

Nome –
Data de Nascimento –
Local de Nascimento -
Endereço Postal (completo, com cidade e CEP) –
Telefones –
e-mail –
Site ou Blog –
Instituições que pertence –
Formação Escolar –
Profissão -
Possui atividades artísticas ou literárias? Quais? –
Hobbies -

Envie para movimentouniaocultural@gmail.com

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.90)


Uma Trova Nacional

No jardim, junto ao meu quarto,
o silêncio é tão profundo
que se pode ouvir o parto
das rosas chegando ao mundo!...
(HÉRON PATRÍCIO/SP)

Uma Trova Potiguar

Antes que a aurora desponte
dando vida à luz do dia,
tenho que cruzar a ponte
nos braços da poesia.
(PROF. GARCIA/RN)

Uma Trova Premiada

2010 > Curitiba/PR
Tema > MADRUGADA > Vencedora

Pelas noites desoladas,
minha saudade, sem sono,
vai contando, em madrugadas,
os meus dias de abandono...
(MARINA BRUNA/SP)

Simplesmente Poesia

MOTE :
A gente leva da vida,
A vida que a gente leva..

GLOSA :
Na estrada longa e comprida
para a viagem do além,
somente os atos do bem
a gente leva da vida.
Nessa hora decidida
em que o espírito se eleva,
fica a matéria na treva
porém deixa de sofrer,
porque ninguém vai saber
a vida que a gente leva.
(CELSO DA SILVEIRA/RN)

Uma Trova de Ademar

Quando chove, no terreiro,
crianças brincando ao léu,
se banham nus, no chuveiro
da caixa d’água do céu!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Eu tenho sofrido tanto!
Nunca as dores vêm sozinhas!
Julgo até que estou sofrendo
as dores que não são minhas...
(LUIZ OTÁVIO/RJ)

Estrofe do Dia

Vi morrer um pequenino
Que envolto subiu num véu,
Quando chegou lá no céu
São Miguel disse ao Divino:
- Vamos pesar o menino
Que também é pecador?
Jesus disse: - Não senhor,
Pode guardar a balança
Que coração de criança
Não tem ódio e nem rancor!
(SEVERINO FERREIRA/RN)

Soneto do Dia

– Júlio Salusse/RJ –
CISNES

A vida, manso lago azul algumas
vezes, algumas vezes mar fremente,
tem sido para nós constantemente
um lago azul, sem ondas nem espumas.

Bem cedo quando, desfazendo as brumas
matinais, rompe um sol vermelho e quente,
nós dois vogamos indolentemente,
como dois cisnes de alvacentas plumas.

Um dia um cisne morrerá, por certo...
Quando chegar esse momento incerto,
no lago onde talvez a água se tisne,

que o cisne vivo cheio de saudade
nunca mais cante, nem sozinho nade,
nem nade nunca ao lado d'outro cisne.

Fonte:
Ademar Macedo

sábado, 8 de janeiro de 2011

Henrique Oliveira (O Bêbado e o Poeta)

Pintura a óleo, de Francisco Eduardo
- Faz tempo que não venho num espetáculo
- Tem leão?
- Acho que tem.
- Quer quebra-queixo?
- Quero.
- Chocolate quente também?
- Prefiro uma.
- O circo é um lugar sagrado. Você não pode beber aqui.
- Ué. Não é desrespeito beber da forma que eu bebo. Sabe disso.

A noite começava a chegar quando a fila se formava sob a gigante lona amarela e azul. O chão de terra batida era coberto pelo pó de serra. Um friozinho agradável aumentava a venda do tiozinho da barraca de chocolate quente. Osvaldo, o poeta pacientemente aguardou sua vez e pediu ao tiozinho um chocolate e se ele tinha vodka. O bigodudo lhe serviu a bebida quente e balançou a cabeça para os lados respondendo a pergunta. Enquanto fazia o troco para dez, o tiozinho lembrou.

- Não quer um conhaque?
- Pode ser.
- Com gelo?
- Não precisa. Quero quatro doses.

Antes de voltar pra fila Osvaldo passou na barraquinha de doces e comprou dois quebra-queixos. Num, deu uma pequena mordida. O outro deu para o moleque que pedia para engraxar sapatos.

- Obrigado por guardar o lugar.

A moça de vestido roxo sorriu.

- Está forte o chocolate, bêbado?
- Está bom.
- Vamos sentar aqui.
- Aqui é melhor.
- É muito perto do palco. Assusto-me com as bombinhas dos palhaços.
- Deixa de frescura.
- Demora pra começar?

Osvaldo era homem de bom coração. Com canetas e teclados transformava palavras em obras admiráveis. Era um nobre escritor. Chorava fácil. Seus ápices da felicidade atingiam-se em momentos toscos, ingênuos e infantis. O circo era um deles. As luzes se apagaram, uma lágrima desceu para a bochecha do poeta.

Gritou o homem de cartola e smoking pretos.

- Gosto de malabares.
- Eu também.
- Esses são bons.
- Vou pegar mais um conhaque.

Não tinha fila na barraquinha do bigodudo. “O senhor me vê quatro doses de conhaque e um chocolate quente”, pediu o bêbado, que sentou no banquinho de madeira do meio. O tiozinho, sem fregueses naquela hora, puxou papo com o bêbado. “Frio, né? Não gosta de circo?” O bêbado já tem ela pronta. “Gosto sim, e muito. Estou aqui fora porque queria tomar mais um conhaquinho, mas já vou voltar. Quero ver os palhaços. Adoro os palhaços. Você gosta?” “Gosto também. Já fui palhaço. Era um dos bons. Ninguém ficava sem rir. Tenho saudade daquela época.” O causo foi longo. O bêbado ouviu o bigodudo atenciosamente. Despediu-se do tiozinho e voltou para o circo. O espetáculo chegara ao fim. Sua decepção foi visível. Encheu os olhos de água e partiu em direção a porta de saída.

- Eu não vi nada.
- Quem mandou ficar lá fora?
- Não seja ruim comigo.
- Não estou sendo.
- Vamos passar no bar

Osvaldo puxou a cadeira de uma mesa que estava próxima à parede e se sentou. Puxou uma caneta do bolso, um pedaços de guardanapos do porta-guardanapo e começou a resenhar. O bêbado pediu uma vodka.

- Vai tomar vodka?
- Não quero mais conhaque.
- Você está triste por ter perdido os palhaços?
- Um pouco.
- Vamos voltar ao circo amanhã.
- Ótimo.

O bêbado, completamente embriagado levantou-se. Foi ao balcão.

- Eu quero mais uma vodka. Marca pra mim. Estou indo embora.

Responde o dono do boteco: “Vou pendurar, mas preciso que você me pague na semana que chega. Combinado Osvaldo?” “Combinado”, responde o bêbado que foi para casa terminar o conto que havia começado.

Só fico sóbrio para corrigir a gramática do que crio na embriaguez.
Osvaldo, o poeta.

Fonte:
http://oliveirando.blogspot.com/2009/09/o-bebado-e-o-poeta.html

Lino Sapo (Poesias Escolhidas)


JARDIM DOS SONHOS

Abra seu coração e liberte a solidão
Vá até a porta do egoísmo e o prenda com as algemas do altruísmo.
Ache o lugar onde guardou seu ódio e o extraia até a última gota e as lance no fogo do perdão
Atice com coerência,
Para que a temperatura seja correspondente a da razão.
Para apagar o fogo use a lógica,
Depois junte as cinzas no caco da esperança
E misture com honestidade
Deixe descansar por algum tempo à sombra da ética.
Quando estiverem homogêneas plante uma semente do bem
Aguai todos os dias com muito amor,
Quando a paz estiver desabrochando adube com dignidade
Aguai e adube sempre e em pouco tempo colherás felicidade
Tire uma semente e deixe secar aos raios da sabedoria
Embrulhe na gratidão e amarre com solidariedade
Presentei alguém e peça que continue fazendo
Só assim existirá o jardim dos sonhos
Que brotará unicamente da simplicidade
Para que o jardim seja sempre vivo.
Use como inseticida para o orgulho a humildade

POESIA DA CACHOEIRA

Cachoeira do sapo desvirginada antes de nascer ,
Por tropeiros valentes em suas entranhas a percorrer.
Nascida isolada depois de batizada em recantos tão errantes,
Crescendo cheia de vida adotada por pais distante.
Com remonto de segredos que embeleza o existir,
Triunfante como um cometa no seu curso a seguir,
Foste menina que a infância não celebrou,
Devendo obediência a quem não se importou,
Adolescente rebelde que já que andar sozinha,
Nos caminhos da vida já sabe cobrar carinho.

Sempre fostes mãe antes que soubesse caminhar,
De seca a inverno sempre no mesmo lugar
Um presente que Deus deu a quem não sabe cuidar,
Guardas em teu seio segredos de lutas longas a conquistar.
Tua alma espelha a grandeza daqueles que a povoou,
E chora com saudade aqueles que te amou.
Entre o chorão e o purão tuas lagrimas despejou,
Por Inês que foi embora e Sofia que não chegou.
Tão linda como era quando belas fica a encantar,
Mas triste como Danaê sem a chuva a encontrar.

O sol que brilha nascendo por trás das serras a coroa de magia,
E a criança que chora procurando o peito da mãe
É tão viva quanto a lua que a vigia.
Teus rochedos são tão fortes que parecem Sansão.
Tens ventos suaves que alivia o fardo do pobre coração.
Cachoeira das Damianas,das coroas de espinhos.
Sois cigana que sangra cada ano um pouquinho.
Teu poeta é tão simples que nem parece existir,
Mas te louva com amor e te planta na memória
Para no futuro te dividir.

CACHOEIRA DO SAPO

A minha amada terra (Cachoeira do Sapo)

Onde as águas rolam fortes, onde as pedras são sem igual
Onde o vento é maravilha, onde tudo é bem normal
A natureza é uma beleza, E que por aqui ficou
A fauna e a flora que o tempo conservou.
Tudo é maravilhoso, por aqui se pode ver
Já sabemos quem criou, e agradecemos ao senhor.
Como prova de sua grandeza essa terra povoou
Com criaturas exóticas e homem de valor
Obrigado pelo presente que vós nos deixou
O orgulho dessa gente, é que cachoeira do sapo se tornou.

Que eu sou cachoessapense, eu sou.
Com muito orgulho e muito amor.
Cachoeira do sapo eu sei,
Nesta terra me criei.

Foi aqui que eu nasci, por aqui aprendi
O que deve cultivar, o amor e a alegria
Sempre em grande parceria, eternamente iremos levar.
Nossa dor é quase nada e foi imediatamente superada,
Transformada em piada para quem nos escutar.
E a força dessa gente, se deve ao lugar
Nossa historia é forte, não se pode duvidar
Houve conflitos teve mortes, Mas deixou tudo pra lá
Hoje o povo é feliz e pode se orgulhar,
Pois nos restou, a paz para contemplar.

Que eu sou cachoessapense, eu sou.
Com muito orgulho e muito amor.
Cachoeira do sapo eu sei,
Nesta terra me criei.

De seca a inverno, de janeiro a dezembro
Essa terra não deixou seus filhos morrerem em desalento
Água pra matar a sede e pão pra saciar fome
A vida por aqui é bela, e molda nosso homem
De Pedro leite a Junior Bernardo, de Silvio a andrelino
Vivemos de realizar sonhos, que nasceram quando menino
De Neném loicera a Zé Quixaba, de Nicolau a expedito
Nossa sociedade é organizada, esse é o lado mais bonito
São José nosso padroeiro e também bom protetor
Ajude aos filhos de cachoeira do sapo, a viver com muito amor.

Que eu sou cachoessapense, eu sou.
Com muito orgulho e muito amor.
Cachoeira do sapo eu sei,
Nesta terra me criei.

MINHA TAPERA


Quem dera fosse uma mansão
Com quarto, cozinha, banheiro e salão.
Não, não era.
Era miúda com cacto crescendo em suas telhas,
Como cresce verrugas em crianças que contam estrelas.
Tortinha e pensa,
Baixinha e magra,
Suas varas apareciam amarradas com embira
E coberta com folhas de marmeleiro.
Parecia um menino buchudo e desnutrido
Com os pés cheios de feridas.
Assim, ficava
Quando o barro começava a caí dos paus que a segurava.
Barroquenta e fria,
Com meus pés tocando o chão,
A sentia e a via,
Com os olhos remelentos rodeados de mosquitos.
Suas janelas viam os lados
E quando suas portas se fechavam,
As tramelas eram transpassadas
Para dar segurança;
Segurança desnecessária.

Em suas paredes estavam as digitais
Dos dedos marcados no barro seco,
Legado da luta que foi construí-la.
E as frestas de suas telhas,
Quando não tinha uma lata de óleo aberta substituindo uma,
Clareavam o chão batido do piso.
As restas redondinhas ou ovais
Seguiam seu caminho ao contrário do sol.
Em suas rachaduras,
Ficava o habitat dos insetos,
Que furavam seus buraquinhos redondos.
Maribondos também faziam suas casas
Nas linhas de facheiro ou nos caibros de mufumbo.

Minha tapera,
Que não era só minha,
Abrigava sapos, ratos,
Cobras, lagartixas, víboras, maribondos e muriçocas.
Minha tapera,
Que na chuva quase se desfazia por completa
e que na minha infância seu barro era comestível
Tão fria e lamacenta,
Fedorenta e fumacenta.

Lembro ainda do teu fogão de lenha,
Das tripas e preás espendurados num cordão,
Da portinha toda emendada,
Dos armadores da minha rede,
Do pote no canto da sala,
Do cupinzeiro na furquia.

Ah! Que lembrança salgada,
Lembranças das noites mal dormidas
Em que as goteiras caiam dentro de minha rede
Ou os grilos cantavam nos rachões do barro até de manhã.
Velha minha,
Velha tapera,
Hoje já não estais aqui.
Teu barro foi nas águas do riacho
Que tanto nos acordou no meio da noite (com água)
Querendo nos levar.
Tua madeira foi queimada nos fogões da vizinhança
E nas fogueiras de são João.
Tuas poucas telhas
Não serviram para nada,
Nem mesmo para cobrir a casa do meu cachorro,
Virou aterro para o baldame de tua substituta.

Minha querida tapera,
Da minha infância nostálgica,
Ainda lembro de teus quatros repartimentos,
Da meia parede,
Dos papelões tapando teus buracos,
Das pontas de vara nos portais
Arranhando-nos os braços ao passar.
Quantos sonhos de te substituir
Elaborados dentro de ti!
Separamo-nos
Como quem há tempo desejava.
Mesmo ao longe,
Via-te erguida.
Tristinha,
Como se sentisses a minha saída.
Em pouco tempo,
Viesses ao chão
Se desmanchando por completa
E não duraste muito até desapareceres,
Ficando apenas marcas tuas
Do lugar onde foste erguida.
Não te guardei os restos mortais pequenina,
Mas te gravei pra sempre em meu coração,
Que parece te encontra em cada arranha céu que vejo,
Hoje, ele parece ser do mesmo barro que você,
Pois acolhe a todos
Dentro de seus limites, que queira nele viver.

(Homenagem a tapera em que vivi minha infância)

Fonte:
http://linosapovidaeobra.blogspot.com/

Lino Sapo (1981)


Andrelino da Silva (Lino Sapo) nasceu no dia 06/01/1981, no distrito de Cachoeira do Sapo/RN. Filho do casal José Adelson da Silva e de dona Damiana Lúcia da Silva.

Foi o segundo filho do casal num total de cinco. Após seu nascimento foram morar em outras casas do lugar somando num total de doze casas e um pé de árvore por um dia. Começou seus estudos no Projeto Casulo, e sua primeira serie fez na mesma escola que nasceu, agora reformada e em atividade.

Aprende a ler influenciado pelos livros de cordéis que via seu pai ler. Em 1989, seu pai se separa de sua mãe deixando apenas com seus cinco filhos onde a mais velha tinha 10 anos e a mais nova estava na barriga com dois meses.

Andrelino encontra na escola uma oportunidade de fugir de sua realidade, já que a fome e tantas outras necessidades o faziam sofrer diversas formas de preconceito tanto racial como econômico.

Faz seu ginásio em Cachoeira do Sapo, e conclui seu ensino médio em 1998, aos 17 anos. Considerado como vagabundo por gostar e andar com livros pra cima e para baixo, foi amante da literatura no qual se apaixona por personagens como dom Quixote e Policarpo Quaresma.

Trabalhou como carregador de ração de porco durante nove anos, foi carvoeiro, batedor de tijolo e arrancador de toco. Mesmo não tendo apoio fundou o PLUJET, grupo de jovens que trabalhava com o desenvolvimento social e cultural de Cachoeira do Sapo, no qual ocupava a função de diretor de eventos, colocando sua pequena cidade na mídia ao realizar a festa de comemoração dos 70 anos de Cachoeira do Sapo no ano de 1999.

No ano 2000 foi soldado do exército, onde começou a criar suas primeiras poesias. Ao terminar seu ano no exército retorna para Cachoeira do Sapo onde funda no ano 2001 o Arraiá do Sapo, o primeiro grupo de quadrilha matuta a disputar em festival e a ganhar destaque no meio cultural da região conquistando seus primeiros troféus.

Criador de peças de teatro e também ator, investiu por conta própria na cultura de Cachoeira do Sapo pesquisando e escrevendo história local. No ano de 2003 foi trabalhar em Natal como servente de pedreiro, lugar onde se encanta com a Universidade Federal.

No ano de 2005 presta seu primeiro vestibular. Passando em décimo lugar para o curso de Biblioteconomia, se tornando o primeiro cidadão Cachoeissapense a entrar na Universidade Federal, saindo do interior e estudando somente em escola pública sem nunca ter feito cursinho.

No mesmo ano passa no concurso para agente de saúde da Prefeitura Municipal de Riachuelo. Também começa a fazer o curso de História na Universidade potiguar UNP.

Em 2006 torna-se palestrante do projeto conheça a UFRN através do residente, motivando os alunos do interior do estado através de sua história de vida.

Também leva para o interior a idéia de que é possível chegar a universidade, e começa a dar aulas solidariamente para alunos tanto do interior como de outros.

No ano de 2007 se torna conselheiro da residência universitária CAMPUS II, durante um ano. Nesse mesmo ano escreve a fabula Inês.

Em 2008 apresenta na câmara municipal proposta de um projeto de lei que para cada criança nascida no município, um livro seja comprado, dedicado à criança e inserido na biblioteca pública do município.

Suas poesias são trabalhadas a nível acadêmico e além de despontar o patriotismo da terra que nasceu, apresenta as situações econômica das famílias humildes do interior do estado.

Atualmente Andrelino ou Lino Sapo, nome que ganhou por ser dessa terra e ter herdado do sapo a característica de ser persistente.

Bacharel em biblioteconomia, licenciado em Historia pela UNP, aluno de letras da UFRN, e mestrando de Ciências Sociais pela UFRN. Tem como ícone de suas poesias coisa do sertão de antes, e o conto Conhecendo os Nomes das cidades do Rio Grande do Norte (publicado neste blog), além de livros e outras tantas poesias.

Fonte:
http://linosapovidaeobra.blogspot.com/2010/06/biografia.html

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.89)


Uma Trova Nacional

O galo, olhando a pombinha,
pecou por mau pensamento:
– “Que pena que essa baixinha
comeu tão pouco fermento!...”
(OSVALDO REIS/PR)

Uma Trova Potiguar

Pra velhice não tem rogo,
parece até uma praga;
aos sessenta baixa o fogo
e aos oitenta o fogo apaga.
(HILTON DA C. GOUVEIA/RN)

Uma Trova Premiada

2009 > Bandeirantes/PR
Tema > ARRUAÇA > Vencedor

Baita arruaça, bravatas,
um tremendo sururu...
Frangas, marrecas e patas
brigando por um peru!
(A. A. DE ASSIS/PR)

Uma Trova de Ademar

Fiz a “pergunta" ao espelho,
que para não me ofender,
disfarçou, ficou vermelho
e não quis me responder!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

A solteirona infeliz
viu sua casa assaltada,
ladrão levou o que quis:
menos a pobre coitada.
(GRAZIELA MONTEIRO/MG)

Estrofe do Dia

Um falso intelectual,
travestido de leitor,
chega ao distribuidor,
um livreiro, sem igual.
Vê o catálogo geral,
pede, demonstrando anseio:
Destes, bote um metro e meio,
e grita todo arrogante,
eu quero encher minha estante,
mas, lê mesmo, eu nunca leio.
(FRANCISCO MACEDO/RN)

Soneto do Dia

– Glauco Mattoso/SP –
PECHINCHADO.
(a Luís Fernando Novoa Garzon)

Comércio entre nações não tem acordo
que seja de interesse a cada parte.
Quem pode mais garante o que lhe farte
e para o menos forte exibe o lordo.

O lado americano quer que o gordo
bocado lhe pertença, e só reparte
com outros seu refugo e seu descarte,
mas isca desse tipo eu cá não mordo.

Agora nos impingem a tal ALCA,
balela disfarçada de franquia
que menos favorece que desfalca.

Não basta o que depena e o que tosquia
da gente quem nos pisa a cara e calca
a sola, e inda esse gringo quer que eu ria?

Fonte:
Ademar Macedo

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Nilto Maciel (Poesias Avulsas)


CONHECIMENTO

Poucos conseguem
entender o verbo,
por mais comum que seja.

Muito menos,
o silêncio.

ARCO ÍRIS

As árvores tocavam alaúde,
requebravam-se bailarinamente
ao escapar dos ventos e das nuvens.

As torres das igrejas e seus pássaros
- geometrias ásperas, cadentes -
desenho branco no reverso azul.

Azafamado, o homem nem sequer
via o menino ver sua partida,
a porta aberta, a rua, seu chapéu.

Quando chovia e o sol brilhava ainda,
via o menino o espectro das cores
nos olhos da menina que sorria.

E longe deles, onde os anjos moram,
o arco-celeste a cauda aberta em leque,
em cores se curvava sobre o mundo.

Os alaúdes não se tocam mais;
há forcas pelos campos e cidades;
morcegos voam pelas sacras naves.

O homem sumiu com seu chapéu de feltro
na curva da avenida, e, mais sisudo,
nem disse ao filho expectante adeus.

Do paraíso os anjos foram expulsos.
Desvaneceu-se o arco-íris, pouco a pouco.
Menina foi, menino foi - partiram.

SONETO CREPUSCULAR

Para Francisco Carvalho

Nos campos de meu pai antigamente
as chuvas inundavam meus pensares
e do pomar do céu pingavam frutos.

Ventos ninavam aves repousadas
nas árvores vigias de seu sono,
sentinelas da luz crepuscular.

As ovelhas baliam suas crias,
os vaga-lumes alumbravam tudo
e a solidão das vacas nos currais.

Duendes se assustavam co’os trovões.
Na escuridão dos quartos o perfume
do amor gemente à sombra dos lençóis.

Invernos que de mim se evaporaram
nos campos de meu pai antigamente.

VISIONÁRIO

Da varanda do apartamento
olho para a cidade.
Torre de marfim,
torre de babel.
Árvores agitadas,
carros correndo na avenida,
pessoas andando à toa,
um cão vadio.
Cheiros diversos,
chiados, barulhos.
Onde estará o centro do mundo?
Onde estará acontecendo
a notícia de amanhã?
Dentro daquele ônibus
viajará a moça iludida
e que poderia estar comigo.
Viajará o rapaz triste,
embriagado e que poderia
me contar sua vida
- arcabouço de um conto.
O motorista irá atropelar
uma criança sem futuro.
No automóvel de luxo
vai a mulher
que brigou com o marido
e anda atrás de vingança.
Na parada de ônibus
talvez esteja o assassino
de logo mais.
Na tela do cinema
a musa de todos nós,
estrela que se apagará.
Numa cadeira
um homossexual olhará
para as pernas do rapaz
que come pipoca.
Noutra cadeira um senhor
alisará o próprio bigode
pensando no passado.
No banco da praça
o mendigo comerá pão
olhando para as nádegas
das mocinhas que passam.
No palácio o presidente
alinhará o decreto
que me dará dor de cabeça.
O deputado beberá uísque
no bar e falará de si mesmo.
Sentado num sofá o homem
lerá o romance da mulher
deitada eternamente
em berço esplêndido.
O poeta escreverá uns versos
que lerão daqui a dez anos,
versos sem rima ou sem ímã,
sem métrica e sem ritmo.
No meio do mato a onça
farejará o veado;
o macaco morderá o rabo
do tatu; a formiga
caminhará sem rumo;
e tudo estará escuro.
No rio o peixe, a água,
o frio, o pescador.
No mar o tubarão,
a baleia, o turbilhão.
No céu a estrela virando pó,
o foguete se espatifando,
o infinito e nada.

Aqui, sozinho, longe e perto
de todos, de tudo,
quero estar no centro do mundo,
na crista da onde,
quero ser testemunha do crime,
da crise, do apocalipse.
Quero ver de perto o amor, o ódio,
a solidão, a multidão.
Quero estar no palco, no show,
no centro da cidade,
do campo, do rio, do mar,
do céu, do universo.
Quero a onipresença,
a onisciência,
toda a ciência.

O JANGADEIRO

Para Edinardo, às vésperas do primeiro
ano de sua partida.

Arrodeio a superesfera
na minha jangada amiga,
rindo de quem me espera,
chorando à moda antiga.

De quantos paus ela é feita
só dizem os jangadeiros
velhos e companheiros,
fugidos da rota estreita.

Não rio por palhaçada
nem choro angustiado;
já me bastava a maçada
de ansiar o desejado.

Levo comigo a coroa
dos filhos da Eternidade,
relendo Fernando Pessoa
frente a toda realidade.

Passeio as nebulosas,
os astros, o espaço sem fim,
saudadoso das carinhosas
meninas do Otávio Bonfim.

De dois velhos meus criadores,
meu primeiro e doce abrigo,
de duas pequenas flores,
em quem pensando prossigo.

De uma soidade que amei
e que na Bahia deixei,
de sete meus germanos
deixados a fazer planos.

Dos pareceiros risonhos
do pobre Amadeu Furtado,
esses bebedores bisonhos
de fel, cachaça e melado.

Mergulho a atmosfera
montado em cavalo-de-pau,
zombando da besta-fera,
lembrando o primeiro mau.

Conduzo comigo um poema
jamais publicado em papel
para reler na suprema
corte do mais alto céu.

Vasculho os tempos perdidos
no carro dos deuses gregos,
tristonho de ver iludidos
os que ficaram aos pregos.

De recordar os pileques
que com meu mano bebi,
choroso de ver os moleques
famintos do que comi.

Cavalgo o cavalo das eras
na mais incrível carreira,
carregando uma flor de parreira
para o homem e para as feras.

Na minha ida desejei
deixar o que sempre sonhei:
projetos de muito amar
para a terra e para o mar.

O mundo que nos aguarda
não tem regulamentos nem leis,
é o país do povo sem guarda,
não tem um, nem dois, nem três,

tem milhões de seres iguais,
é a utopia dos pensadores,
o sonho dos ancestrais,
a terra só dos amores.

Comigo navegam poetas,
revolucionários e santos,
partimos no rumo das metas,
dos fins, começos e cantos

Fonte:
Visionário. Poemas inéditos.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.88)


Uma Trova Nacional

O nosso amor que o destino
vai pintando com ternura,
forma um quadro tão divino
que nem precisa moldura...
(IZO GOLDMAN/SP)

Uma Trova Potiguar

Com as rimas de rebolo
fiz um verso sem projeto
tijolo sobre tijolo,
um verso quase concreto.
(MARIVALDO ERNESTO/PB)

Uma Trova Premiada

2010 > Curitiba/PR
Tema > MADRUGADA > Menção Honrosa

Madrugada, por que insistes
- na solidão que apavora –
em arrastar horas tristes...
se eu anseio pela aurora?
(THEREZA COSTA VAL/MG)

Simplesmente Poesia

MOTE :
Nem tudo que tomba cai.

GLOSA :
Nem todo homem tem brio,
nem toda moça se casa,
nem todo fogão tem brasa
nem toda lã dá pavio.
Nem todo inverno faz frio,
nem todo filho tem pai,
nem tudo o que entra sai,
nem toda fera é valente;
nem todo lorde é decente,
nem tudo que tomba cai.
(MANOEL DE MACEDO/RN)

Uma Trova de Ademar

,

Toda menina é bonita,
toda morena é faceira,
toda cabra tem cabrita,
toda semana tem feira.
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

A saudade é como o espinho
que entra no peito da gente:
no início – dói um pouquinho,
depois... dói profundamente!
(EDMILSON F. MACEDO/MG)

Estrofe do Dia

(Em resposta a de Ontem, de J.Ouverney)

Para ser bom trovador,
inteligência não basta,
que a cabeça se desgasta
e o Q.I. perde o valor!
É preciso estar marcado
com aquele dom sagrado
que em seu coração virá!
Sim, o estudo e a inteligência,
dão-lhe conceitos, fluência,
mas alma à trova... quem dá?!
(CAROLINA RAMOS/SP)

Soneto do Dia

– Ialmar Pio Schneider/RS –
SONETO DO ABANDONADO.

Se teu amor chegasse de mansinho
e aos poucos me envolvesse corpo e alma;
se ele viesse me trazer carinho
quando me desespero e perco a calma...

Se fosses o fanal do meu caminho
e me surgisses numa noite calma,
como alguém que procura um quente ninho
para amar e aquecer o corpo e a alma...

Ambos unidos pelo mesmo afeto,
tanto sincero quanto predileto,
viveríamos horas mais amenas...

Mas enquanto não vens não tenho nada;
minha vida é uma casa abandonada
onde alguém chora a sós amargas penas.

Fonte:
Ademar Macedo

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Domício da Gama (Maria sem Tempo)


Era magra, pequena, escura. Tinha a extrema humildade dos que vivem longos anos sob o céu destruidor, sem pensar ao menos em resistir à sorte, com a passividade inerte da folha que o vento rola pelos caminhos. Era assim mirrada e seca e sombria, como se tivesse perdido a seiva ao ardor dos estios, como se guardasse das noites sem estrelas o negrume cada vez mais denso.

Era louca, porque só tinha uma idéia, e a criatura humana pode não ter idéias, mas não pode ter uma só. A sua era o angustioso desassossego das maternidades malogradas. Perdera um filho e o procurava. Andava pelos caminhos para buscá-lo e só levantava a voz para chamá-lo, ansiosamente, carinhosamente: "Luciano! Meu filho!..." E escutava longo tempo por trás nas cercas, no aceiro dos matos, à entrada dos terreiros das fazendas, nos desertos e nos povoados, onde quer que a levasse a sua dolorosa esperança. Aquela figura miserável, toda feita num gesto indagador, com a mão abrigando os olhos, à espreita, ou levantando o chale que lhe encobria a cabeça de cabelos hirtos, para ouvir melhor a resposta ideal, aquela encarnação de um desejo sempre iludido enturvava o esplendor do mais radioso meio-dia.

Gente compassiva, donas de casa a quem se apertava o coração ouvindo ecoar pelas estradas o seu reclamo desolador, quiseram rete-la, dar-lhe amparo e agasalho: "Aonde vai, Sinhá Maria? Fique com a gente, mulher! Por estes sóis que matam, assim ao desabrigo do tempo, o que faz uma criatura de Deus? Descanse uns dias e vá então..." Mas a louca se escusava resolutamente: "Não tenho tempo, minha senhora. Vou ao encontro do meu Luciano, que me disse que havia de voltar. Como não tenho mais casa, preciso de estar no caminho. Não vá ele passar enquanto aqui estou..." E se precipitava para fora exalando o seu grito: "Luciano! Meu filho Luciano!..."

E Maria sem Tempo não era uma lição, nem um castigo, nem um exemplo. Se alguma coisa ela provava, era que há sofrimentos que nada provam e que nada justifica, que são, pela razão obscura daquilo que tem de ser. A sua miséria nem mesmo era trágica, porque não exclamava, não lutava, não indagava. O céu rigoroso era-lhe como um senhor cruel, que a pobre escrava não entendia e sob cujos golpes se encolhia apenas. Vivera para ser mãe: sofria disso, como disso outras jubilam.

Quem a encontrava pelos desertos, longe de todo o amparo, às horas tristes do dia, pensava logo com piedade na solidão da sua alma. Mas se iam falar-lhe, ela se não mostrava agradecida à sociedade que lhe queriam dar: recaía logo no seu silêncio absorto, tão ocupado pelo seu sentimento.

O meu Luciano! dizer estas palavras era para ela o mesmo que sentir-se viva. Dizia-as alto, gritando, clamando, enchendo as grotas e os recantos das florestas com o seu alarido de araponga louca; dizia-as baixinho, suspirando, fundindo o coração num ajoelhamento de prece, na prostração suprema do supremo amor. E às vezes, caminhando horas ao longo da praia, com os cabelos sacudidos pelo vento do largo, vacilando sobre a areia branca e infirme que entontece, ela cantava ao mar em fúria a canção monotonamente sublime da sua pena sem fim.

Eles eram dois humildes e mansos e os soberbos e violentos lá de longe fizeram uma guerra para mal deles, uma guerra de tantos anos durando já que os cabelos da mulata tiveram tempo de embranquecer. E o seu Luciano sempre por lá, longe da sua velha, que só tinha a ele no mundo, e que não pudera opor-se a que partisse, porque com o poder de homens, que o vieram buscar naquela noite, tinha-se juntado todo o poder celeste, estrondando numa trovoada de arrasar o mundo. Quando chegaram os homens malditos, ela estava com o filho rezando o Magnificat, à claridade da vela benta em frente ao registro da advogada contra o raio. A voz dele tinha uma toada grave e cheia de fervor, que lhe quebrava a ela a friura do medo no coração. Ai! não era dos raios e coriscos do céu que a pobre mulata devia recear! Num silêncio entre dois refegões de vento, bateram de repente à porta. Luciano foi abrir e logo um homem entrando, antes de dizer uma palavra, lhe foi deitando a mão. O rapaz deu um pulo, esquivando-se, mas o outro gritou e a casa se encheu de gente armada, soldados, que subjugaram o seu filho e o amarraram. Ela conhecia um dos homens, o que tinha entrado primeiro: de joelhos, como tinha ficado diante da santa, arrastou-se aos pés dele. "Seu Capitão, não me tire o meu filho, que não cometeu crime. Tenha piedade de uma pobre mãe..." O Capitão, meio embaraçado, sem convicção, resmungou umas frases, falou em defesa da pátria, em honra nacional ofendida, dever de todo brasileiro e não sei que mais. Mas a mulher não lhe deu ouvidos; viu que lhe tiravam o filho para a matança nos campos do Sul e desatinou de todo, a pedir, a suplicar, de rastos pelo chão, beijando os pés e abraçando pelos joelhos os seus carrascos, sem poder mais chegar ao filho das suas entranhas. O Capitão começou a se incomodar com a cena e deu ordem de partir, apesar da tempestade no seu auge. Então Maria se endireitou, arquejante sobre os joelhos, e viu, enquadrado pela porta aberta sobre a noite negra cortada de relâmpagos, o seu belo rapaz, que, sem chapéu, de roupas rotas mostrando o peito nu, levantava para ela as mãos algemadas, num gesto de adeus, e lhe dizia com voz trêmula e sentida: "Não se desconsole, Mãe, que ainda hei de voltar..." Nesse instante um fuzil cegou-a e o estampido imediato de um trovão derrubou-a por terra. Quando tornou a si estava sozinha no meio da noite escura. Parece que esta lhe entrou deveras pela mente, e lhe apagou as últimas claridades que lá luziam. Ela se desinteressou de tudo o que ocupa as vidas mais humildes, desprendeu-se por uma inatenção absoluta dos fatos que podem servir de marca aos dias, perdeu a noção do tempo, perdeu as suas afeições menores, enclausurou-se, absorveu-se no seu único sentimento transformado em culto, endoideceu.

Como sempre fora uma pobre inteligência, a sua loucura não se caracterizou senão por uma teimosia especial, passiva, mas inflexível, uma recusa absoluta a ceder aos argumentos dos que queriam convencê-la de que o filho não andava por aquelas bandas e que não era gritando pelos caminhos que ela havia de o recuperar. Ele lhe dissera que havia de voltar... Essa promessa lhe não deixava lugar no espírito nem para a idéia da morte. Quando lhe disseram que Luciano morrera num combate, que um voluntário, que voltava ferido, o tinha visto cair ao seu lado no campo e ao seu lado morrer no hospital de sangue, ela sacudiu a cabeça, incrédula. A força da idéia fixa venceu-lhe a timidez natural e lhe tirou todos os escrúpulos e receios que a pudessem deter no cumprimento do seu fadário. Na abstração poética é assim um caráter heróico.
Os sinais físicos de loucura estavam nos seus olhos perdidos como os de um cão de caça, desatentos ou muito atentos, mas sem simpatia, e nos cabelos hirtos, eriçados, como num perene arrepio de pavor. O resto, mãos e pés de nômade selvagem, miséria profunda do corpo desprezado, fizera-o o ascetismo inconsciente da sua existência errante. A voz cantante, plangente antes, arrastava-se apoiando demais em certas sílabas, como quem chama. E falando baixo tinha umas inflexões escuras, vindas mais de dentro, o tom reflexivo de quem pensa em voz alta.

Sonhava muito, quando dormia, e prolongava o seu sonho, sempre o mesmo, pela vigília. Era com o dia da volta dele que sonhava, com a hora em que, avistando-o, lhe dissesse: "Bendito seja Deus, meu filho, que te torno a ver!" Ele abaixaria os olhos diante do seu olhar carinhoso, com os seus modos tão bonitos de bom filho e depois lhe contaria o que tinha visto pelas terras longes, a história da sua ausência, as grandezas do mundo, as lindezas das outras gentes, tudo o que ela nem podia imaginar que fosse, tudo evocaria o som da sua voz, cuja lembrança bastava para lhe encher a ela os olhos de lágrimas. E voltariam a levantar a casa arruinada, o ninho velho donde a má sorte os enxotara, a refazer a vida antiga, humilde e pobre, que ela não trocaria pela de uma rainha, com Luciano...

Sonhava, e procurava o seu sonho, correndo as estradas. Mas não se afastava dos sítios familiares, algumas léguas de circuito, três municípios, a pátria. Mais longe já parece que a língua mudava ou pelo menos mudavam os costumes. Eram mais duros para a pobre mãe, como se ela pudesse fazer mal, ou não entendiam-na e desconfiavam. Um dia chegou ao pé de uma cidade muito bonita: as casas tinham vidros que faiscavam ao sol; nas ruas passava muita gente, toda calçada de botinas, os homens de gravata ao pescoço, as mulheres de chapéus com flores, todos muito soberbos; carros e cavaleiros passavam a toda a pressa, fazendo muito barulho nas pedras da calçada. Apareceram uns soldados e a pobre Maria fugiu espavorida. Era ali sem dúvida que moravam os que lhe tinham arrancado o seu Luciano. Disseram-lhe mais tarde que ela quase tinha estado na Praia Grande, que era para onde iam os designados para o recrutamento militar, mas que não era ali que eles batalhavam.

O invencível terror do desconhecido a impediu de ir procurar o filho aos campos do Sul. O Sul sabia ela onde era. De lá vinham as piores borrascas. E os tiros de canhão, que diziam de gala na cidade, para ela eram batalhas mais perto, a guerra que se aproximava. Se com a guerra lhe aparecesse um dia de repente Luciano! Quando o ar estava pesado, o tempo de oraça, ela escutava estremecendo o troar surdo dos canhões que salvavam no Rio, avaliando a aproximação da guerra pela sonoridade mais clara dos tiros, que lufadas de aragem quente e a banzeira traziam.

Um dia de verão, depois do meio-dia, ela vinha subindo da restinga do mar para a terra firme. Não passava ninguém pelas estradas. O sol de fogo retorcia a folha das árvores e fazia ferver o miolo da doida vagabunda. No grande silêncio da calma acabrunhante só se ouvia o zumbido do enxame de mutucas importunas, que acompanham a gente pelos caminhos à beira dos charcos, e o canto de galos longe. O chão escaldava; a doida movia rápida os magros pés descalços e caminhava de braços levantados, sustentando o chale acima da cabeça. Mas de instante a instante parava, com um gesto de impaciência, e se abaixava para atirar uma pedrada ou um punhado de areia aos camaleões cinzentos, que vinham pôr-se à beira do caminho, debaixo dos gravatás de folhas de serra e flor vermelha, e lhe faziam sinaizinhos brejeiros com a cabeça, quando ela passava. Sobre a ponte do Paracatu parou para ver uma cobra verde, que se lavava no magro fio d’água que ainda corria. Depois entrou na sombra do caminho estreito, com árvores dos dois lados, um desfiladeiro entre a lagoa e a barranca de um morro a pique, e se deteve a colher os cachinhos de jatitás verdes para refrescar a boca sequiosa. Passou um cavaleiro pela estrada e no ouvido ficou-lhe a cadência do meio galope, acompanhamento da toada favorita de Luciano, quando falquejava no mato:

Os olhos de Joanita
São pretos como carvão...

Fora ela que lha ensinara, em pequenino. Vinha de tão longe a cantiga do Mineiro da serra! Vinha de antes das tristezas dela... Cerrou-se-lhe a garganta e retomou a estrada.

Já ia pondo a mão à cancela do campo do capitão Rosa, quando um tiro de canhão atroou os ares; depois outro e outro e em seguida um estrondo prolongado, como o de uma casa desabando.

Maria sem Tempo pensou na guerra. Chegara enfim! A artilharia destruía as grossas muralhas da casa da fazenda. Só lhe admirava aquele silêncio depois da catástrofe. Deu a volta para ir espreitar pela outra cancela, e não entendeu mais nada, quando viu a casa em pé, o gado no campo e na lombada do morro do Cantagalo e o eito de escravos no trabalho, manejado as enxadas, em que o sol faiscava. Ali estava tudo em paz; no céu nem uma nuvem quebrava a dureza do azul implacável: donde vinha então aquele troar de canhões?

A doida aproximou-se da fazenda, mas saíram-lhe cães bravos ao encontro e ela regressou do meio da ladeira. Deu então volta ao morro pelo lado do brejo, para entrar pelo engenho. Mas ao passar pelo campinho de dentro, onde se soltavam os animais de sela e as lavadeiras estendiam a roupa a corar, pareceu-lhe que ouvia deveras a cantiga do Mineiro da serra, a cantiga da saudade, que lhe entrava pelos ouvidos, em vez de ressoar-lhe apenas da memória esvaída. Transpôs a cerca de bambus em moitas sussurrantes e encontrou um cavouqueiro, dos que ali andavam a arrebentar pedra para construção, que descia da pedreira e vinha jantar. Maria perguntou-lhe ansiosamente: "O meu filho? é o meu Luciano quem está cantando?" O homem respondeu: "É o Luciano, sim; mas não vá para lá agora, que ele vai pegar fogo à mina." A doida não lhe deu mais atenção e embarafustou pelos cafezais acima. Chegando à entrada da pedreira, viu um rapaz meio pendurado de uma corda de nós, que acabava de arranjar os estopins e punha fogo à mina. Ela gritou: "Meu filho? És tu, meu Luciano?" O Chico Macaé, que já ia marinhando pela corda acima, voltou-se espavorido: "Meu Deus! que faz aí, Sinhá Maria? Fuja, que aí vai pedra! Corra, suma-se depressa, mulher!" E como ela estacasse atônita, ele lançou mão de uma pedra para afugentá-la. A mãe louca viu o gesto e, pondo as mãos na cabeça, despenhou-se pelo cafezal da grota. Alguns segundos mais e a mina rebentava e Maria sentia cair-lhe em torno uma chuva de pedras miúdas, enquanto ao longo da pedreira as grandes lascas desabavam fragorosamente.

Maria sem Tempo caiu extenuada sob uma grande mangueira no meio do campo. Na perturbação da emoção profunda todas as idéias se lhe confundiram e o desvario completo entrou-lhe na mente.

Era aquilo a guerra e era o seu filho que a fazia contra ela. O homem dissera que era ele e a cantiga a não enganara. Para se encontrarem daquele modo vivera ela tão longos anos, penando pelos caminhos! À idéia de que pudera ter morrido aos golpes do filho estremecido, um calafrio sacudiu-a toda convulsivamente e por fim as pernas se lhe inteiriçaram. Depois, a necessidade de abandonar toda a esperança quebrou-lhe as derradeiras forças. Uma toalha de gelo espremeu-lhe o coração num grito de agonia infinita e Maria sem Tempo morreu.

Algumas horas depois formava-se uma trovoada e um raio caía sobre a árvore que abrigava o cadáver. A tempestade passou e os escravos que, voltando da roça, foram ver o tronco lascado descobriram a morta. Os respingos da chuva lhe tinham coberto o rosto de terra e os olhos esgazeados já pareciam olhar do fundo da sepultura. Um dos escravos se abaixou para lhos fechar, dizendo: "Coitada de Sinhá Maria! Vá que ela agora descanse de procurar o filho!..." E outro, velho, resmungou, sem saber que tão bem dizia: "Esta morreu de ser mãe..."

(Histórias curtas, 1901.)

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

Domício da Gama (1862 – 1925)


Jornalista, diplomata, contista e cronista, nasceu em Maricá, RJ, em 23 de outubro de 1862 e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 8 de novembro de 1925.

É um dos dez acadêmicos eleitos na sessão de 28 de janeiro de 1897, para completar o quadro de fundadores da Academia Brasileira de Letras. Escolheu Raul Pompéia como patrono, ocupando a Cadeira n. 33.

Domício Afonso Forneiro nasceu em Ponta Negra, Maricá, aos 23 de outubro de 1863, sendo filho de Domingos Afonso Forneiro, pequeno comerciante, e de Mariana Rosa Loreto. De origem humilde, desde a infância mostrava uma inteligência viva e brilhante.

O sobrenome Gama, que sempre trouxe consigo, herdou-o de seu padrinho, o Pe. Sebastião de Azevedo Araújo e Gama, vigário de Maricá durante 41 anos, no período de 1851 a 1892.

Seus primeiros estudos se passaram no Colégio Henrique, no Rio de Janeiro. Matriculou-se posteriormente na Escola Politécnica, mais precisamente em 1878, mas desistiu logo a seguir, ao perceber que sua vocação não era lidar com ciências exatas. Dedicou-se com sucesso ao estudo de Literatura e Geografia, que realmente o apaixonavam.

Não contando com a ajuda de pessoas importantes, foi vencendo sozinho, em decorrência de seus esforços e de sua inteligência singular. Mesmo sem recursos, fez-se repórter da "Gazeta de Notícias", exercendo o cargo com eficiência, tornando-se amigo e auxiliar do famoso jornalista Ferreira de Araújo.

Em 1888 encontramo-lo na Europa, correspondente internacional da Gazeta de Notícias. Durante este tempo aprofundou mais os seus estudos de Literatura e Geografia. Membro integrante do Sindicato da Imprensa Estrangeira, atuou com brilho durante a célebre Exposição de Paris, ano 1889. Motivado pelo Barão do Rio Branco, de quem era amigo particular, trabalhou no Comissariado da Emigração da Europa.

Lidou na Política Exterior Brasileira, consagrando-se ao lado do Barão do Rio Branco. Diplomata arguto e competente, era sempre lembrado nos casos mais exigentes da Diplomacia Brasileira. É assim que o vemos auxiliando o Barão do Rio Branco nas questões do Amapá, Missões e Acre.

Pertencem-lhe, na história da Diplomacia do País, as boas relações com o Peru, em 1906, e com a Argentina, pouco depois. Com larga visão política e grande capacidade, houve-se bem ao substituir Joaquim Nabuco, em Washington.

Foi secretário de Legação na Santa Sé, em 1900 e ministro em Lima, em 1906, onde desenvolveu grande e notável a atividade, preparatória da política de Rio Branco, coroada pelo Tratado de Petrópolis.

Embaixador em missão especial, em 1910, representou o Brasil no centenário da independência da Argentina e nas festas centenárias do Chile.

Embaixador do Brasil em Washington, de 1911 a 1918, foi o digno sucessor de Joaquim Nabuco, por escolha do próprio barão do Rio Branco.

Ao celebrar-se a Paz européia de Versalhes, Domício, como ministro das Relações Exteriores, pretendeu representar o Brasil naquela conferência, propósito que suscitou divergências na imprensa brasileira. Convidado para a mesma embaixada, Rui Barbosa recusou, e o chefe da representação brasileira foi, afinal, Epitácio Pessoa, eleito pouco depois, em seguida à morte de Rodrigues Alves, presidente da República.

Domício foi substituído na Chancelaria por Azevedo Marques, seguindo como embaixador em Londres, em 1920-21. Foi posto em disponibilidade durante a Presidência Bernardes.

Sua atuação como Embaixador Brasileiro em Londres valeu­-lhe as seguintes observações, feitas por Pandiá Calógeras, em sua obra "Estudos Históricos e Políticos": "só quem conhece os meios oficiais londrinos pode apreciar o prestígio que cercava esse diplomata calmo, sisudo, inimigo da ostentação e atento a quanto interessasse ao Brasil". E disse ainda mais: "a sua perda é um empobrecimento mental e moral para o País".

Em 1919 foi Presidente da Academia Brasileira de Letras, em substituição a Rui Barbosa.

Domício da Gama era colaborador da Gazeta de Notícias ao tempo de Ferreira de Araújo.

Escreveu "Contos a Meia Tinta" (1891 ) e "Histórias Curtas" ( 1901 ). Foi ainda Diretor de Publicação do Atlas de Geografia Física e Política e do Atlas de História Antiga e Moderna.

O seu estilo é primoroso, leve e sutil, prenhe de originalidade, e revela o espírito profundamente observador do literato.

Como tantos outros vultos ilustres, faleceu esquecido depois de tão numerosos serviços, aos 8 de novembro de 1925, na cidade do Rio de Janeiro

Fontes:
Academia Brasileira de Letras
Texto do livro "Maricá meu Amor", de Paulo Batista Machado, disponível em http://www.marica.com.br/2003b/2910domicio.htm

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.87)


Fazendo uma Miscelânea de Todas as Idéias...
Saiu mais ou menos assim:

Uma Trova do Nacional

Luto por meus ideais,
com audácia entre os abalos,
que não abalam jamais
a esperança de alcançá-los!
(WANDA DE PAULA MOURTHÉ/MG)

Uma Trova Potiguar

No Brasil fez-se imponente
uma saudável mistura,
desse povo tão valente
formou-se a nossa cultura.
(HÉLIO ALEXANDRE/RN)

Uma Trova Premiada

2008 > Ribeirão Preto/SP
Tema > SANTOS REIS > 4º Lugar

Em janeiro, dia seis,
Gaspar, Melquior, Baltazar
representam Santos Reis
no festejo popular!
(MARIA DA C. FAGUNDES/PR)

Simplesmente Poesia

– Walter de Oliveira/PB –
VERBO ENCARNADO.

O Verbo mais conjugado
Não é verbo nem sujeito:
Falo do Verbo Encarnado
No tempo mais que perfeito.

Assim foi no seu passado,
Verbo puro sem defeito,
O mais nobre predicado,
No mais sagrado conceito.

E o Verbo se fez homem.
Espero que todos tomem
Sua vida como exemplo

E habitou entre nós
Eu e Ele, tu e vós
E todos nós como templo.

Uma Trova de Ademar

Emigrante e peregrino,
eis como me vejo agora,
sem lar, sem paz, sem destino,
sofrendo de mundo afora!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram:

Felicidade... Quem sabe
dizer tudo que ela seja?
É tão grande e, às vezes, cabe
num “sim” que a gente deseja.
(CARLOS GUIMARÃES/RJ)

Estrofe do Dia

Perdoe-me pelo excesso de poemas e músicas,
Mas te amar me enche de inspiração...
O seu amor me dá uma poesia por segundo,
Uma música por minuto,
Um livro por hora,
Uma coletânea de amor por dia.
Perdoe-me por lhe dar uma rosa por dia,
Um buquê de flores por semana,
Uma floricultura por mês.
Perdoe-me pelos pleonasmos,
Mas te amar é tão gostoso,
Que repito as palavras e as ações.
Basta eu fechar os meus olhos,
Que vejo a sua face à minha frente,
Você não sai da minha mente.
Mais uma vez estou aqui,
Falando de você e de mim,
Como é bom falar de nós dois.
Amar-te é tão esplêndido
Que registro estas estrofes de amor
Por toda a minha vida,
Minha namorada querida.
ALEXANDRE MOREIRA/SP

Soneto do Dia

– Francisco Macedo/RN –
LAMBENDO O CHÃO.

O homem sobre a calçada, chão imundo,
se não de sangue, mas, é meu irmão,
não sei qual o motivo, qual razão,
dele ser, hoje, um pária deste mundo.

Eu paro, olho, reflito num segundo:
- Eu poderia estar “lambendo o chão”!,
{ter igual ou pior situação...}
- Por ele o meu respeito mais profundo!

O que outros pensam dele, pouco importa,
o que ele faz, ou como se comporta,
seus problemas, talvez, que fossem meus.

Se nada faço para socorrê-lo,
pelo menos eu posso compreendê-lo:
Somos todos iguais perante Deus.

Fonte:
Ademar Macedo

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Trova 188 - Roberto Pinheiro Acruche (São Francisco de Itabapoana/RJ)

Fonte:

Nilto Maciel (A Poética de Linhares Filho)


Sou contemporâneo de Linhares Filho. Quase da idade dele. Um pouco mais novo. Em poesia, estreou em 1968, com Sumos do tempo. Ano de terríveis confrontos sociais no Brasil e no mundo, ano em que me vi no meio do turbilhão político. Por isso, talvez, não pude acompanhar o nascimento literário do poeta de Lavras da Mangabeira. Passada a cólera, a ira, o tumulto, a agitação nas ruas (seguiu-se a fase do silêncio ao ar livre e do gemido nos cárceres), passados os devaneios juvenis, salvo das garras das aves de rapina dos anticomunistas, voltei-me para os livros. Linhares também deve ter se recolhido naquele período, pois em sua biografia há um hiato prolongado a separar o livro inicial do segundo e do terceiro: A metáfora do mar no Dom Casmurro (ensaio crítico) é de 1978, e Voz das coisas, (poemas), do ano seguinte. É a partir desses anos meu conhecimento dele. Ou de sua obra literária.

Ganhei dele, agora, final de 2010, mais três volumes: Com a palavra (palestras); 50 poemas escolhidos pelo autor (Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2008) e No limiar do inverno (Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010), de poemas. Poderia comentar toda a obra em verso de Linhares, se não me faltassem a dedicação de leitor ou o senso e a sabedoria de crítico. Direi, porém, duas ou três palavras apenas a respeito de sua poética, deixando para outrem o pesquisador da literatura, o analista minucioso e atento de Machado, Pessoa, Torga, Camões, Saramago, Drummond e outros.

A poesia de Linhares Filho tem roupagem tradicional, sobretudo pelo uso frequente do verso medido e rimado. Entretanto, vai além disso, com a manipulação de múltiplos recursos formais: do soneto ao verso livre e a poemas de variados feitios, em versos decassilábicos ou de cinco, seis, sete e oito sílabas. O apego à vestimenta da tradição o livrou da aventura pela chamada poesia de vanguarda, pelo antiverso, pelo poema visual e outras modalidades de efêmera duração. Isto é, consciente e conhecedor do fenômeno estético, tem pleno domínio da técnica do verso. Sem se apegar, com fanatismo, à métrica e à rima, faz uso também do verso branco, como em “Das coisas”. Quanto à rima, ele a pratica muito bem, em todas as suas modalidades ou tipos: consoante, aguda, esdrúxula, grave, etc.

Não bastasse isso, é conhecedor dos sortilégios da linguagem, da densa elaboração da linguagem, da melodia do verso, a exemplo dos bons cultores do verso. Encontramos em seus poemas o “encanto verbal” (Drummond) ou a “pureza vernácula” (Iranildo Sampaio), tão afastados de uma infinidade de escritores que estudam pouco, leem quase nada e se acham gênios. Em Linhares a tal pureza vernacular pode ser constatada com facilidade, como quando pomos em linha reta, ou de prosa, alguns versos: “Certo é que, sob o rescaldo da fogueira antropofágica do teu povo caeté, já se ateara teu desafio, e, da fornalha a vir, manarão as larvas de um vulcão, fluindo sempre, em rio” (“A Lêdo Ivo, ante Réquiem”).

A poesia de Linhares foi chamada por alguns críticos de intimista. Pois o poeta não se deslumbra com o circunstancial e o efêmero, embora não os deixe de lado. Em seus livros há poemas de puro descritivismo ou de saudação: “És, Cidade Maravilhosa, / luz do Sudeste, glamourosa / fidalga” (...). Ou “Cidade show, cidade shopping, / cidade grávida, / devolves à Nação inteira” (“Ode à Pauliceia”). Assim como há observações de fatos: O terremoto do Haiti.

Como percebeu Adriano Espínola, outro poeta admirável, Linhares Filho “encara com a maior seriedade os graves problemas do homem, em termos existenciais, sociais e metafísicos”. São muitos os seus poemas em que se vê além da matéria, como ser, como parte do Todo. E se explica: “Por isso também canto salmos e hinos”. Ou composições recheadas de religiosidade: “Ao Espírito Paráclito”, “Ato de Humildade” (“Sei que, apesar de tudo, / não sou maior em nada”), “Amor Perene” (“Entre nós Deus habita, e por seu nome / cumprimos nosso ideal de amor eterno”).

Como todo grande poeta, Linhares é bom filho e sabe amar seus pais espirituais, os poetas que nos antecederam aqui e alhures. Sua obra é plena de “ressonâncias intertextuais”, de que fala José Augusto Cardoso Bernardes. Não apenas nas muitas homenagens a poetas cearenses e de outros Estados (Anderson Braga Horta, Cassiano Ricardo, Dias da Silva, Drummond, Dimas Macedo, Filgueiras Lima, Lêdo Ivo, Machado de Assis, Manuel Bandeira), mas aos estrangeiros de sua predileção, como Camões (“E cada vez que nos sentimos tristes, / ou do amor com enganos, desenganos, / mais, ao lermos teus poemas, te sublimas!”), Borges, Heidegger, Pessoa, Torga, presentes também em epígrafes.

Como observou Sânzio de Azevedo, outro poeta e crítico de reconhecido talento, o autor de Tempo de colheita “é um desses artistas verdadeiros, um poeta no sentido mais nobre do termo”. Isto é de fácil comprovação, como no último verso do belíssimo poema “A Machado de Assis, morto vivo”: “A Dor dos que ainda ficam te saúda!

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/2011/01/poetica-de-linhares-filho-nilto-maciel.html

Linhares Filho (Poesias Avulsas)


A MINHA MÃE, HABITANTE DA MORTE

Tua branca rede já não se arma
para a sesta. Todavia guardo,
com o ranger longínquo dos armadores,
a placidez do teu sono
a entreter o meu sonho
No teu aposento, mansa e invisível, dorme uma ave.
À mesa posta, entre o apetite e a lembrança,
há uma cadeira sem dono.
Falta ao alimento o tempero
que de tuas mãos ninguém pôde aprender.
Mas junto a mim está um cântaro
que se encheu de lágrimas que libertam.
As dálias do jardim continuam a florescer,
cada ano, tão brancas, tão viçosas!
Contudo
parecem reclamar a sutileza
de um carinho que o meu sono não esquece...
Teus pincéis dormem
com a resignação de pincéis,
Minha alma imperfeita,
a despeito de teres sido
artista perfeita, pede, todo dia,
os últimos retoques.
Santa e elmo,
no navio em que eu encontrar borrasca,
os teus olhos serão santelmo...
No silêncio noturno não se ouvem mais
os passos cautelosos com que fechavas
a janela que dá para a rua,
no entanto percebo,
na lã escura da noite,
o abrigo do teu xale.

A MACHADO DE ASSIS, MORTO VIVO

De que maneira a fundo iremos conhecer-te,
se muita vez estás noutro lugar,
mil cabriolas a dar
com a manipulação freqüente de um falar
e dois entenderes?
O que propões, porém, vamos tateando,
e o teu pungente riso saboreando.
Algo fica, afinal, de tuas reticências –
mesmo sem se atingir total a tua essência
e não obstante a previsão de Cubas –,
também nas duas tais colunas da opinião,
não só numa terceira, a dos agudos,
e assim o teu discurso não é vão.
De além dos vermes que roeram
as tuas frias carnes
sem deixar boca para rir
nem olhos para chorar,
escuta-me com a alma que restou
do teu grande naufrágio
(longe do feroz ágio e do pedágio).
Aqui estou para dizer-te o quanto
ainda te ouvimos, lemos e te amamos.
Ensinaste-nos que há sempre
uma gota da baba de Caim,
tanto a vontade como a ação umedecendo
de indivíduos, de classes ou de tribos.
Que por batatas uns aos outros se consomem.
(Quantos, qual tu sem Deus, acham que a morte é o fim!)
Joaquim Maria, as tuas esquivanças,
silêncios e trejeitos e artimanhas
deram-nos luz para a experiência do homem.
E, quanto a nado, mar, navegação,
embora cada um de nós manobre
bem a seu modo o timão,
para o leitor abriste uma Escola de Sagres,
onde muito se pode observar,
dos olhos de ressaca em tua Capitu
até os confins da Europa no seu corpo,
que por Bentinho, enfim, é rejeitado.
Fizeste de Escobar o próprio Rio Cobar,
para em Ezequiel, homônimo do bíblico,
denunciar-se por fumos todo um fogo,
a culpa intencional da sedução de um mar...
E fizeste surgir a dúvida no ar.
Ora com humour, ora com ironia,
contra Leibniz puseste Schopenhauer.
Em Maistre e Sterne filtraste
a sátira menipéia.
E o vulnerável, mestre, apanhas com mão fria.
Sobressai-te um vigor: a sensual latência,
quase sempre consciente e deletéria,
qual sangue a latejar por dentro de uma artéria.
Evidenciando aqui, ali insinuando,
soubeste registrar o desconforto,
o descontentamento e a frustração
da nossa humana condição
desde o emplasto de Brás Cubas
à solda da opinião.
E aqui ficamos tristes e inquietos
com as mil formas de ser da humana Dor.
Muito amor ainda falta e pão. Faltam mais tetos,
a paz pública falta e a paz interior.
Sentimo-nos pequenos e incompletos.
Da glória arrebatou-se-nos a palma.
Hoje, além de buraco haver na alma,
que no teu tempo e já bem antes se feria,
há buracos no asfalto e em nossa economia,
várias lesões em corpos pelo césio,
e há buracos até na camada de ozônio
que protege do Sol a pobre Terra,
a que a nossa ambição tanto se aferra.
E a interjeição de dor em muitos deste agora
sem tílburis, lampiões a gás na rua, alcaides
– ai, ai! – enfatizou-se tanto, tanto,
que eles a sua dor gritam em AIDS.
Mas resta uma esperança, a de que um dia,
segundo está em Dante e em Bento Santiago,
nós nos encontraremos renovados
tal como as plantas novas,
além da lágrima e do riso,
além de qualquer jogo ou quaisquer provas.
Se o mundo mostras sempre negativo,
passas de vivo morto a morto vivo.
És trágico, mas és eterno na arte.
Por isso, estou aqui para saudar-te.
Das nuvens não cairás nem de um terceiro andar.
Sei que Oblivion jamais te pode apear.
O olvido esquecerá quem o lembrou tão bem...
E de Saturno não te atingirá o desdém.
Habitas aureolado o símbolo, meu bruxo.
Por tudo o que tu foste e és, te amamos!
De louro te ofertamos novos ramos
pela meia palavra, a sugestão,
a agudeza do olhar, as linhas do debuxo,
a tradução da alma e o bom uso do não.
Até o dia, afinal, da grande muda!
A Dor dos que ainda ficam te saúda!

DAS COISAS

Meus cabelos captam a voz das coisas
do espaço e do inespaço.
As coisas: fungíveis e infungíveis,
móveis, imóveis e semoventes,
operam o fenômeno ou são o númeno.
Queiramos ou não,
as coisas nos cercam, nos integram,
ou são presença na nossa memória.
E nos espreitam com o enigma
de seu olho plurimático.
Aonde ninguém vai,
aí penetra o olhar de alguma coisas.
Testemunhas de virtudes e munditudes,
de todas as nossas contradições,
do sem-saber-para-onde-ir.
Levam a marca dos nossos
usos e abusos.
Sofrem conosco? Riem conosco? ou de nós?
Confidentes na solidão,
inconfidentes para a perícia.
As coisas nos encantam e desencantam.
Umas coisas, talvez,
nos libertem algum dia,
e outras decerto dependurada
trazem a morte consigo.
As coisas nos mandam e desmandam,
formam, deformam,
informam, transformam.
As coisas nos assaltam e improvisam.
Com o xadrez de situações elaboram
mais a surpresa do que a expectativa.
As coisas nos precederam e nos sucederão.
(É preciso reagir contra certas coisas.)
Sentimo-nos sós no meio das coisas.

ODE A FERNANDO PESSOA

1.
Morreste, afinal, ó poeta geral,
ou prossegues, lívido, a cantar
à paz de teu silêncio
e ao verde-azul
do mar?
Se ponho — sim, estás vivendo em mim.
Se digo — não, contemplo-te em canção,
qual fantasma, insone, a vagar
em nossa solidão.
Se morreste, também morreu Ricardo
e Álvaro se foi, partiu Alberto.
Ou todos esses e quantos mais tu foste
— como as máscaras gregas da tragédia —
só viveram no poema, no teu verso,
pendurados na dor dos vilancetes?, no teu verso,
pendurados na dor dos vilancetes?
Pode um poeta perder o seu futuro
ou a morte não passa de interlúdio
no resfolgar fatal de seus ginetes?
E o fingimento? E todo o sal do mar
nascido das guitarras marinheiras
na hora de cantar?
Ai, cantar e chorar
são sempre a mesma cousa!
Ambos rimam conosco e inscrevem-se na lousa
que vai cobrir o que de essência somos.
E tu, irmão do Tejo, do Lima e do Montego,
por que tão perto estás e és cacto com medo
a perecer no meio de um deserto?
Oh, o teu verso tão certo a brilhar
sobre os homens e o mar
português!
Teu verso que se fez
de sono, mito, encantação e olhar.
Mesmo não crendo, creste. E assim criavas
novas formas de fé que alimentavam
a lenta sombra rubra da existência.
E foste na tarde a sobretarde
e no real/irreal a consciência
em fome de verdade.
E cantaste da vida a brevidade
entre o sempre e o jamais, a mágoa
e a História.
E nossa foi
tua vasta visão premonitória.

2.
É certo: em brumas sobrevéns
de Alcácer-Quibir.
Foi-te dado com isso pressentir
o mistério do tempo e da memória,
o lá-dentro das cousas e o lá-fora,
a estrada de Delfos e de Ofir.
Então, se tal se deu, nunca morreste.
Estás nos tombadilhos, a boreste,
com capa e pince-nez, a viajar.
E aqui ficamos a te reinventar
como as nuvens inventam sua sombra
de naves fantásticas no mar.
O mar de Camões. O reino das canções.
A concha dos mistérios e navegações.
E aqui te esperamos.
Virás — quem sabe — de qualquer ilhota
(ao lado de Almada e Sá-Carneiro)
no solitário voar das gaivotas.
Ou te erguerás, triunfal, a qualquer hora,
de algum poema teu, à luz de auroras.
Ou talvez desardomeças num soneto
inglês. E todos de uma vez
gritaremos teu nome que não some
e é camerata, e luz, e dor, e ritmo,
ou sagrado logaritmo
nas álgebras
do poema.

3.
No tempo te saúdo. Não te enxergo
na morte silenciosa. E só estás mudo.
A tua voz se oculta entre as ramagens
da árvore da vida. A tua voz
ferida. A tua voz
tão perto e tão distante.
Voz, como os perfumes, caminhante,
na curva e contracurva de algum fado.
E aqui estou, igual a ti, parado,
a louvar tua face essencial.
Teu sonho delirante e teu naval
olhar.
Ou o teu guitarreio e suspirar.
Ou o maldizer. Ou o teu saber.
Ou o teu grito crescendo em solidão
no reino de Netuno ou de Plutão.
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