terça-feira, 16 de julho de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Rufina

Encontrei no bonde um homem parecido com o Coronel Ferrão, o ex-protetor de Rufina-Augusta. Esta surgiu imediatamente ao seu lado, acomodando os vestidos, sorrindo e lançando sobre mim aquele seu olhar magnético através daqueles cílios de treva, com uma ................................................. dolcezza che intender non la può chi non la prova.

Claro que era uma aparição imaginária. Mas não me impedia que ficasse olhando para o lugar onde colocara a moça e lhe dirigisse a esta um longo e confuso improviso.

"Quem és tu? De onde vens? Que fazes? Como vives?... - Na verdade, nada disso me interessa muito. Afinal de contas, nada tenho contigo."

"O que me interessou desde logo em ti foi apenas a tua figura. Apareceu-me de repente, no meio da vulgaridade fosca das coisas, como uma obra-de-arte perdida num subterrâneo na qual batesse de repente o jorro de uma lanterna furta-fogo."

"Era-me tão indiferente saber quem fosse a pessoa que havia dentro dessa figura, ou mesmo se havia uma pessoa, como seria indiferente, diante da graça de uma vela branca no mar azul, saber de onde vinha, para onde ia, se levava a bordo uma princesa errante ou um ogre sinistro.

Contudo, não me esqueci mais de ti.

Tu me entraste na alma como um farrapo que a ventania atira por uma porta descuidosamente aberta.

A porta de minha alma profunda estava aberta naquela hora. E eu fiz como a mulher pobre que, tendo achado em sua casa um farrapo de escumilha brilhante, trazido pelo vento, não tivesse ânimo de o varrer com o cisco, o levantasse e o prendesse à parede, entre um caco de espelho e um cromo descorado.

És talvez um episódio horoscópico da minha vida, posto de reserva pelo Destino para ser lançado, certo dia na desfilada heteróclita dos casos da minha biografiazinha. privada.

Como que havia em mim um lugar vago à tua espera. Vieste, caíste no lugar justo, e aí estás, fixa e luminosa como uma pedra fina que, por maravilha do acaso, saltando, perdida, viesse cair justamente no engaste vazio de um velho anel.

Devias fatalmente aparecer-me em determinada hora, como aparece a forma exata e exteriorizada de um pensamento flutuante, longamente entrevisto, longamente resolvido no espírito.

Eras um motivo que faltava ao magro concerto da minha vida consciente e que aí havia de surgir, deliciosa serpe melódica a ondular e faiscar num relvado de ritmos obtusos.

A música interior tem hoje uma dolência menos remota, um gemido menos vago, uma ânsia interrogativa mais profunda, uma angústia menos aérea e mais humana.

Por que me apareceste? Por que me agradaste? Por que não te pude falar? Por que me foges sem o querer, e por que te evito, procurando-te?

E por que vim a conhecer da tua vida, ó coisa graciosa e fugente, apenas o aspecto sombrio e grosseiro? Por que não me reapareces, para me confiar a tua história risonha e dolorosa, a celeste e bestial realidade do teu destino, a lama e a chama da tua alma, ó gentil, ó brilhante, ó miserável borboleta do brejo?

Mas a tua vida não me interessa, na verdade. Que é que eu tenho contigo, que é que tens tu comigo?

Vimo-nos duas vezes. Será uma razão para que te deva agora ver sempre? Tanta coisa bela e passageira como tu, bela passageira de bonde, tem encantado os meus olhos por uma vez necessariamente única -uma nuvem, um pássaro, uma hora de sol, um certo sorriso da felicidade que se perdeu por ser achado!"

Tudo isto era dito com os meus botões. Mas, de repente, o homem que se parecia com o coronel me encarou formalizado:

-"O senhor está estranhando alguma coisa na minha pessoa?" Olhei para o homem que se parecia com o coronel e respondi, sem saber ao certo o que dizia:

-"Desculpe-me, senhor, tenha a bondade de me desculpar. Eu não o conheço, nem conheço ninguém que se lhe assemelhe, mas estava vendo se o senhor não seria uma outra pessoa."

O homem deu-se por satisfeito com a explicação.

Fonte:
Domínio Público

Raquel Ordones (Saudade é o que fica)


Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 9

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I


Dois anos depois do casamento de D. Geminiana, Teobaldo e André chegaram ao Porto da Estrela acompanha' dos por três pajens e mais por um moleque, o Sabino, que vinha para ficar ao serviço daquele durante o tempo dos estudos. Desmontaram cobertos de pó e derreados por vinte dias de viagem a cavalo. Foi recebe-los à boca do caminho o Sampaio, um negociante de meia idade, a quem Emílio recomendara os rapazes.

— Então o barão não quis dar um pulo até a corte? perguntou a Teobaldo o negociante, depois de fazer descarregar o bagageiro e providenciar para que o moleque se não extraviasse.

— Não lhe foi possível, respondeu o interrogado. Não nos pode acompanhar, a despeito do empenho que fazia nisso. Minha mãe está doente e ele não quis deixá-la sozinha.

— Sozinha, não; ficaria com a irmã.

— Já não mora conosco. Seguiu com o marido para Tijupá.

— E o que sente a senhora sua mãe é coisa de cuidado?

— Diz o velho que sim; um pouco de cuidado.

— Qual moléstia?

— Não sei. Uma complicação. Nervoso principalmente.

— Coitada! E já está assim há muito tempo?

— Há mais de ano. Foi isso que retardou a minha vinda para a corte.

— E este moço é o tal que seu pai também me recomenda?

— É, confirmou Teobaldo, apresentando o amigo. Bem! Disse o negociante

— Aí está a diligencia. Podemos ir. As bagagens já seguiram adiante.

Os três encarrapitaram-se no carro e tomaram a direção da cidade.

Teobaldo estalava de impaciência por cair nesse burburinho da corte, que de longe o atraía em silêncio, mas confessou-se prostrado pela viagem. Precisava desfazer-se de toda aquela roupa, meter-se num banho e estender--se ao comprido numa boa cama.

— Tenho pó até dentro dos miolos! Exclamou ele, a sacudir o seu poncho de brim enxovalhado. Hei de ver-me limpo e ainda me parecerá um sonho!

— E ter um bocado de paciência. Daqui a nada estaremos em casa.

— Onde mora?

— Na rua de S. Bento.

— É longe?

— Nem por isso. Este seu companheiro é que não gosta muito de falar... observou o Sampaio, querendo puxar o Coruja à conversa. — Também vem para os estudos?

— Não sei, balbuciou André secamente.

— Talvez se empregue, acrescentou Teobaldo.

— No comércio?

— Ou em outra qualquer coisa.

E Teobaldo, abrindo a boca em um bocejo:

— Não sei que mais tenho, se vontade de dormir, de comer ou tomar banho!

— Com poucas fará tudo isso. Estamos quase em casa; e descanse que nada lhe faltará. Há de ver!

Estas atenções do negociante pelo rapaz não eram puro espírito de hospitalidade e provinha sem dúvida dos interesses que o barão dava anualmente à casa comercial dele. Sampaio era o encarregado de lhe sortir a fazenda de tudo que precisava ir da corte, e nessas faturas o fornecedor de antemão pagava-se de todas aquelas galanterias.

Às nove horas da noite achavam-se os nossos rapazes, depois do indispensável banho, assentados em volta do seu hospedeiro e defronte de uma excelente ceia, que fumegava sobre a mesa.

Sampaio, enquanto eles comiam, procuravam instruí-los pelo melhor os costumes da vida fluminense, da qual se julgava grande conhecedor, sem nunca aliás ter arredado pé do burguês e acanhado círculo em que vivia.

— Isto aqui, rezava ele — É um demônio de uma terrinha, que tanto pode ser muito boa, como pode ser muito má. Depende tudo de cada um e de cada qual. Não há terra melhor e nem há terra pior! Para aqueles que desejam se fazer gente, trabalhar, dar-se ao respeito não há terra melhor; mas para os que só pensam na pândega e têm, como o senhor, ordem franca em uma casa comercia! Como esta, — não há terra mais perigosa! Estou certo, porém, de que o Sr. Teobaldo há de dar boa conta de si!

— Também eu, disse o filho do barão, recuperando o seu bom humor.

— Sim, continuou o negociante, mas com esses ares, com essa carinha de moço bonito, é preciso ter muito cuidado com as francesas!

— Com as francesas?

— Francesas é um modo de dizer. Refiro-me a todos esses diabos de que vai se enchendo o Rio de Janeiro e que não fazem outra coisa senão esvaziar as algibeiras dos tolos!

— Mas de que diabo fala o Sr. Sampaio?

— Ora essa! Das mulheres! Pois então o senhor não me compreende?

— Ah! Com que isto por aqui é fechar os olhos e...

— Um desaforo! Dantes ainda as coisas não iam tão ruins; mas ultimamente é uma desgraça! Todos os dias estão chegando mulheres de fora! Eu nem sei como o governo não toma uma medida séria a este respeito!

Teobaldo sorriu desdenhosamente, e o Sampaio acrescentou:

— Todo o cuidado é pouco para não cair nas garras de algum dos tais demônios! Encontrando o perigo — É fugir, fugir, para não chorar ao depois lágrimas de sangue! O senhor veio ao Rio foi para estudar, não é? Pois enterre a cara dentro dos livros e feche os olhos ao mais!

— Pode ficar tranqüilo, respondeu Teobaldo, levando Q seu copo à boca,

— Não digo que não se divirta... prosseguiu o Sampaio; consinto que vá ao teatro de vez em quando; se der com alguma família, pode freqüentá-la; mas tudo isso, já se vê, com muita prudência e com muito juízo. Evite as más companhias, fuja dos vadios e dos viciosos; não freqüente a rua do Ouvidor; não entre nos cafés!

E, abaixando a voz e chegando-se mais para o moço, disse, com o mistério de quem
faz uma revelação terrível: — E, principalmente, meu amigo, não se meta a escrevinhador.

Teobaldo ergueu a cabeça, surpreso:

— Como?

— Sim, confirmou o outro. — Não se meta a escrevinhador, que isso tem posto muita gente a perder! Poderia citar-lhe mais de cem nomes de estudantes, de quem fui correspondente, que perderam anos, que cortaram a carreira por causa da maldita patifaria das letras! Eu os vi, a todos, por aí, enchendo as ruas de pernas, mal alimentados, e mal vestidos, com a mesada suspensa pela família, a fazerem garbo das suas necessidades e às vezes até das suas bebedeiras!

Teobaldo ouvia agora o negociante com singular atenção.

— Fuja! Continuava aquele: fuja de semelhante porcaria! Se não quiser ver o seu nome todos os dias na boca do mundo!

— O nome?

— Sim, sim, o nome, que seu pai lhe pôs à pia do batismo! Se não quiser vê-lo de boca em boca não se meta a escrevinhador! E ainda se fosse apenas isso... Vá! É feio, mas enfim, sempre há homens sérios, cujo nome o público não ignora; o pior é que às vezes rebenta por aí cada descompostura, que é mesmo uma vergonha! Quem se deixa cair em tal desgraça não está livre das chufas da imprensa e dos comentários do mundo inteiro!

E o Sampaio, para melhor firmar os seus argumentos, principiou a citar nomes.

— Mas esses nomes — Acudiu Teobaldo recorrendo às leituras que fizera na província — Esses nomes são todos muito distintos. O senhor está citando os nossos poetas mais conhecidos!

— Ah! Ninguém nega que não sejam conhecidos, nem que não sejam poetas, mas posso afiançar-lhe que não são homens sérios.

— Homens sérios?... Que diabo entende o senhor por homem sério?

— Ora essa! Que entendo por homem sério? — É boa! Por homem sério entendo todo aquele que não dá escândalos, que não é tratante e que se ocupa em alguma coisa séria! Enfim, todo aquele que trabalha! — Então quem escreve não trabalha?

— Não digo isso, mas...

— Acabe.

— Mas não é um trabalho sério!

Teobaldo, em vez de prosseguir no diálogo, olhou para o Sampaio com um gesto que tanto podia ser de lástima como de repugnância, e, deixando escapar o seu predileto sorriso de ironia, ergueu-se, bateu-lhe levemente no ombro e disse:

— O senhor é um grande homem!... Mas eu preciso descansar. Boa noite!

Semanas depois, mudaram-se os dois rapazes para Mata-cavalos, levando em sua companhia o moleque.

Teobaldo, no meio da casa, envolvido em um robe-de-chambre de seda azul, um cigarro entre os dedos, dirigia a colocação dos móveis.

— Esse espelho ali, ó André! E a secretária deste outro lado. Assim! Agora, vejamos onde deve ficar o piano... Ah! Cá está o lugar dele, aqui, entre estas duas janelas. E anda com isso, ó Sabino! Que ao contrário não se acaba tão cedo a arrumação!

O Sampaio espantara-se quando ele lhe dera a lista dos móveis que precisava.

— Pois o senhor também quer cortinas? Exclamou arregalando os olhos.

— Quero tudo isto que aí está notado, respondeu o estudante; — o resto me encarrego de comprar pessoalmente.

— O resto? Há então ainda outras coisas além disto?...

— Sem dúvida. É preciso alegrar a casa com alguns objetos de arte,

Chegam-me quatro ou cinco estatuetas...

— Estatuetas?...

— ... Uma pêndula de bom gosto, dois jarros para flores e meia dúzia de quadros.

— Mas o senhor onde já viu casa de estudante com esse luxo?

— Não preciso ver para usar: se faço deste modo é porque assim o entendo. Compreende?

— Bem, bem! Isso é lá com o senhor... Tem ordem franca...

E jurou consigo que Teobaldo não havia de ir muito longe com aquelas tafularias.

A casa, depois de cada objeto no seu lugar, não parecia com efeito destinada à habitação de dois estudantes ainda tão novos; tal era a boa ordem o asseio, o gosto bem educado e familiar que a tudo presidia. Tanto assim que a proprietária e locadora do prédio, que a principio não se mostrara lá muito satisfeita com os novos hóspedes, rejubilava-se agora ao ponto de lhes propor que almoçassem e jantassem com ela, mediante uma estipulada mensalidade.

Instalado, cuidou Teobaldo de arranjar os necessários explicadores para os preparatórios que lhe faltavam e mais ao Coruja, e dispôs-se a estudar com afinco. Mas o seu espírito inconstante e vadio não se queria fixar sobre um ponto certo, e os dias passavam-se em repetidas polemicas a respeito da carreira que ele devia abraçar.

— Mas, afinal, é preciso que te decidas por alguma... Dizia-lhe o Coruja. — Se não saíres dessa hesitação, acabarás fatalmente por não estudares nada!

Teobaldo principiava sem dúvida a demorar muito a escolha de uma profissão. Ao sair da sua província vinha aparentemente resolvido a repetir na corte os preparatórios e seguir logo para a Academia de S. Paulo. O direito, porém, se lhe apresentava à trêfega fantasia com o insociável aspecto de um velho carregado de alfarrábios, tresandando a rapé, fanhoso, pedantesco, sem bigode e de óculos na testa.

— Abomino-o! Exclamou ele a discutir com o amigo. — Aquilo nem é ciência: e uma coisa toda convencional... Uma coisa arranjada segundo o capricho de quem a inventou! Nada possui de certo e determinado! No direito tudo admite sofismas; tudo se pode inverter; tudo está sujeito a mil e um alvarás e a duas mil e tantas reformas! Além disso, consta-me que ninguém pode se gabar de saber direito antes de lidar com ele pelo menos quarenta anos! Oh! Bela carreira! Bela carreira, que exige quase meio século de estudo para se ficar sabendo dalguma coisa dos seus mistérios!... E, demais, que diabo de vantagem oferece o tal direito?..... A magistratura? Deus me defenda! A advocacia? Mas eu detesto os advogados!

— Por quê? Atalhou o Coruja.

— Ora! Qual é o papel de um advogado, qual é a sua missão? Defender os réus; muito bem! Mas, das duas uma — Ou o réu não tem crime e nesse caso está defendido por si; ou o réu é um criminoso, e não menos será aquele que, por meio da eloqüência e da astúcia de seu talento, conseguir provar que ele é um inocente!

— Isso é asneira!

— Pois qual é a missão do advogado, senão empregar meios e modos para alterar a favor do seu constituinte o juízo feito pelos jurados? Qual é a missão do advogado, senão convencer a quem supõe um homem estar tão inocente como no dia em que vestiu o seu primeiro par de calças?...

— Enganas-te, acudiu o Coruja; o advogado serve para muitas outras coisas; serve para evitar que um inocente sofra a pena que não merece; serve para...

— Ora qual! Interrompeu Teobaldo. O advogado quase nunca se acha convencido da inocência do seu constituinte. Defende-o, porque a sua vida é defender os réus, e para isso lança mão de todos os recursos da oratória e serve-se de todos os laços e armadilhas da retórica!

— Mas...

— Ora! Se o advogado, empregando esses meios, consegue dos jurados a absolvição do réu, é um homem pernicioso, porque faz com que aqueles se pronunciem, não pelo seu juízo calmo e refletido, mas sim dominados pelos efeitos sedutores de um bom discurso; e, se o advogado não consegue vencer a opinião dos jurados, será nesse caso um fiador inútil, visto que não adianta absolutamente nada do que estava feito!

— Pois, se o direito te inspira tal repugnância, escolhe então a medicina...

— A medicina! Mas, onde iria eu buscar paciência e disposição para retalhar cadáveres e aprender os remédios que se aplicam no tratamento de tais e tais moléstias?... Acreditas lá que semelhante coisa possa ocupar a vida de um homem cheio de aspirações como eu?... Podes lá acreditar que eu chegasse a tomar interesse por um tumor ou por uma erisipela.....

— É o diabo!

— De todas as carreiras, metendo a engenharia de que não gosto, por embirrância às matemáticas, só a das armas não me desagrada totalmente.

— Pois aí tens, decide-te pelo Exército ou pela Marinha.

— Mas, valha-me Deus! O curso militar baseia-se todo nos malditos algarismos e eu nem para fazer uma conta de somar tenho jeito ...

— Então...

— Além de que eu jamais daria um bom soldado ou um bom marinheiro. Só a idéia de ficar eternamente submisso ao governo do meu país; só a idéia de que tinha de deixar de ser um homem, para ser um instrumento do militarismo, um defensor oficial da pátria, com obrigação de ser um bravo a tanto por mês e de ter uma honra telhada pelo padrão de um regulamento; só isso ou tudo isso, meu André, faz-me desanimar.

— Então não há remédio, decide-te pela engenharia...

— Impossível! Seria um engenheiro que havia de contar pelos dedos, quando precisasse somar três adições!

— Então, parte quanto entes para a Alemanha e vai estudar ciências naturais...

— Que de nada me serviriam aqui no Brasil e para as quais tenho tanta aversão quanta tenho às tais ciências exatas e moreis!

— Dedica-te à igreja...

— Se eu tivesse jeito, quem sabe?

— Ou então às belas-artes. Faz-te músico, pintor ou escultor.

— E o talento para isso, onde ir buscá-lo? Queres que eu peça ao velho que me remeta lá de Mines, todos os meses, um pouco de gênio?...

— Ora! Tu tens talento para tudo.

— O que eqüivale a não ter para coisa alguma. Entendo um pouco de desenho, um pouco de música, de canto, de poesia, de arquitetura, mas sinto-me tão incapaz de apaixonar-me por qualquer dessas artes, como por qualquer daquelas ciências. Tudo me atrai; nada, porém, me prende!

E, depois de um silêncio, durante o qual não encontrou o Coruja uma palavra para dar ao amigo:

— Queres saber qual era a carreira que eu de bom grado abraçaria, se não fossem as conveniências...

— Qual?

— O teatro! Fazia-me ator.

— Estais louco?

— Ah! Não! Ainda não estou, que, se o estivesse, já teria-me resolvido a entrar em cena.

— Havias de arrepender-te...

— Quem sabe lá?...
–––––-
continua…

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Passeio Dominical

Hoje, domingo, quando cheguei ao meu posto de espera, por volta de meio-dia, lá estava, em fila, uma família pobre.

Era visível que tinham destinado o dia para passeio e que esse passeio era para eles um acontecimento. Respiravam timidamente a frescura das impressões novas.

O chefe, homem de meia-idade, ia frouxamente embrulhado num terno de brim pardo reluzente do ferro de engomar e onde mal se dissimulava uma carta topográfica de remendos e serziduras. O chapéu mole, puído e bambo tinha sido cuidadosamente armado sobre os cabelos crescidos, repuxados a pente para trás das orelhas, onde formavam caracóis. A camisa era limpa, e um sorriso satisfeito, que se diria igualmente lavado com sabão de cinza, ao jorro da torneira sobre a tina, se lhe abria na cara tostada, como uma toalha a corar ao sol.

Pois filhos buliçosos, entre os seis e os dez anos, enfarpelados à marinheira, com grandes colarinhos deitados, por cuja abertura se estripavam altos laçarotes de fita escocesa. Tinham chapéus de palha amarela com cintas atuis, nos quais se liam nomes de navios de guerra: "Aquidabá", "Timbira", em letras douradas. Traziam bengalinhas, demasiado compridas e pareciam mais atrapalhar-se do que divertir-se com esse luxo desacostumado.

A mãe, maciça no seu largo vestido de lãzinha cor chocolate, os cabelos repartidos em duas asas negras e lisas, apanhados numa rodilha farta sobre a nuca morena. Estava alegre como os outros, mas de uma alegria meio assustada, -talvez acanhamento do vestido novo, dos sapatos novos, do penteado que lhe repuxava a pele da testa.

Quando o bonde chegou, os pequenos treparam desajeitadamente, agarrando-se ao carro com as mãos ambas e foram colocar-se nas extremidades fronteiras dos dois primeiros bancos, a garantir os postos de observação.

A mãe entrou com eles, arrastando um pela blusa, empurrando outro pelo traseiro e sentou-se ao pé dos dois, ralhando em voz baixa, como se estivessem num lugar de respeito.

O pai mais senhor de si, aboletou-se a pouca distância, inspecionando tudo com um semblante meio severo meio condescendente.

Depois, todos entraram a rir e palrar. Todos se viravam para um e outro lado, a olhar os prédios, as perspectivas das ruas, as massas retangulares dos edifícios alteados ao longe, os automóveis que passavam. Divertiu-os muito um caminhão cheio de futebolistas seminus e gritadores. Também acharam bastante graça num velho de barbas bíblicas, que trazia na mão uma espécie de árvore, de folhagem toda florida de papaventos vermelhos, amarelos e azuis. E os papaventos giravam e zumbiam como um enxame assanhado.

O estridor das rodas do bonde nas curvas mal engraxadas foi ponto de partida de uma rivalidade entre os dois pequenos, cada qual mais empenhado em imitá-lo com a boca. A mãe ria-se, tapando os dentes com a mão, relanceando os olhos desconfiados pela circunvizinhança.

Quando o condutor marcava as passagens, os peque-nos queriam saber como era aquilo, porque era, e o pai dava-lhes explicações fantasiosas que eram ocasião de teimas e risos.

Enfim, como aquela família se divertia!

Ao chegarmos à cidade, saltaram para ir ver as vitrinas e, de certo, para ir a algum botequim tomar café-com-leite e comer cavacas e pães-de-ló - um festim delicioso.

Respiravam tranqüilidade e alegria. A alma boiava-lhes numa descuidosa satisfação de filhos amados da felicidade e do candor.

Passear de bonde, andar pela cidade, ver a gente, ver as vitrinas, tomar café-com-leite num botequim grande, cheio de espelhos, em chávenas de louça brilhante, -que recreio, que consolo, que temeridade jovial e dissipadora!

Nunca tenho inveja a ninguém, e aos felizes da felicidade exterior, ainda menos que a ninguém. Mas diante dessa família, tive uma espécie de inveja.

Pobre alma escalavrada e enfastiada, para quem tudo quanto divertia aquela gente era vago e distante como tudo quanto é muito próximo e muito visto, senti em certo momento uma impressão angustiosa - a impressão que teria alguém, de repente, apalpando-se, de que metade si mesmo já era coisa morta.

Fonte:
Domínio Público

Olegário Mariano (Cristais Poéticos)

O ENAMORADO DAS ROSAS

Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,
Ouvindo a água da fonte que murmura,
Rego as minhas roseiras com ternura,
Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.

Cada um tem um suave movimento
Quando a chamar minha atenção procura
E mal desabrochada na espessura,
Manda-me um gesto de agradecimento.

Se cultivei amores às mancheias,
Culpa não cabe às minhas mãos piedosas
Que eles passassem para mãos alheias.

Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,
Alimento a ilusão de que essas rosas,
Ao menos essas rosas, sejam minhas.

      A VELHA MANGUEIRA

No pátio da senzala que a corrida
Do tempo mau de assombrações povoa,
Uma velha mangueira, comovida,
Deita no chão maldito a sombra boa.

Tinir de ferros, música dorida,
Vago maracatu no espaço ecoa...
Ela, presa às raízes, toda a vida,
Seu cativeiro, em flores, abençoa...

Rondam na noite espectros infelizes
Que lhe atiram, dos galhos às raízes,
Em blasfêmias de dor, golpes violentos.

E, quando os ventos rugem nos espaços,
Os seus galhos se torcem como braços
De escravos vergastados pelos ventos.

ARCO-ÍRIS

Choveu tanto esta tarde
Que as árvores estão pingando de contentes.
As crianças pobres, em grande alarde,
Molham os pés nas poças reluzentes.

A alegria da luz ainda não veio toda.
Mas há raios de sol brincando nos rosais.
As crianças cantam fazendo roda,
Fazendo roda como os tangarás:

"Chuva com sol!
Casa a raposa com o rouxinol."
De repente, no céu desfraldado em bandeira,

Quase ao alcance da nossa mão,
O Arco-da-Velha abre na tarde brasileira
A cauda em sete cores, de pavão.

CASTELOS NA AREIA

— Que iluminura é aquela, fugidia,
Que o poente à beira-mar beija e incendeia?
— É apenas a criação da fantasia: —
São castelos na areia.

Andam, tontas de sol, brincando as crianças
Como abelhas que voaram da colmeia.
Erguem torreões fictícios de esperanças...
São castelos na areia.

Ao canto de um jardim adormecido:
"Por que não crês no afeto que me enleia?
E as palavras que eu disse ao teu ouvido?"
— São castelos na areia.

E o tempo vai tecendo, da desgraça,
Na roca do destino, a eterna teia.
— "E os beijos que trocamos?" — Tudo passa,
São castelos na areia.

Coração! Por que bates com ansiedade?
Que dor é a grande dor que te golpeia?
Ouve as palavras da Fatalidade:
Ventura, Amor, Sonho, Felicidade,
São castelos na areia.

CIGARRA

Figurinha de outono!
Teu vulto é leve, é sensitivo,
Um misto de andorinha e bogari.
Num triste acento de abandono,
A tua voz lembra o motivo
De uma canção que um dia ouvi.

 Quando te expões ao sol, o sol te impele
Para o rumor, para o bulício e tu, sorrindo,
Vibras como uma corda de guitarra...
É que o sol, quando queima a tua pele,
Dá-te o grande desejo boêmio e lindo
De ser flor, de ser pássaro ou cigarra

Cigarra cor de mel. Extraordinária!
Cigarra! Quem me dera
Que eu fosse um velho cedro adusto e bronco,
E tu, nessa alegria tumultuária,
Viesses pousar sobre o meu tronco
Ainda tonta do sol da primavera.

 Terias glórias vegetais sendo vivente.
Mas um dia de lívidos palores,
Tu, cigarra, que vieste não sei donde,

Morrerias de fome lentamente
No teu leito de liquens e de flores
No aconchego sutil da minha fronde.

 E eu, na dor de perder-te, no abandono,
Sem ter roubado dessa mocidade,
Do teu corpo de flor um perfume sequer,
Morreria de tédio e de saudade...
Figurinha de Outono!
Cigarra que o destino fez mulher!

DE PAPO PRO Á

I

Não quero outra vida
Pescando no rio
De jereré
Tenho peixe bom...
Tem siri-patola
De dá com o pé

Quando no terreiro
Faz noite de luá
E vem a saudade
Me atormentá
Eu me vingo dela
Tocando viola
De papo pro á

II

Se compro na feira
Feijão rapadura
Pra que trabaiá
Eu gosto do rancho
O home não deve
Se amofiná
Estribilho

DO MEU TEMPO...

Quando eu era menino e tinha cheia
A alma de sonhos bons e, fugidio,
Como a abelha que voa da colmeia,
Andava a errar do canavial bravio;

Quando em noites de junho o luar macio
Punha um lençol de rendas sobre a areia,
Tiritava de medo ouvindo o pio
Da coruja mais lúgubre da aldeia.

Feliz! Bendita essa primeira idade!
Andava como quem anda sonhando
De olhos abertos, com a felicidade.

Dormia tarde e enquanto eu não dormia,
Mamãe rezava o padre-nosso e quando
Me mandava rezar, eu não sabia.

O MEU RETRATO

Sou magro, sou comprido, sou bizarro,
Tendo muito de orgulho e de altivez.
Trago a pender dos lábios um cigarro,
Misto de fumo turco e fumo inglês.

Tenho a cara raspada e cor de barro.
Sou talvez meio excêntrico, talvez.
De quando em quando da memória varro
A saudade de alguém que assim me fez.

Amo os cães, amo os pássaros e as flores.
Cultivo a tradição da minha raça
Golpeada de aventuras e de amores.

E assim vivo, desatinado e a esmo.
As poucas sensações da vida escassa
São sensações que nascem de mim mesmo.

 O FLIRT

Retirei um breve instante
Das minhas cogitações,
Para falar-vos do Flirt,
A epidemia elegante
Dos salões.

 Nasce de um sorriso mudo,
De um quase nada que, enfim
Vale tudo
Para elas e para mim.

 O Flirt. Haverá no mundo
Quem não sinta essa embriaguez
De um momento, de um segundo,
De quinze dias, de um mês?

Ele é efêmero e fortuito,
Vale pouco ou vale muito,
Conforme o Diabo o compôs.
É um simples curto-circuito
Entre dois.

Uma carícia inflamável
Doidinha por incendiar,
Um micróbio insuportável
Que vai de olhar para olhar.

 Ou antes: um precipício
Que a gente olha sem pavor.
O divino instante, o início
Do êxtase imenso do amor.

 Um galanteio, uma frase
Intencional
Que sendo frívola, é quase
Um madrigal.

 A mão que outra mão afaga,
O pé que pisa outro pé.
Carícia lânguida e vaga...
Só quem ama e quem divaga
Pode saber o que isto é.

 A orquestra soluça um tango:
Dois. Ela folle, ele fou.
Flor de Tango. — A flor de Tango,
Diz ele baixinho, és tu.

 E assim vai num tal crescendo,
Que ela se debate em vão.
Parece que está morrendo
Nos braços do cidadão.

 Quando passa o áureo momento,
Vem a tragédia em três atos.
Três atos
Com um epílogo. Depois,
Um noivado, um casamento,
Um bruto arrependimento
E ao fim divórcio entre os dois.

Fonte:
Jornal de Poesia
Academia Brasileira de Letras

Olegário Mariano (1889 – 1958)

Olegário Mariano Carneiro da Cunha nasceu na cidade de Recife, Pernambuco, a 24 de março de 1889. Faleceu no Rio de Janeiro a 28 de novembro de 1958.

Era filho de José Mariano Carneiro da Cunha, herói pernambucano da Abolição e da República, e de Olegária Carneiro da Cunha. Fez o primário e o secundário no Colégio Pestalozzi, na cidade natal, e cedo se transferiu para o Rio de Janeiro. Frequentou a roda literária de Olavo Bilac, Guimarães Passos, Emílio de Meneses, Coelho Neto, Martins Fontes e outros. Estreou na vida literária aos 22 anos com o volume Angelus, em 1911. Sua poesia falava de neblinas, de cismas e de sofrimentos, perfeitamente identificada com os preceitos do Simbolismo, já em declínio.

Foi inspetor do ensino secundário e censor de teatro. Representou o Brasil, em 1918, como secretário de embaixada à Bolívia, na Missão Melo Franco. Foi deputado à Assembléia Constituinte que elaborou a Carta de 1934. Em 1937, ocupou uma cadeira na Câmara dos Deputados. Foi ministro plenipotenciário nos Centenários de Portugal, em 1940; delegado da Academia Brasileira na Conferência Interacadêmica de Lisboa para o Acordo Ortográfico de 1945; embaixador do Brasil em Portugal em 1953-54. Exerceu o cargo de oficial do 4o Ofício de Registro de Imóveis, no Rio de Janeiro, tendo sido antes tabelião de Notas.

Em concurso promovido pela revista Fon-Fon, em 1938, Olegário Mariano foi eleito, pelos intelectuais de todo o Brasil, Príncipe dos Poetas Brasileiros, em substituição a Alberto de Oliveira, detentor do título depois da morte de Olavo Bilac o primeiro a obtê-lo.

Além da obra poética iniciada em livro em 1911, e enfeixada nos dois volumes de Toda uma vida de poesia (1957), publicados pela José Olympio, Olegário Mariano publicou durante anos, nas revistas Careta e Para Todos, sob o pseudônimo de João da Avenida, uma seção de crônicas mundanas em versos humorísticos, mais tarde reunidas em dois livros: Bataclan e Vida Caixa de brinquedos.

Sua poesia lírica é simples, correntia, de fundo romântico, pertinente à fase do sincretismo parnasiano-simbolista de transição para o Modernismo. Ficou conhecido como o “poeta das cigarras”, por causa de um de seus temas prediletos.

Obras:
Angelus (1911);
Sonetos (1921);
Evangelho da sombra e do silêncio (1913);
Água corrente, com uma carta prefácio de Olavo Bilac (1917);
Últimas cigarras (1920);
Castelos na areia (1922);
Cidade maravilhosa (1923);
Bataclan, crônicas em verso (1927);
Canto da minha terra (1931);
Destino (1931);
Poemas de amor e de saudade (1932);
Teatro (1932);
Antologia de tradutores (1932);
Poesias escolhidas (1932);
O amor na poesia brasileira (1933);
Vida Caixa de brinquedos, crônicas em verso (1933);
O enamorado da vida, com prefácio de Júlio Dantas (1937);
Abolição da escravatura e os Homens do Norte, conferência (1939);
Em louvor da língua portuguesa (1940);
A vida que já vivi, memórias (1945):
Quando vem baixando o crepúsculo (1945);
Cantigas de encurtar caminho (1949);
Tangará conta histórias, poesia infantil (1953);
Toda uma vida de poesia, 2 vols. (1957).

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 8

No dia seguinte o Coruja passeava sozinho por uma alameda sua favorita, quando o Caetano lhe foi dizer que o Sr. Teobaldo o mandava chamar e ficava à espera dele no quarto. André correu ao encontro do amigo.

— Chegaram as nossas roupas! Exclamou este ao vê-lo.

E sua fisionomia rejubilava com essas palavras.

— Ah! Fez o outro, quase com indiferença.

— Experimentemos.

— Há tempo.

O alfaiate observou que não podia demorar-se muito.

— Deve estar direito... Respondeu André. Pode deixar.

— É bom sempre ver... Insistiu o alfaiate.

— É indispensável! Acrescentou Teobaldo.

André não teve remédio senão experimentar a roupa. Era um fato preto, fato de luto, que mal deixava perceber o colarinho da camisa. E ele, pequeno, grosso, cabeçudo, e queixo saliente, os olhos fundos, com as suas bossas superciliais principiando a desenvolver-se pelo hábito da meditação; ele, enfardelado naquela roupa muito séria, toda abotoada, só precisava de uns óculos para ser uma infantil caricatura do velho Thiers.

Contudo, e apesar dos conselhos que lhe dava o amigo para mandar diminuir três dedos no comprimento do paletó e tirar um pouco de pano das costas, achou que estava magnífica.

— Ao menos, disse Teobaldo, que acabava de se vestir, manda encurtar essas calças, rapaz! E soltar a bainha dessas mangas!

— Então boas... Teimou o Coruja, esforçando-se por fazer chegar as mangas até às mãos.

— Parece que te meteste nas calças de teu avô.

E voltando-se para o alfaiate:
— Também não sei como o senhor tem ânimo de apresentar unia obra desta ordem... Está uma porcaria!

— Perdão! Respondeu o alfaiate, dispondo-se logo a modificar a roupa de André. Vossemecê poderia dizer isso se a sua roupa não saísse boa, e essa está que é uma luva, mas, quanto à deste moço, nem só é a primeira vez que trabalho para ele, como não podia acreditar que houvesse alguém com as pernas tão curtas e os braços tão compridos. Parece um macaco!

— Bem, bem, veja lá o que é preciso fazer na roupa, e deixe-se de comparações! Observou Teobaldo, defronte do espelho, a endireitar-se, muito satisfeito com a sua pessoa.

Para esse dia estava reservado ao André uma surpresa muito agradável: D. Geminiana, tendo com o casamento de separar-se. do sobrinho, queria deixar a este uma lembrança qualquer e mandou buscar da corte um bom relógio de ouro e a respectiva corrente. A encomenda chegou essa noite, Teobaldo recebeu o seu presente da tia e, ato contínuo, tomou do antigo relógio e da cadeia que até aqui usara, e deu tudo ao Coruja.

Seja dito que um dos sonhos dourados de André era possuir um relógio; desejava-o, não como objeto de luxo, mas como objeto de utilidade imediata.

— Poder contar o tempo pelas horas, pelos minutos e pelos segundos!... Isto para aquele espírito metódico e regrado era nada menos do que uma felicidade.

CAPÍTULO X

Durante o tempo que precedeu ao casamento, a fazenda do Sr. Barão do Palmar descaiu um tanto da sua patriarcal serenidade e tomou um quente aspecto de festas, porque com muita antecedência começaram a chegar os convidados. Emílio quis reunir os seus vizinhos de uma légua em derredor e não se poupou a esforços para que nada lhes viesse a faltar. Havia de ser uma festa verdadeiramente gamaquiana.

Ao lado das delicadas distrações das salas, o jogo, a Á dança, a música e a palestra, queria ele a grande fartura da mesa e da copa; queria o grosso prazer pantagruélico: — Carne para mil! — Vinho para outros tantos!

À faca as grandes reses que pastavam sossegadamente no campo; à faca os trepegos, os chibarros, os carneiros e os perus! Que não ficassem por ali, naquelas cinco léguas mais próximas, estômagos nem corações com laivos de tristeza! O casamento devia efetuar-se na própria capela da fazenda, e meio mês antes da festa já ninguém descansava em casa de Emílio. Vieram cozinheiros de longe; cada convidado trazia dois e três serventes e, apesar disso, havia trabalho para todos.

O Coruja ia pela primeira vez em sua vida assistir a um baile, e essa idéia, longe de o alegrar, trazia-lhe uni fundo ressaibo &3 amargura, como se o desgraçado estivesse à espera de uma terrível provação.

O fato de perturbarem a calma existência da fazenda, só por si já não lhe era de forma alguma agradável; quanto mais a idéia de ter de acotovelar-se com pessoas inteiramente estranhas, a quem sem dúvida não iria ele produzir bom efeito com a sua triste figura desengraçada.

Oh! Se fosse possível ao Coruja presenciar toda aquela festa, sem aliás ser descoberto por ninguém!... Se ele pudesse, por um meio maravilhoso, tornar-se em puro espírito e estar ali a ver, a observar, a ouvir o que dissessem todos, sem que ninguém desse pela presença dele — Oh! Então conseguiria desfrutar, e muito!

Chegou entretanto a véspera do grande dia, e de todos os pontos começavam a surgir, desde pela manhã, convidados a pé, a cavalo e de carro. Um enorme telheiro, que se havia engendrado de improviso nos fundos da casa, ficou cheio de cavalgaduras, troles, carroções e seges das que se usavam no tempo.

A fazenda apresentava um aspecto magnífico. Emílio, como homem de gosto que era, procurou afestoá-la quanto possível. Por toda a parte viam-se florões de murta engranzados com as parasitas mais caprichosas; jogos d’água formando esplendidos matizes à refração das luzes multicores das lanternas chinesas. Defronte da casa o fogo de artifício, que seria queimado pelo correr da noite. Às seis horas da tarde uma salva de vinte tiros de peça anunciou que estava terminada a cerimonia religiosa do casamento e que principiava o banquete. Os noivos foram tomar a cabeceira da mesa acompanhados por mais de quinhentas pessoas.

Como nenhum dos aposentos da casa podia comportar tanta gente, o barão fez levantar no vasto terreiro da fazenda uma enorme tenda de lona, sustentada por valentes carnaubeiras, engrinaldadas de verdura. Nessa festa foi que o Coruja teve ocasião de apreciar mais largamente as brilhantes qualidades do amigo. Viu-o e admirou-o ao lado das damas, cortes e cavalheiro como um homem; viu-o igualmente ao lado dos amigos do pai e notou que Teobaldo nem uma só vez caía em qualquer infantilidade, e mais, que todos, todos, até os velhos, prestavam-lhe a maior atenção, sem dúvida fascinados pelo talento e pelas graças do rapaz; viu-o na biblioteca, tomando parte nos jogos carteados, que André nem sequer conhecia de nome, e reparou que ele puxava por dinheiro e ganhava ou perdia com uma distinção sedutoramente fidalga; viu-o nas salas da dança, conduzindo uma senhora ao passo da mazurca, teso, correto, elegante mais do que nunca, e como possuído de orgulho pelo gentil tesouro que levava nos braços; viu-o à mesa erguer-se de taça em punho e fazer um brinde à noiva, levantando aplausos de toda a gente, e o Coruja, de cujas mãos saíra aliás essa festejada peça literária, chegou a desconhecer a sua obra, tal era o realce que lhe emprestavam os dotes oratórios do amigo; viu-o depois ao ar livre, debaixo das árvores, a beber ponches e a mexer com a filha do João da Cinta, a qual olhava para ele, escrava e submissa, como defronte de um Deus.

Mas tudo isso não o fez ficar tão fortemente impressionado, como quando o contemplou ao lado de Santa, ao lado daquela adorável mãe que parecia resplandecer de orgulho e satisfação a rever-se no filho idolatrado. Foi com a alma banhada pelos eflúvios da felicidade de Teobaldo que o pobre Coruja ouviu palpitar entre essas duas criaturas as seguintes palavras, mais ternas e harmoniosas que um diálogo de beijos:

— Amas-me muito, meu filho?

— Eu te adoro, minha Santa.

— E nunca te esquecerás de mim?

— Juro-te que nunca.

— Nem mesmo depois de eu ter morrido?

— Nem mesmo depois de teres ido para o céu.

— E sabes tu, meu filho, o muito que te quero?

— Queres-me tanto quanto eu a ti.

— E sabes quanto sofreria tua mãe se por instantes te esquecesses dela?

— Não, porque não sei como possa a gente se esquecer de ti.

— E, quando fores completar os teus estudos na corte, juras que...

Não pode ir adiante. A idéia da separação que já se avizinhava a passos largos, tolheu-lhe a fala com uma explosão de soluços.

— Então, Santa, então, que é isso? Murmurou Teobaldo, erguendo-se e chamando para sobre o seu peito a cabeça da baronesa — Não chores! Não te mortifiques!...

Emílio acudiu logo, afastou o filho com um gesto e, tomando o lugar deste, segredou ao ouvido da esposa:

— Vamos, minha amiga, nada de loucuras!...

— Não posso conformar-me com a idéia de que Teobaldo torna a separar-se de mim...

— Bem sabes que é indispensável...

— Perdoa-me. Ninguém melhor do que eu aprecia os teus atos e as tuas intenções. Sei que ele precisa fazer um futuro condigno do seu talento; sei que não podemos acompanhá-lo de perto, não podemos morar na corte, porque as nossas condições de fortuna já não...

— Santa! Olha que te podem ouvir!...

— Não me conformo com esta separação! É talvez um pressentimento infundado; é talvez loucura, como dizes, mas não está em minhas mãos; sou mãe, e ele é tão digno de ser amado.

— Mas, valha-me Deus! Não é uma separação eterna...

— Não sei! É que uma terrível idéia me preocupa. Afigura-se-me que nunca mais o tornarei a ver!... Oh! Nem quero pensar nisto!

E os soluços transbordaram-lhe de novo, ainda com mais ímpeto que da primeira vez. O barão, sem perder uma linha do seu donaire, passou o braço na cintura da esposa e, deixando que ela se lhe apoiasse de todo no ombro, arrastou-a vagarosamente até à sua alcova.

Coruja, ignorado a um canto da sala, viu e ouviu tudo isso, e ao ver aquelas lágrimas de mãe e ao ouvir aquelas palavras de tanto amor e aqueles beijos mais doces do que as bênçãos do céu, que estranhas amarguras sua alma não carpiu em silêncio!...

Amargura, sim, que, por menos egoísta, por menos homem que fosse ele, do fundo do seu coração havia de sair um grito de revolta contra aquela injustiça da sorte, que para uns dava tudo e para outros nada! Aquele espetáculo de tamanha felicidade havia fatalmente de amargurá-lo.

Ainda se Teobaldo, possuindo muitos dotes fosse ao menos feito como ele, o Coruja; ainda se fosse miserável ou estúpido, — Vá! Mas não! Teobaldo era lindo, era rico, era talentoso e, além de tudo — Amado! Amado por tantas criaturas e, principalmente, por aquela adorável mãe, cujos beijos e cujas lágrimas eram o bastante para lhe adoçar todos os espinhos da vida.

E André, assim considerando, via-se perfeitamente, tinha-se defronte dos olhos, como se estivesse em frente a um espelho. Lá estava ele — Com a sua disforme cabeça engolida pelos ombros, com o seu torvo olhar de fera mal domesticada, com os sobrolhos carregados, a boca fechada a qualquer alegria, as mãos ásperas e curtas, os pés grandes, o todo reles, miserável, nulo!

O desgraçado, porém, em vez de dar ouvidos a estes raciocínios, voltou-se todo para uma voz íntima, uma voz que também lhe vinha do coração, mas toda brandura e humildade. E essa voz lhe dizia:

— Pois bem, miserável! Ingrato! Tu, que és órfão; tu que não tens onde cair morto; tu, que és feio, que és o Coruja; tu, que não tens nenhum dote brilhante, que não és distinto, nem espirituoso, nem possuis mérito de espécie alguma; tu, mal agradecido! — És amado por Teobaldo, que dispõe de tudo isso à larga e que te faz penetrar sua sombra no santuário de corações onde nunca penetrarias sem ele.

E o Coruja, saindo da sala para respirar lá fora mais à vontade, pôs-se a caminhar, a caminhar à toa entre as sombras das árvores, sentindo-se arrebatado por um inefável desejo de ser bom, um desejo de ser eternamente grato a quem, possuindo todas as riquezas, o escolhia para seu íntimo, para seu irmão — A ele, que nada possuía sobre a terra.

Ser "bom"!

Mas seria isso humildade ou seria ambição e orgulho?

Quem poderá afirmar que aquele enjeitado da natureza não se queria vingar da própria mãe fazendo de si um monstro de bondade? Sim. Vingar-se, fugindo da esfera mesquinha dos homens, fugindo às paixões, às pequenas misérias mundanas e procurando refugiar-se no próprio coração, ainda receoso de que o céu, cúmplice da terra, lhe negasse também a graça de um abrigo.

Ou quem sabe então se o ambicioso, vendo-se completamente deserdado de todos os dotes simpáticos a que tem direito a sua espécie, não queria supri-los por uma virtude única e extraordinária — A bondade?

A bondade, esse pouco!

Visionário! Não se lembrava de que a bondade, á força de ser esquecida e desprezada, converteu-se em uma hipótese ou só aparece no mercado social em pequenas partículas distribuídas por milhares de criaturas; como se dessa heróica virtude houvesse apenas uma certa e determinada porção desde o começo do mundo e que, de então para cá, à medida que se multiplicaram as raças. ela se fora dividindo e subdividindo até reduzir-se a pó.
––––-
FIM DA PRIMEIRA PARTE
––––––––––
continua…

Antologia de Prosa e Poesia "DESPERTAR" (Participação)

ORGANIZAÇÃO - Isabel Cristina S. Vargas, Pelotas-RS.

REGRAS:

Ser maior de 16 anos.

A obra deve ser em português, inédita ou não.

Temática: EMOÇÕES

Publicação:
Poemas - até 35 versos(linhas) = 01 página.
Crônicas - até 3.000 caracteres com espaços = 02 páginas.
Contos - até 4.500 caracteres com espaços = 03 páginas.

Ao efetuar a inscrição o autor assume a autoria da obra e aceita as regras, aqui definidas.

O autor pode publicar quantas obras desejar.

Custo:
Publicação de um POEMA = R$ 25,00 = 01 exemplar.
Publicação de uma CRÔNICA = R$ 45,00 = 02 exemplares.
Publicação de um CONTO = R$ 60,00 = 03 exemplares.

Exemplares avulsos: R$ 20,00 (unitário).

Os autores selecionados receberão um INFO/Mail do Celeiro com as instruções para o pagamento referente à publicação/livros, que é através de boleto bancário.

Na época da editoração, o autor receberá suas páginas diagramadas em arquivo (pdf) para revisão e aprovação.

O cronograma de editoração, bem como, a relação dos autores inscritos estão disponíveis na página ACOMPANHE (link na página inicial do site).

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domingo, 14 de julho de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Palavras Cruzadas

Veio à minha frente, ontem à tarde, um passageiro engolfado num sobretudo enorme e num largo jogo de palavras cruzadas. Espiei um pouco por cima, o homem percebeu o meu movimento, voltou-se, reconheci-o: era o meu ex-vizinho Eulálio Peixoto, professor de Matemática e de conformidade.

-"Pois até você, Peixoto!"

- "É para você ver, Felício. Mas quem pode resistir! Todo o mundo vive às voltas com isto. Ainda hoje vi uma senhora, com um livro aberto, no bonde, dentro do livro ia um retalho de papel -era o jogo. Tenho um conhecido que traz o seu dentro do chapéu. Outros o carregam na carteira e em qualquer momento de descanso, no bonde, no café, na esquina, lá se põem a decifrar. Curioso! A que é que você atribui esta mania?"

-"Gosto de quebrar a cabeça".

-"Está enganado. Isso é o que menos influi no caso. Quantidade desprezível. A vida toda, toda, desde as grandes até às ínfimas coisas, é um tecido de quebra-cabeças."

"Dirá você que são problemas repulsivos -uns tenebrosos, como a própria vida em si, outros atenazantes, como o do pão que se há de comer no mês que vem. Perfeitamente! Mas, nesse caso, haveria uma infinidade de passatempos deste mesmo gênero à nossa disposição -os problemas de aritmética e álgebra, o xadrez, o soneto, as ações humanas, o acróstico... veja você, o acróstico tão aparentado com isto, e tão mais interessante!

"Não, o prazer do entretenimento é o que menos influi nesta epidemia. Ele existe, sem dúvida, no fundo de todos estes exercícios, mas neutro, indiferente à oscilação e variedade das aplicações."

-"Mas, então, Peixoto, onde é que está o busílis?"

-"Eis aí o grande problema das palavras cruzadas! Esse é que eu gostaria de ver discutido. Para mim, provisoriamente, o segredo só tem uma explicação, uma só: contágio mental.

-"Mas como explicará você o contágio, por sua vez?"

- "É outra questão. O contágio existe, é evidente, manifesta-se por mil formas. Sempre existiu. A moda nunca foi outra coisa que um nome diverso desse fenômeno. O joguinho apareceu um dia, lá na América do Norte, como um desses mil divertimentos com que os jornais engabelam o público. Ou porque tivesse uma feição mais atraente, ou porque o jornal que o inventou fosse de grande circulação, ou porque se anunciassem prêmios convidativos, a coisa teve êxito, despertou os êmulos e os imitadores, -e eis a epidemia armada, a alargar-se por toda uma região, por todo um país, transpondo os mares, saltando em portos distantes, explodindo em todos grandes centros, voando a todos os recantos do mundo."

"É a própria, a propriíssima curva de todas as epidemias -explicou Peixoto continuando. -Há um primeiro foco, lento, hesitante, dúbio. Repetem-se os casos, nas vizinhanças. E, à medida que se repetem, a intensidade sobe. Há um momento de máxima intensidade e máxima expansão. A epidemia alastra-se.

"Depois, vão-se extinguindo aos poucos os mil focos espalhados, bambeia a fúria do mal, os casos voltam a ser mais brandos, mais incertos, e tudo acaba como um incêndio rápido que lambesse e queimasse todas as folhas e gravetos secos disseminados por um mato verde, morrendo afinal aos pedaços, por falta de alimento e de vento."

Peixoto fez-me ver em seguida como o contágio mental vai alargando, em todas as suas formas, o seu campo de expansão.
Em outros tempos que não vão tão longe, cada país era um campo restrito de ressonâncias, e dentro de cada um desses campos havia outros, igualmente quase fechados -as classes, as categorias sociais. Um sapateiro da Idade Média estava muito mais longe de um magistrado, na mesma cidade, do que hoje um fazendeiro de Mato Grosso se acha de um professor de Heidelberg.

As modas, outrora, levavam muito mais tempo a ir de Paris à província, do que, hoje, de Nova York ao Extremo Oriente. Demais, propagavam-se em linha horizontal -dentro de certas classes; hoje propagam-se tanto no sentido horizontal como no vertical -entre as gentes colocadas em posição semelhante e entre as que ocupam qualquer outra posição na escada ascendente ou descendente.

O contágio, hoje, envolve tudo. Tudo pode transformar-se repentinamente em mania coletiva. Outrora, havia epidemias de misticismo, de guerra ou de suicídio limitadas a certas regiões. Hoje, toda a vida universal tende a ser uma sucessão de epidemias. Há epidemias universais de dança, epidemias esportivas, epidemias de jogo, epidemias políticas, epidemias artísticas, literárias, epidemias econômicas, epidemias filantrópicas.

Se algum dia houve a ilusão do que os homens fossem capazes de se deixar guiar pela razão, hoje o mundo inteiro é um só vasto campo de experiência a provar todos os dias, que os homens agem sistematicamente à revelia da razão -o que não quer dizer que uma vez por outra, não possam encontrar-se com ela, por acaso. Quanto mais se civilizam, mais imitam e copiam. Quanto mais prezam a individualidade mais a perdem. Quanto mais amam o novo e o original, mais feitos "em série" parecem.

Os motivos de ação vão-se tornando, cada vez mais, efeitos de sugestão coletiva.
Os Estados Unidos, que se diriam a terra por excelência do individualismo violento, são na verdade a terra por excelência da socialização absorvente. O que dá a aparência da liberdade é a franqueza exterior dos movimentos. Pura aparência. Não há nada que pareça tão "livre" como as peças ativas de um tear moderno, a trabalharem silenciosamente, como por si, como uma espécie de alacridade serena e de inabalável consciência do dever.

Na realidade, o homem por lá não tem a mínima liberdade, no sentido clássico, estóico, de liberdade interior, fundamental, soberana; inviolável -aquela que Emerson por lá mesmo exaltava. É sempre homem de um partido, de uma igreja de um clube, de uma corrente, -um dos caracteres de que se compõem as palavras de um pensamento coletivo, para ele proveitoso mas indecifrável.

Formidáveis, naquela terra, o volume e a rapidez dos movimentos de opinião ou sensibilidade, isto é, de contágio mental. São turbilhões que passam levantando fiumanas de almas como folhas secas. Estes movimentos tanto podem dar-se a propósito de bebidas, como de um match de box; de uma eleição, como de uma nova dança de negros; de um escândalo teatral como de uma doutrina religiosa

Enfim, o indivíduo vai sendo empastado na comunidade e arrastado nas convulsões obscuras das forças elementares que a percorrem e remexem.

Este o pendor contemporâneo da civilização. Este o seu perigo mais tétrico. Ela tende cada vez mais a absorver as personalidades, como um organismo em jejum forçado tende a alimentar-se às suas próprias expensas, esgotando os seus elementos vitais, esgotando-se...

Chegado a este ponto, Eulálio interrompeu-se por que me achou distraído. Na verdade, a minha aparente distração estava apenas em que eu lhe bebia as palavras, e as memorizava.

Mas ele tinha a sua razão de me estranhar o silêncio e a imobilidade; porque a boa educação manda que, nas conversas, se dêem todas as atenções à pessoa que fala, e nenhuma ao que ela fala.

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 7

Dentre toda essa bela existência só uma coisa o contrariava sem que todavia deixasse o Coruja transparecer o menor desgosto contra isso: — Era a teimosa perseguição que lhe fazia D. Geminiana. A rezingueira senhora achava sempre um mau gesto ou uma palavra dura para lhe antepor aos atos mais singelos. Manifestou-se-lhe logo a impertinência a propósito da flauta do rapaz. André, coitado, não desmentia o mestre que lhe dera o acaso, e D. Geminiana, uma noite em que conversava com o noivo, depois de ouvir por algum tempo o fiel discípulo do Caixa-d’óculos arrancar do criminoso instrumento certas melodias bastante equivocas, foi ter com ele, sacou-lhe vivamente das mãos o corpo de delito e, atirando com este para cima de um canapé, tornou ao lado de Hipólito, sem dar uma palavra ao delinqüente, rico, porém, de gestos e caretas muito expressivas.

O homem das barbas ruivas e cabelo preto observou tudo isso em silêncio, contentando-se apenas com sacudir a cabeça e apertar os beiços em sinal de aprovação.

Coruja, quando os noivos mergulharam de novo no seu colóquio, retomou sorrateiramente a flauta e fugiu com ela para um caramanchão de maracujás, que havia a alguns passos da casa. Supunha que daí não seria ouvido pela ríspida senhora; mas, no dia seguinte, procurando o instrumento não o encontrou em parte alguma.

— Minha flauta?... Perguntou ele a D. Geminiana.

— Está guardada! Disse essa secamente. Só lha restituirei quando o senhor voltar para o colégio.

Coruja resignou-se, sem um gesto de contrariedade e não falou a ninguém sobre esse incidente, nem mesmo ao amigo. Com efeito, só tornou a ver sua querida flauta ao terminar das férias, quando se dispunham, ele e Teobaldo, a voltar para o internato do Dr. Mosquito.

O barão foi levá-los em pessoa ao colégio, e Santa, chorando pelo filho, despedira-se do Coruja, dizendo-lhe:

— Continue a ser amigo de Teobaldo e nós faremos com que você passe aqui as férias do ano que vem.

CAPÍTULO IX

Com o correr do seguinte ano, a dedicação do Coruja pelo amigo parecia crescer de instante para instante. Uma leoa não defenderia os seus cachorros com mais amor e mais zelos.

Já não se contentava André com resguardá-lo das ameaças e malquerenças dos colegas, como exigia também de todos que lhe rendessem a mesma estima e o mesmo respeito, que lhe tributava ele.

Teobaldo, vadio como era por natureza, quase nunca estudava as lições, e quando não lhe valiam os recursos do seu "proverbial talento" ou da sua astúcia, tinha de copiá-las quatro, cinco ou seis vezes, conforme fosse o castigo. Então se revoltava e queria protestar contra a sentença dos mestres, mas o Coruja puxava-lhe  a ponta do casaco e dizia-lhe baixinho:

— Não te importes, não te importes, que eu me encarrego de tudo...

E, com efeito, mal chegava a hora do recreio, enterrava-se André no quarto de estudo e, imitando a letra do amigo, aprontava as cópias; feliz com aquele trabalho, como se o descanso do outro fosse o seu melhor prazer. Muita vez perdeu com isso grande parte da noite, e no dia seguinte ainda encontrava tempo para tirar os significados da lição do amigo, para resolver-lhe os problemas de álgebra e fazer-lhe os temas de latim.

Uma vez, em que o Coruja se apresentou nas aulas sem haver preparado as próprias lições, o professor exclamou com surpresa.

— Oh! Pois o senhor, seu André, pois o senhor não traz a sua lição sabida!... Então que diabo fez durante o tempo de estudo o senhor que não larga os livros?...

Entretanto, o outro Teobaldo, estava perfeitamente preparado. Esta dedicação fanática de Coruja pelo amigo crescia com o desenvolvimento de ambos; mas em Teobaldo a graça, o espírito e a sagacidade eram o que mais florescia; enquanto que no outro eram os músculos, o bom senso, a força de vontade e o férreo e inquebrantável amor pelo trabalho.

Agora, o pequeno do padre já emitia opinião sobre várias coisas, já conversava; tudo isso, porém, era só com o seu amigo íntimo, com o seu Teobaldo. Parecia até que, à proporção que abria o coração para este, mais o fechava para os estranhos.

Quando terminou o ano, o filho do barão havia crescido meio palmo e o Coruja engrossado outro tanto; aquele se fizera ainda mais esbelto, mais distinto e mais formoso; este ainda mais pesado, mais insociável e mais feio. Afinal, assim tão completados, formavam entre os seus companheiros uma força irresistível. Teobaldo era a palavra cintilante e ferina, era a temeridade e o arrojo; o outro era o braço em ação, a força e o peso do músculo. Um provocava e o outro resistia.

Um era o florete aristocrático, fino e aguçado, que só tem a serventia de palitar os dentes do orgulho; o outro era o malho grosseiro e sólido, que tanto serve para esmagar, corno serve para construir.

Partiram de novo para a fazenda,, deixando atrás de si a solene gratidão do colégio pelo catálogo da biblioteca, que "eles" concluíram e ofereceram ao estabelecimento; e deixando também por parte de seus condiscípulos um rastro de ódios, ódios que serviram aliás durante o ano para melhor os aproximar e unir, acabando por constituí-los em uma espécie de ser único, do qual um era a fantasia e outro o senso prático.

Foi então que lhes chegou a notícia da morte do padre Estêvão; sucumbira inesperadamente a um aneurisma, do qual nunca desconfiou sequer, e, no testamento, legara o pouco que tinha a uma comadre e àquela criada de mau gênio que o servira.
Quanto ao Coruja, nem uma referência, nem um conselho ao menos; o que fazia crer fosse escrito o testamento antes da adoção do pequeno e nunca mais reformado.

Esta circunstância da morte do padre levou André a pensar em si, a pensar na sua vida e no seu destino. Interrogou o passado e o futuro e, pela primeira vez, encarou de frente a posição que ocupava ali, naquela fazenda do Barão do Palmar, esse protetor tão do acaso como o primeiro que tivera ele. Então notou que na sua curta e triste existência passara de uma para outra mão, que nem um fardo inútil e sem dono.

— Que será de mim? Perguntava o infeliz a si mesmo nas suas longas horas de concentração. Mas o amigo, com a prematuridade intuitiva do seu espírito, saltava-lhe em frente, antecipando razões, como se adivinhara todos os pensamentos de André.

— Em que tanto pensas tu, meu urso? Perguntava-lhe ele, quando se achavam a sós, no bosque; já ontem à noite não quiseste aparecer na sala e cada vez mais te escondes de todos, nem como se fosse um criminoso.

— E quem sabe lá?

— Quê? Se és um criminoso?...

— Sim. A necessidade, quando chega a um certo ponto de impertinência, que mais é senão um crime? Que direito tenho eu de incomodar os outros?

— Exageras.

— Não. A caridade é muito fácil de ser exercida e chega a ser até consoladora e divertida, mas só enquanto não se converte em maçada.

— Não te compreendo...

— Pois eu me farei compreender. Vou contar-te uma parábola, que o defunto padre Estêvão repetia constantemente.

— Venha a história.

— Senta-te aí nesse tronco de árvore e escuta:

Era um dia um sacerdote, que pregava a caridade.

"— A caridade, dizia ele, deve ser exercida sempre e apesar de tudo". Vai um caboclo, que o ouvira atentamente, perguntou-lhe depois do sermão:

“— Ó sôr padre, é caridade enterrar os mortos”?

"— Decerto, respondeu o pregador; é uma obra de misericórdia".

E o caboclo saiu, matou uma raposa e foi esperar o sacerdote na estrada; quando sentiu que ele se aproximava, pôs a raposa no meio do caminho e escondeu-se no mato. O padre, ao topar com ela e observando que estava morta, ajoelhou-se, e cavou no chão, enterrou-a e, depois de dizer uma sentença religiosa, seguiu o seu caminho. O caboclo, assim que o viu pelas costas, correu à sepultura, sacou a raposa e, ganhando por um atalho, foi mais adiante e jogou com ela ao meio da estrada, antes que o pregador tivesse tempo de chegar; este, porém, não tardou muito e, ao ver de novo uma raposa no caminho, fez o que fizera da primeira vez, enterrou-a, mas sem se ajoelhar, nem repetir a sua máxima latina. O caboclo deixou-o seguir, tomou de novo da raposa e foi depô-la mais para diante na estrada; o padre ao topá-la, enterrou-a já de mau humor e prosseguiu receoso de encontrar outras raposas mortas. Todavia, o caboclo não estava ainda satisfeito e repetiu a brincadeira; mas, desta vez, o padre perdeu de todo a paciência e, tomando a raposa 'pelo rabo, lançou-a ao mato com estas palavras: "Leve o diabo tanta raposa morta!" Então o caboclo lhe apareceu e disse: "— Já vejo que enterrar um morto é obra de caridade, mas fazer o mesmo quatro ou cinco vezes é nada menos do que uma formidável estopada!" Ao que o sacerdote respondeu que, desde que houvesse abuso da parte do protegido, era natural que o protetor se enfastiasse...

— Queres dizer com isso, observou Teobaldo, que já estamos fartos de te aturar...

— Decerto, porque tudo cansa neste mundo.

— És injusto e, se meu pai e minha mãe te ouvissem, ficariam bravos comigo.

— Ah! Eles não me ouvirão, podes ficar tranqüilo. Só a ti falo porque nós nos entendemos e bem sabes que não sou ingrato.

— Meus pais te compreendem tão bem ou melhor do que eu.

— Mas não me perdoam, como tu perdoas, o fato de ser eu tão feio, tão antipático e tão desengraçado...

— Ora! Aí vens tu com a cantiga do costume. Deixa-te disso e vamos dar um passeio à rocinha do João da Cinta.

— Outra vez? Que diabo vamos lá fazer agora?

— Convidá-lo e mais a família para virem ao casamento da tia Geminiana.

— É sempre no dia 15 o casamento?

— Infalivelmente, e o alfaiate deve trazer-nos amanhã os nossos fatos novos. Mas, anda, vamos!

Coruja ergueu-se do lugar onde estava assentado e acompanhou o amigo, que já se havia posto a caminho.

Três quartos de hora depois chegavam a um grande cercado de acapu, a cuja frente corria um riacho quase escondido entre a vegetação. Teobaldo parou, disse ao amigo que esperasse um pouco por ele e, trancando pelos barrancos do riacho, foi ter à cerca e soltou um prolongado assobio. A este sinal, com a presteza de quem está de alcatéia, surgiu logo uma rapariguita de uns treze anos, forte, corada e bonitinha.

— Ah! Disse ela, vindo encostar-se às estacas.

— Não esperavas por mim?... Perguntou o rapaz. A pequena respondeu, entregando-lhe um ramilhete que trazia à sorrelfa. E perguntou depois como passava de saúde o Sr. Teobaldo.

— Com saudades tuas... Disse o moço, tomando-lhe uma das mãos.

— Mentiroso...

— Não acreditas?

Ela encolheu os ombros, a sorrir, de olhos baixos.

— Dize a teu pai que não deixe de ir com vocês ao casamento de tia Gemi. Vim convidá-los.

— Entre. Fale com mamãe. Ela está aí.

— Não; é bastante que lhe dês o recado.

E mudando de tom:

— Não faltes, hein, Joaninha?...

— Se me levarem, eu vou.

— Vá, que lhe tenho uma coisa a dizer...

Teobaldo havia conseguido passar o braço por entre duas estacas da cerca e segurava a cintura da rapariga; deu-lhe um beijo; ela o retribuiu com outro de igual sonoridade, fazendo-se muito vermelha e fugindo logo em seguida.

Este namoro, inocente de parte a parte, era o primeiro de Teobaldo. Nascera naquelas férias um dia em que ele, por acaso, encontrou a pequena a lavar no riacho em frente da casa as roupinhas do irmão mais novo. Desde então ia vê-la todas as tardes antes do jantar; falavam-se às vezes à beira do córrego, outras vezes com a cerca de permeio. De certa época em diante ela o esperava com um ramilhete; conversavam durante um quarto de hora e despediam-se com um beijo. O Coruja foi logo o depositário do segredo; Teobaldo contou-lhe a sua aventura e exigiu que ele o acompanhasse todos os dias à rocinha do João da Cinta, quedando-se a certa distância durante o tempo da entrevista.

André consentiu, sem mostrar o mais ligeiro espanto pelo que lhe revoltara o amigo.

Ainda inocente e deveras casto, não conhecia os meandros do amor e julgava dos outros corações pelo seu, que resumia toda a gama do afeto e da ternura em uma nota única. Não calculava a que podia chegar aquele inocente namoro originado entre o filho do Sr. Barão do Palmar e uma sertaneja, que nem ler sabia.
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continua…

sábado, 13 de julho de 2013

Antonio Brás Constante (O Dia dos Solteiros Escrito por um Casado)

No dia 29 de julho comemora-se o dia do solteiro. O termo "solteiro" se traduz em uma etapa da vida do homem (e da mulher, mas vou me referir neste texto apenas aos homens). Todo mundo já foi solteiro em algum momento de sua existência, indiferente se for homem, mulher, cavalo, golfinho ou barata, isso faz parte do ciclo de vida dos seres vivos, um ciclo que quando se refere aos homens muitos descrevem afirmando assim: Os homens nascem, crescem, ficam bobos e casam (outros já acham que o homem é bobo por natureza é por isso ele não fica bobo, e sim, nasce bobo).

Navegando pela internet por esses dias li a máxima diferença entre os solteiros e os casados, onde dizia que o casamento se resumia em se trocar a admiração de várias mulheres pela critica de uma só. Ou como já dizia o comediante Rafinha Bastos: "O homem nunca está satisfeito, quando está solteiro quer casar, quando está casado quer MORRER, e por aí vai..."

O parágrafo acima é com certeza um total absurdo, falo isso com toda liberdade de uma pessoa que acaba de descobrir que a esposa está atrás de si neste exato momento, lendo cada palavra até o momento escrita... E... E... E aproveitando que minha amada e doce esposa saiu para buscar algo, lembrei de uma frase que li há poucos dias onde dizia que a celulite na mulher serve para expressar o quanto ela é gostosa, só que em braile (como existe gente asquerosamente criativa neste mundo).

Outro dia conversei com um amigo que me contou que foi questionado se sua mulher estava com ele por amor ou por interesse, e ele francamente respondeu: "Oras, logicamente por amor, porque quando transamos ela não demonstra interesse nenhum...". Porém, não devemos tratar as mulheres de forma machista, pois elas sofrem com isso, o que me faz lembrar de uma frase que traduz bem este sentimento feminino que dizia: "Quando uma mulher sofre em silêncio é porque seu celular está sem créditos"

É iNcrIveL cOmo umA mulhEr cOnSeguE chEgaR sEm faZer BarUlHO. QueRO Me desCULPAR pelA FormA coM qUe eSTou esCRevENdo agoRa, mas é DiFIciL diGItAR enqUANtO sE esTá SENdo ESGANADO pelA PropRIa ESPOSA! (Ufá! Ela Parou). Bem vou terminando estas mal traçadas linhas (se este for meu ultimo texto, lembrem-se de mim com carinho e pelo meu sorriso, e não pelos hematomas que passarei a sofrer depois de dar o ponto final).

Brincadeiras a parte (SOCORRO, ELA VAI ME MATAR!!!), o desejo da maioria dos solteiros e solteiras que vivem por aí é encontrar a sua cara metade e viverem felizes para sempre (ou enquanto o processo de divorcio durar), pois quem está de fora quer entrar e quem está dentro não quer mais sair. ADEUS...

Fonte:
O Autor

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Ruídos e Rumores

As almas têm umas irradiações pouco observadas - sem nada de comum com a transmissão de pensamento, o magnetismo e análogas complicações etéreas, ódicas e místicas.

Não há uma ciência (e ainda bem, arre!) mas há uma arte, uma pequena arte sutil sobre a caça das irradiações da personalidade, através dos rumores e das vozes.

Tenho uns vizinhos esquisitos, um casal velho que vive fechado em casa e raramente se deixa ver. Trabalhando ou lendo no meu gabinete, ouço vozes, passos, tosses, assoadelas arrastamentos de móveis, bater de pregos, -tudo espaçado e abafado, passando através das paredes como vagas mensagens de um mundo sigiloso.

Ponho-me, às vezes, a escutar esses rumores e, à força de os ouvir e comparar, não só eduquei o ouvido para lhes perceber as menores variações, como consegui fixar o valor expressivo de alguns deles.

Cheguei à conclusão de que o homem é gordo, rude, voluntarioso, e talvez com um defeito numa das pernas. Pisa com força e peso, mas de um jeito claudicante; tosse de um modo rápido e sacudido; os ruídos que produz batendo pregos ou fechando portas são sempre céleres e inteiriços, e sua voz é robusta e serena.

Por que então não sai de casa? Provavelmente, algum incômodo ou lesão localizada, que o impede sem lhe afetar o estado geral.

Quanto à mulher, deve ser velhota, magra, tristonha a paciente. Seus passos apenas chiam no soalho, sua voz mal se ouve, assemelha-se a um arrulho monótono. De, quando em quando, escuto-lhe uns espirros longamente gemidos. Esses espirros por si sós ainda me fornecem uma indicação: a senhora é do interior de São Paulo, provavelmente de lugar pequeno, e talvez da zona sorocabana.

Outro dia, tive um susto: o homem entrou a falar alto e ríspido, a dar passadas por toda a casa.

Estaria a maltratar a pobre senhora? Apurei o ouvido. O vizinho andava, parava de quando em quando, falava falava, e depois punha-se a andar de novo, para de novo estacar e falar: o ritmo característico de uma crise de raiva recriminante.

Mas que poderia ter-lhe feito a pobre velhota, tão calma e resignada?

Ansioso, apurei ainda mais o ouvido, e só descansei quando ouvi um espirro da vizinha: atchiii!... Esse espirro, longo, pacífico, modulado pela forma exata do hábito, garantia que a zanga não era com ela.

Hoje, finalmente, viajei de bonde com o casal, que saiu conforme às revelações sonoras. O homem, alto, gordo e vermelho; ela, seca e sumida. Ao tratarem de descer, ele puxou a corda da campainha num golpe incisivo e forte. Desceram, e então vi que ele tinha um pé inchado em chinelo.

Pus-me a traduzir, pelo resto da viagem, os sons da campainha.

As vibrações indicam o sexo, a idade aproximada e o temperamento de quem as faz retinir. Há campainhadas tímidas, indecisas, distraídas, discretas, nervosas, indolentes, autoritárias, coléricas.

Umas previnem, refletidas, o motorista, a quase uma quadra de distância, declarando, calmas e incisivas: "Pare aí adiante; olhe que está avisado!"

Outras exprimem certa dúvida: "Deverei saltar aqui?... Será aqui mesmo o ponto que me convém?..."

Outras enfim, após tantas, deixam transparecer a surpresa de um apalermado que de repente se achou no ponto de parada sem ter dado por isso: "Oh, diabo, cá estou; pára aí!"

A linguagem das campainhas pode, porém, exprimir coisas ainda menos triviais.

Outro dia, vinha um passageiro novato no bairro, que mandou parar em certo ponto, e não desceu: tinha-se enganado. Ressoou surdamente a campainha, acionada pelo condutor, um português muito plantado em si mesmo: "Bom, vamos embora."

Duas esquinas adiante, o homem dá nova ordem de parada, e ainda não desce: tinha-se enganado outra vez. Então, a correia da campainha fuzilou nos ganchos como uma chicotada, e o metal retiniu com tal expressão, que se entendeu perfeitamente: "Roda!. .. Raios o parta!"

Há um conto de Gautier O Ninho de Rouxinol, onde figuram umas jovens estranhas, que unicamente comunicam com o mundo por meio dos sons. Todo o universo, para elas, se traduz em música, e só em música elas traduzem o que sentem e pensam.

Realmente, não há nada que não se possa resolver em música, e é lícito conceber-se um mundo em que fosse essa a linguagem universal das coisas e das almas. Sem irmos, porém, às alturas da imaginação, é fácil reconhecer que tudo trivialmente, em redor de nós, se manifesta por sonoridades, ruídos e silêncios.

Sabe disso toda a gente que dispõe da integridade do seu aparelho auditivo. O que pouca gente sabe é como se podem obter impressões novas, surpreendentes e divertidas das coisas e das almas que nos rodeiam, - apenas aplicando o ouvido à sondagem e interpretação dos sons.

Nós vivemos pelos olhos. A estes confiamos quase exclusivamente a missão de observadores e testemunhas. O sentido auditivo reduzimo-lo quase a um simples papel de serviçal obediente às determinações da vontade. Vemos tudo, mas só ouvimos o que queremos. É incrível a capacidade de que dispomos para eliminar as impressões do ouvido, no meio do rumor infernal das ruas, do bruaá de um café regurgitante de palradores.

Ainda hei de escrever um artigo sério para um jornal sério, um artigo científico, cheio de termos técnicos como um queijo cheio de saltões, a propugnar a educação e a aplicação mais racionais das faculdades auditivas. Quantos afluxos de sensações sistematicamente rejeitados, e que poderiam ser tão úteis á inteligência, e úteis à própria defesa do indivíduo!

E depois, se a moda pegasse, se começássemos todos a fazer um uso mais consciente, mais constante e mais largo desse aparelho receptor, seria impossível que um grande número de cidadãos não se insurgissem afinal, indignados, exigentes, furiosos, contra a pandemônica, vertiginosa e martirizante barulheira da cidade, contra este caos sonoro que nos engole e nos aniquila.

Fonte:
Domínio Público

Hilda Mendonça (O Alerta, de Charles Pereira)

O Alerta foi dado. A Vela ainda acesa. E um alerta requer certo cuidado. Tenho em mãos o livro do advogado Charles Pereira, vice-presidente da Escritores & Companhia, O Alerta. A curiosidade despertada, examino a capa, confecção gráfica impecável (Com cara de best-seller!). Vejo uma vela acesa, certos planos piramidais de fundo induzem ao mistério. Nas orelhas, citações bíblicas já nos dão um pouco a direção do fio condutor que envolve o romance. Embora obra de ficção, este Alerta nos leva a repensar realidades que estão a ocorrer no dia a dia da humanidade e à reflexão sobre os fins dos tempos. Trata-se de um romance de 190 páginas, com boa diagramação, editado em 2011 pela All Print-Editora, do autor Charles Pereira. Charles não se deixou prender a superstições que rondavam o imaginário popular sobre o terceiro Milênio, contudo não consegue fugir totalmente às indagações do tema.

Há um escritor nascido em Passos e que se assina João Passos, que também escreveu um livro profundo nesta linha: Os seis últimos dias, se não me falha a memória, pois já o li há algum tempo. Contudo, este Alerta de Charles Pereira não usa a pesquisa com documentos comprobatórios, como o caso de João Passos. Charles Pereira conseguiu, com este seu Alerta, construir uma trama bem amarrada, mantendo fidelidade ao tema proposto do início ao final, o que nem sempre é fácil, e arrematar o livro com a consciência de dever cumprido.

No capítulo 1 é interessante a descrição da cidade, não sei se imaginária ou real, pois em obra de arte às vezes nos perguntamos onde começa e termina o real ou o imaginário, tomando como real aquilo que de fato existe. Do momento em que o autor apresenta um fato ou cenário, ele existe, então perguntamos: o que é real na arte literária?

O livro O alerta nos apresenta o personagem Josué, advogado, profissão que Charles conhece tão bem, visto que também é advogado. Josué encantou-me sobremaneira, não sei se o fato de trabalhar em uma mineradora, sempre admirei essas pessoas de mineradoras e hidrelétricas, por achar que são ocupações de muita adrenalina. Josué já me é simpático de início, e é naquela noite alegre de Réveillon que tem início o mistério, mistério esse que mudaria a sua vida e a de muitos que com ele conviviam. O personagem Josué, ainda naquele torpor de que se lhe acometeu, naquela noite de Réveillon, ouviu misteriosa voz a dizer-lhe: “Estás no celeiro de meu pai”. A partir daí, o texto muito bem delineado, vai envolvendo o leitor e todo autor sabe que o leitor, uma vez “fisgado”, não mais o abandonará.

Depois deste acontecimento, ou seja, aquele estranho episódio, que não vou entrar em detalhes, para não me antecipar ao leitor, fatos estranhos ou nem tanto, pela habilidade do autor, preparam-nos para mais e mais acontecimentos inesperados. A trama flui habilmente e muito bem amarrada, e são ações e mais ações que nos remetem a certo realismo fantástico, entre ficção e realidade, na trajetória de Josué que nos leva a segui-lo até o final proposto.

O alerta não é um livro que se propõe religioso, no entanto, é todo ele recheado de religiosidade, em que o autor está muito seguro do que diz, como se para isso houvera se preparado por longas datas, mesmo sendo uma pessoa jovem.

Não vou aqui me imiscuir em recontar a história, pois isto Charles já o fez com mestria, e tiraria a surpresa do leitor. Posso dizer, entretanto, que valeu por mais esta experiência de leitura que me levou a muitas e salutares reflexões.

Charles Pereira é passense, advogado e o vice-presidente da Escritores & Companhia.

Fonte:
Literatura Sem Fronteiras

Almada Negreiros (Poesias Sem Fronteiras)

Maternidade (Pintura de Almada Negreiros)
ESTORVA-ME A TERRA

Estorva-me a terra por causa do sonho
estorva-me o sonho por causa da terra
eu ando na guerra do sonho com a terra.
Senhores empregados do mundo
tenham santa paciência
vale mais a vida do que a existência.

ENCONTRO

Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá para o futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.
Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.

Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.
O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.
Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.
Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas
torres de marfim.
Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.

ESPERANÇA

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente.
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.
Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança
único que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana
engano que seja
não me deixes sozinho
esperança.

ERAM SETE E MEIA

Eram sete e meia.
O mais tarde que podias entrar era até às oito
e depois das oito tornava-se reparado.
Havia ordem no mundo
e meia-hora para nós,
meia-hora que não foi como queríamos
meia-hora em que cada um de nós nos prejudicava
habituados que estávamos a não nos termos visto nunca.
Levámos meia-hora a combinar outra hora para nós
meia-hora que afinal só começou depois de terminada
ao despedirmo-nos até à vista.
E até tornar a ver-te
eu não me senti, nem a fome, nem a sede
nem outra vontade que tu,
fiz como os poetas
que apagam a realidade
para lhe pôr outra melhor por cima.

A SOMBRA SOU EU

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei dó que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e que não me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!

RONDEL DO ALENTEJO

Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.

Meia-noite
do Segredo
no penedo
duma noite
de luar.

Olhos caros
de Morgada
enfeitava
com preparos
de luar.

Rompem fogo
pandeiretas
morenitas,
bailam tetas
e bonitas,
bailam chitas
e jaquetas,
são de fitas
desafogo
de luar.

Voa o xaile
andorinha
pelo baile,
e a vida
doentinha
e a ermida
ao luar.

Laçarote
escarlate
de cocote
alegria
de Maria
la-ri-rate
em folia
de luar.

Giram pés
giram passos
girassóis
os bonés,
os braços
estes dois
iram laços
o luar.

colete
esta virgem
endoidece
como o S
do foguete
em vertigem
de luar.

Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.

CANÇÃO DA SAUDADE

Se eu fosse cego amava toda a gente.

Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha
irmã gemea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la viva na minha
edade.

Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde móras, dize se vives ou se já nasceste.

Eu amo aquella mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.

Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.

Eu amo aquellas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.

Eu amo os cemiterios - as lágens são espessas vidraças transparentes, e
eu vejo deitadas em leitos florídos virgens núas, mulheres bellas
rindo-se para mim.

Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres
são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos.

Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.

Se eu fosse cego amava toda a gente.

RUINAS

Pandeiros rotos e côxas taças de crystal aos pés da muralha.

Heras como Romeus, Julietas as ameias. E o vento toca, em bandolins distantes, surdinas finas de princesas mortas.

Poeiras adormecidas, netas fidalgas de minuetes de mãos esguias e de cabeleiras embranquecidas.

Aquelas ameias cingiram uma noite pecados sem fim; e ainda guardam os segredos dos mudos beijos de muitas noites. E a lua velhinha todas as noites reza a chorar: Era uma vez em tempo antigo um castelo de nobres naquele lugar... E a lua, a contar, pára um instante - tem medo do frio dos subterrâneos.

Ouvem-se na sala que já nem existe, compassos de danças e risinhos de sedas.

Aquelas ruínas são o túmulo sagrado de um beijo adormecido - cartas lacradas com ligas azuis de fechos de ouro e armas reais e lisas.

Pobres velhinhas da cor do luar, sem terço nem nada, e sempre a rezar...

Noites de insônia com as galés no mar e a alma nas galés.

Arqueiros amordaçados na noite em que o côche era de volta ao palacio pela tapada d'El-rei. Grande caçada na floresta--galgos brancos e Amazonas negras. Cavaleiros vermelhos e trombetas de ouro no cimo dos outeiros em busca de dois que faltam.

Uma gôndola, ao largo, e um pagem nas areias de lanterna erguida dizendo pela brisa o aviso da noite.

O sapato d'Ela desatou-se nas areias, e foram calça-lo nas furnas onde ninguém vê. Nas areias ficaram as pegadas de um par que se beija.

Noticias da guerra - choros lá dentro, e crepes no brasão. Ardem círios, serpentinas. Há mãos postas entre as flores.

E a torre morena canta, molenga, doze vezes a mesma dor.