terça-feira, 20 de agosto de 2024

Eduardo Martínez (Aurelino, o empertigado)

Era desagradável por natureza. Alguns não gostavam das gravatas que usava, outros implicavam com o sotaque carregado de erres. No entanto, todos não suportavam o seu modo de dizer as horas.

— 18 menos 5.

Empertigado que nem pavão, Aurelino desfilava soberba por onde passava. Ninguém se atrevia a dizer coisa que o desabonasse, mesmo que o vaidoso merecesse ser achincalhado. Era homem de posição, e prudência era necessária para não ser alvo de perseguição por tolice. Um biltre, é verdade. Todavia, biltre com o alforje repleto de poder. 

O traste empoderado, além da canalhice e da maneira de dizer as horas, era mais pontual que bexiga de velho durante as madrugadas frias. E ai de quem não estivesse pronto na hora marcada.

— Seu Jorge, amanhã passo aqui às 10 menos 15 para que você me apare o bigode.

— Não vai querer cortar o cabelo, doutor?

— Semana que vem.

O barbeiro, que era bom na tesoura, mas ruim em matemática, se desdobrava para descobrir a que horas o freguês iria aparecer. Por sorte, naquele dia, estava por ali o pequeno Juliano, menino afeito a contas. 

— 9h45!

— Tem certeza?

— Se duvida, por que o senhor não faz as contas?

Sem tutano para tanto, Jorge tratou logo de colocar a desconfiança de lado. Pegou o caderno de espiral debaixo do balcão e anotou o compromisso. 

No dia seguinte, na hora marcada, lá estava Aurelino para cortar as pontas do bigode. Cumprimentou o barbeiro, que ligeiro foi dar algumas espanadas na cadeira para o ilustre freguês se acomodar.

Corta daqui, corta dali, eis que, de repente, a cabeça do Aurelino tombou para o lado. O corpo seguiu caminho idêntico. 

Jorge, a princípio, imaginou que o mais ilustre cliente estaria lhe pregando uma peça. Que nada! O coração do homem havia cansado de bater exatamente às 10 menos 10.

Fonte: Blog do Menino Dudu. 18 agosto 2024.

Recordando Velhas Canções (Se eu morresse amanhã de manhã)


(Samba-Canção, 1953)

Compositor: Antônio Maria 

De que serve viver tantos anos sem amor
Se viver é juntar desenganos de amor
Se eu morresse amanhã de manhã
Não faria falta a ninguém
Eu seria um enterro qualquer
Sem saudade, sem luto também
Ninguém telefona, ninguém
Ninguém me procura, ninguém
Eu grito e um eco responde: "ninguém!"
Se eu morresse amanhã de manhã
Minha falta ninguém sentiria
Do que eu fui, do que eu fiz
Ninguém se lembraria
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Solidão e a Efemeridade da Vida em 'Se Eu Morresse Amanhã De Manhã'

A música 'Se Eu Morresse Amanhã De Manhã', de Antônio Maria, é uma reflexão profunda sobre a solidão e a efemeridade da vida. A letra aborda a sensação de insignificância e a falta de conexão emocional com outras pessoas. O eu lírico questiona o valor de viver muitos anos sem amor, sugerindo que a vida sem afeto é repleta de desenganos e desilusões. Essa perspectiva melancólica é reforçada pela ideia de que sua morte não faria falta a ninguém, destacando um sentimento de invisibilidade e abandono.

Antônio Maria, conhecido por suas composições que frequentemente exploram temas de amor e tristeza, utiliza uma linguagem simples e direta para expressar a dor da solidão. A repetição da palavra 'ninguém' enfatiza a ausência de pessoas que se importem com o eu lírico, criando uma atmosfera de desespero e desamparo. A imagem de um enterro sem saudade ou luto também reforça a ideia de que sua existência não tem impacto significativo na vida de outras pessoas.

A música também pode ser vista como uma crítica à superficialidade das relações humanas e à falta de empatia na sociedade. O eu lírico sente que suas ações e sua presença não são valorizadas, o que leva a uma reflexão sobre o sentido da vida e a importância de se sentir amado e lembrado. A canção, portanto, não é apenas um lamento pessoal, mas também um convite à introspecção sobre como tratamos e valorizamos as pessoas ao nosso redor.                              https://www.letras.mus.br/antonio-maria/282880/ 

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Daniel Maurício (Poética) 74

 

Lima Barreto (A chegada)

Quando o senador Bastos voltou de Poços de Caldas, onde esteve a espiar a maré dos acontecimentos e a ler pela décima segunda vez As democracias da América, de García Calderón — o evangelho da ditadura militar — e chegou à Cascadura, esperou que os seus amigos o fossem buscar acompanhados da banda de música da linha de tiro 69.

Tal, porém, não aconteceu e só o foi buscar o seu amado discípulo Anófeles que estudava com Sua Excelência, direito constitucional e a criação de galos de briga.

O senador disfarçou o aborrecimento e continuou a viagem olhando os subúrbios sem encanto, que a locomotiva atravessava.

Em dado momento, Anófeles, dirigiu a palavra ao mentor:

— Vossa Excelência certamente imaginava que outros admiradores o viessem buscar, não é verdade?

O discípulo sagaz dissera isto para realçar bem a sua dedicação ao antigo chefe poderoso.

Bastos empertigou-se melhor no banco e respondeu com aquela sua voz sacerdotal:

— Menino, quem é coerente com os princípios republicanos não se admira de levar coices.

Ele gostava muito dessas coisas de cavalos e sempre que podia fazia comparações e metáforas com os fatos que lhes dizem respeito.

— Como devemos entender esses princípios republicanos?

Bastos tossiu, acendeu o cigarro de palha mais uma vez e explicou:

— Primeiro: devemos entendê-los como sendo eu chefe absoluto do país, tal e qual o czar da Rússia; segundo: considerando que somos no Brasil um único povo, um estado tem o direito de reter cereais de que não precisa, para esfomear os outros; terceiro: para favorecer a liberdade, temos a obrigação de decretar um estado de sítio permanente; quarto (e este é o mais importante dos itens): as eleições ou a escolha dos representantes da nação não devem ser feitas pelo povo, mas por uma camarilha que vela como muezins na catedral gótica da República. Podia dizer mais; creio, porém, que isto basta.

O trem chegava à gare da Central e Bastos foi ultimar a sua toalete de desembarque. Quando voltou e olhou pela portinhola, viu que só o esperavam duas dúzias de correligionários.

Pode ainda dizer a Anófeles:

— Antes fosse como em Cartago, meu caro Anófeles. Lá, ao menos, se enforcavam os generais derrotados.

E não pôde olhar o céu, porque a abóbada de zinco da estação escondia-o dos seus olhos.

Fonte: Lima Barreto. Marginália.  Publicado originalmente em 1919. Disponível em Domínio Público.

Carolina Ramos, Princesa dos Trovadores (Trovas em preto e branco)

 


1
Alforriada, ela passa
gingando frente ao feitor
e o dengo de sua raça
faz dele escravo do amor!
2
Bendigo o dom da poesia:
- num mundo de tais perigos,
deu-me a serena alegria
de achar um mundo de amigos!
3
Como pode haver poesia
nos rumos da humanidade,
se tarda tanto esse dia
da paz ser PAZ de verdade?
4
Ele chega de mansinho,
velho cão ressabiado...
mas, se conquista um carinho,
nos dá carinho dobrado!
5
Filho, a montanha da vida,
escala devagarinho,
que há muita flor escondida
entre as pedras do caminho!
6
Há contraste em nossas vidas
mas, perfeito é o desempenho:
luz e sombra, quando unidas,
dão força e vida ao desenho…
7
Liberdade de calar
todos têm, mas, cuida, pois,
ser livre é poder falar
e seguir livre depois!
8
Mente com tal propriedade,
que ao mentir jamais hesita
e quando diz a verdade,
nem ele mesmo acredita.
9
Na vida, quanta maldade
não punida, se repete!
E, em nome da liberdade,
quantos crimes se comete!
10
O mundo é paisagem triste,
chora o rico e o pobre chora...
- Meu Deus, se a ventura existe,
onde será que ela mora?!
11
Pobre pássaro!... é de crer
que a prisão não mais suporta
- e vale a pena viver
se a liberdade está morta?!
12
Ser mau é fácil... insiste
em ser bom, sempre a lembrar:
- bondade, às vezes, consiste
em ver, ouvir... e calar!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
SOBRE AS TROVAS DE CAROLINA
por José Feldman

As trovas de Carolina Ramos mostram temas profundos como amor, liberdade, e a dualidade da vida. Cada uma revela questões sociais e emocionais que levam à reflexão. A seguir observações sobre elas:

Amor e escravidão: a primeira mostra como o amor pode transformar as relações, fazendo com que uma pessoa fique vulnerável ao outro. Essa dinâmica é comum em relacionamentos, onde um se torna "escravo" do sentimento.

Poesia e amizade: A segunda trova destaca a poesia como base de amizade e alegria em tempos difíceis. A arte serve como um escape e uma forma de conexão entre as pessoas.

Busca pela paz: A terceira é um tom de desespero na busca pela paz verdadeira, mostrando uma realidade onde a harmonia parece distante.

Carinho e afeto: Na quarta, o carinho é mostrado como um caminho para o afeto mútuo, mostrando a importância das relações humanas.

A vida como um caminho: A quinta destaca a importância de apreciar as pequenas coisas da vida. A jornada da vida, sugerindo que, apesar dos desafios (as "pedras"), sempre há beleza (as "flores") a ser descoberta.

Luz e sombra: A sexta é sobre a harmonia entre opostos. A luz e sombra não são opostos, mas complementos que dão vida e profundidade à experiência humana.

Liberdade de expressão: Na sétima Carolina discute a liberdade de expressão, lembrando que ser livre também implica responsabilidade nas palavras e ações.

A verdade e a mentira: A oitava mostra a complexidade da verdade e da mentira, revelando como as pessoas podem se perder em suas próprias narrativas.

Maldade e liberdade: A nona conecta a liberdade à repetição de injustiças.

Tristeza universal: A décima mostra a dor compartilhada entre diferentes classes sociais.

A nona e a décima abordam a dor e a injustiça no mundo, questionando a verdadeira natureza da felicidade em uma sociedade marcada por desigualdades.

Liberdade do ser: A décima primeira provoca uma reflexão sobre o valor da vida sem liberdade, um tema central em muitas discussões sobre direitos humanos.

Bondade silenciosa: A última sugere que a bondade pode ser sutil, destacando a importância de saber quando ouvir e quando falar, um aspecto muitas vezes negligenciado nas interações sociais.

Essas trovas são um convite à reflexão sobre a condição humana e as contradições da vida.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. vol.1. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Recordando Velhas Canções (Nega do cabelo duro)


(batucada/carnaval, 1942)

Compositores: David Nasser e Rubens Soares

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Ondulado, permanente
Teu cabelo é de sereia
E a pergunta sai da gente
Qual é o pente que te penteia, ô nêga?

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Quando tu entras na roda
O teu corpo bamboleia
Teu cabelo esta na moda
Qual é o pente que te penteia, ô nêga?

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Teu cabelo, a couve-flor
Tem um quê que me tonteia
Minha nêga, meu amor
Qual é o pente que te penteia, ô nêga?

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Mise en plis à ferro e fogo
Não desmancha nem na areia
Tomas banho em Botafogo
Qual é o pente que te penteia, ô nêga?

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
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A Celebração da Beleza Negra em 'Nega do Cabelo Duro'
A música 'Nega do Cabelo Duro', é uma celebração da beleza e da singularidade dos cabelos crespos e cacheados. A repetição da pergunta 'Qual é o pente que te penteia?' destaca a curiosidade e a admiração pela forma como a mulher negra cuida de seu cabelo, que é descrito de maneira poética e carinhosa ao longo da canção.

A letra faz uso de metáforas e comparações para exaltar a beleza natural dos cabelos crespos, como quando menciona que o cabelo é 'de sereia' ou 'a couve-flor'. Essas imagens reforçam a ideia de que o cabelo crespo é algo especial e digno de admiração. Além disso, a música também aborda a resistência e a durabilidade dos penteados, sugerindo que, mesmo em condições adversas, o cabelo permanece impecável, o que pode ser interpretado como uma metáfora para a resiliência da mulher negra.

Culturalmente, 'Nega do Cabelo Duro' reflete um período em que a música popular brasileira começava a reconhecer e valorizar a diversidade étnica e cultural do país. O grupo Anjos do Inferno, conhecido por seu estilo alegre e dançante, contribuiu para essa valorização através de suas canções. A música, portanto, não apenas celebra a beleza física, mas também a identidade e a cultura afro-brasileira, promovendo um senso de orgulho e pertencimento.

Apresentando semelhanças com a melodia do velho samba de Sinhô, "Não Quero Saber Mais Dela", a batucada "Nega do Cabelo Duro" foi um dos destaques do carnaval de 42, nas vozes dos Anjos do Inferno.

Numa época em que ninguém se preocupava em ser ou não ser politicamente correto, a composição satirizava o cabelo da personagem ("Nega do cabelo duro / qual é o pente que te penteia?...") e a moda feminina, então no auge, de frisar os cabelos ("Misampli a ferro e fogo / não desmancha nem na areia..."), a chamada ondulação permanente. Aliás, os temas capilares predominaram no carnaval de 42, pois, além de "Nega do Cabelo Duro", fizeram sucesso as marchinhas "Nós, os carecas" e "Nós os Cabeleiras".

Fontes:
A Canção no Tempo - Vol. 1 - Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello - Editora 34.

domingo, 18 de agosto de 2024

José Feldman (Versejando) 146

 

O. Henry (Dois Cavalheiros no Dia de Ação de Graças)

Há um dia que é nosso. Há um dia em que todos nós, americanos que não nos fizemos por conta própria, voltamos ao antigo lar para comer biscoitos caseiros e nos admirar de que a velha bomba pareça estar muito mais perto do alpendre do que outrora. Bendito seja esse dia. O Presidente Roosevelt no-lo deu. Já ouvimos falar nos puritanos, mas não lembramos exatamente quem fossem. De qualquer modo, aposto que poderemos vencê-los se tentarem desembarcar de novo. Plymouth Rocks? Bem, isso soa mais familiar. Muitos de nós tivemos de voltar aos frangos depois que o Truste do Peru entrou em campo. Mas alguém em Washington está-lhe passando informações adiantadas acerca desses decretos do Dia de Ação de Graças.

A grande cidade a leste dos pauis de uvas silvestres fez do Dia de Ação de Graças uma instituição. A última quinta-feira de novembro é o único dia do ano em que ela reconhece a parte da América situada para além da estação de barcos. Sim, é um dia de celebração exclusivamente americano.

Vamos agora à história que irá provar-vos que temos, neste lado de oceano, tradições que estão envelhecendo muito mais rapidamente do que as da Inglaterra — graças à nossa diligência e iniciativa.

Stuffy Peter tomou o seu lugar no terceiro banco à direita de quem entre na Union Square pelo lado leste, no passeio oposto à fonte. Todo Dia de Ação de Graças, havia já nove anos, sentava-se ele nesse banco, pontualmente, à 1 hora. Pois todas as vezes em que o fizera haviam-lhe acontecido coisas — coisas à maneira de Charles Dickens, que lhe enfunavam o colete à altura do coração, e do lado oposto também.

Mas a última aparição de Stuffy Peter no local anual de encontro parecia ter sido mais resultado de um hábito do que de uma fome anual que, conforme o pensamento aparente dos filantropos, aflige os pobres a tão dilatados intervalos.

É certo que Peter não estava faminto. Vinha de uma festa que, de suas faculdades corporais, deixara-lhe apenas as de respiração e locomoção. Seus filhos semelhavam duas pálidas groselhas firmemente embutidas numa máscara de poteia inchada e suja de molho. A respiração saía-lhe em curtos ofegos; uma senatorial papada de tecido adiposo negava-lhe base apropriada para a gola erguida do casaco. Botões que lhe tinham sido costurados à roupa por piedosos dedos do Exército da Salvação, havia uma semana, saltavam como pipocas, juncando a terra em derredor. Estava maltrapilho, com o peitilho da camisa rasgado de alto a baixo. Entretanto, a brisa de novembro, saturada de minúsculos flocos de neve, só lhe trazia uma grata frescura. Pois Stuffy Peter estava abarrotado de calorias produzidas por um jantar ultracopioso, iniciado com ostras e terminado por pudim de passas, incluindo (segundo lhe parecia) todos os perus assados, e batatas cozidas, e saladas de frango, e bolos de abóbora, e sorvetes do mundo. Dado o que, ele sentou-se repleto e contemplou o mundo com o olhar de desprezo de quem acaba de jantar regiamente.

A refeição fora inesperada. Passara diante de uma mansão de tijolos vermelhos, perto do início da Quinta Avenida, na qual viviam duas velhas senhoras, de famílía antiga e cultuadoras da tradição. Elas negavam mesmo a existência de Nova Iorque e acreditavam que o Dia de Ação de Graças fora promulgado apenas para a Washington Square, Um de seus hábitos tradicionais era o de postar um criado no portão dos fundos, com ordem de admitir o primeiro transeunte faminto que por ali passasse depois de soar meio-dia, e banqueteá-lo à farta. Acontecera isso a Stuffy Peter, no seu trajeto para o parque, e os senescais o agarraram para cumprir com o costume do castelo.

Depois de ter contemplado o panorama à sua frente durante dez minutos, Stuffy Peter tornou-se cônscio de um desejo de campo de visão mais variado. Com um esforço tremendo, moveu a cabeça lentamente para a esquerda. E então seus olhos se esbugalharam apavorados; parou de respirar, e as cambaias extremidades de suas pernas curtas mexeram-se, raspando o cascalho.

Porque o Velho Cavalheiro atravessava a Quarta Avenida em demanda do seu banco.

Todos os Dias de Ação de Graças, nos últimos nove anos, o Velho Cavalheiro aparecera e encontrara Stuffy Peter no seu banco. Era um encontro que o Velho Cavalheiro estava tentando converter em tradição. Todos os Dias de Ação de Graças, havia nove anos, ele encontrara Stuffy Peter ali, levara-o a um restaurante, e ficara a vê-lo comer um lauto jantar. Faziam tais coisas na Inglaterra inconscientemente. Mas este é um país jovem, e nove anos não são tão pouco. O velho Cavalheiro era um fervoroso patriota americano, e considerava-se pioneiro no tocante às tradições americanas. Para nos tornarmos pitorescos, cumpre-nos dizer a mesma coisa durante longo tempo, sem desfalecimentos. Coisas assim como colecionar folhetos semanais sobre segurança industrial. Ou limpar as ruas.

O Velho Cavalheiro encaminhou-se, teso e solene, para a Instituição que estava apadrinhando. É bem verdade que o sentimento anual de Stuffy Peter não tinha nenhum caráter nacional, como o têm, na Inglaterra, a Magna Carta ou o presunto do desjejum. Mas era um passo. Era quase feudal. Mostrava, pelo menos, que um Costume não era impossível em Nova lor...hm, quero dizer... na América.

O Velho Cavalheiro era magro, alto e sexagenário. Estava todo vestido de preto, e usava óculos de modelo antiquado, daqueles que vivem a escorregar do nariz. Seu cabelo mostrava-se mais alvo e mais ralo do que no ano anterior, e ele parecia apoiar-se mais na sua longa bengala retorcida, de grande castão nodoso.

À medida que seu benfeitor oficial avançava, Stuffy arquejava e tremia como o obeso cãozinho fraldeiro de uma senhora quando um vira-lata rosna para ele. Teria voado dali, mas nem toda a habilidade de Santos Dumont o conseguiria arrancar do banco. Os fâmulos das duas velhas damas haviam feito um bom trabalho.

— Bom dia — disse o Velho Cavalheiro. — Estou contente de ver que as vicissitudes de outro ano o pouparam, permitindo-lhe que se movimentasse, em perfeita saúde, por este belo mundo. Por tal bênção o Dia de Ação de Graças se faz bem anunciar a nós ambos. Se vier comigo, meu bom homem, eu lhe propiciarei um jantar que fará com que o seu ser físico se harmonize com o mental.

Todas as vezes o Velho Cavalheiro dizia as mesmas palavras. Todos os Dias de Ação de Graças, durante nove anos. As próprias palavras quase se constituíam numa instituição. Nada se lhes podia comparar, salvo a Declaração da Independência. Nas ocasiões anteriores, tinham sido música para os ouvidos de Stuffy. Mas agora ele olhava para o rosto do velho Cavalheiro com expressão de lancinante agonia. A neve fina quase chiava quando lhe tocava a fronte suada. Mas o Velho Cavalheiro teve um ligeiro tremor e voltou as costas ao vento.

Stuffy sempre conjecturara por que razão o Velho Cavalheiro recitava a sua fala em tom tristonho. Não sabia que era porque desejava, todas as vezes, que um filho o sucedesse. Um filho que ali viesse depois que ele se fosse; um filho que se postasse, orgulhoso e forte, diante de algum futuro Stuffy e lhe dissesse: "Em memória do meu pai". Então sim, a coisa seria uma Instituição.

Mas o Velho Cavalheiro não tinha parentes. Vivia em quartos alugados, numa velha e decadente mansão familiar de grés pardo, situada numa das ruas tranquilas a leste do parque. No inverno, plantava fucsias numa pequena estufa do tamanho de uma claraboia de navio. Na primavera, desfilava na parada de Páscoa. No verão, vivia numa casa de fazenda, nas colinas de New Jersey, e, sentado numa poltrona de vime, falava de uma borboleta, a ornithoptera amphrisíus, que esperava encontrar algum dia. No outono, patrocinava um jantar para Stuffy. Essas eram as ocupações do Velho Cavalheiro.

Stuffy Peter contemplou-o durante meio minuto, apoquentado e inerme na sua comiseração por si mesmo. Os olhos do Velho Cavalheiro reluziam do prazer de dar. Sua face se ia tornando mais enrugada a cada ano,  mas o laço de sua gravatinha negra continuava elegante como sempre, sua camisa era alva e bonita, e seu bigode encanecido tinha as pontas airosamente reviradas. Stuffy produziu um ruído semelhante ao de ervilhas borborejando numa panela. Estava tentando falar. Como o Velho Cavalheiro ouvira os sons nove vezes antes, imediatamente interpretou-os como a velha fórmula de aceitação de Stuffy:

— Muito obrigado, patrão, Vou sim, e muito obrigado. Estou com muita fome, patrão.

O coma da repleção (saturação) não impedira que penetrasse a mente de Stuffy a convicção de que era a base de uma instituição. Seu apetite do Dia de Ação de Graças não lhe pertencia; pertencia, por todos os sagrados direitos do costume estabelecido, se não pelo atual Estado de Prescrições, àquele bondoso ancião, que o obtivera por direito de precedência. Na verdade, a América é livre, mas para findar a tradição alguém tem de ser estribilho — uma decimal periódica. Os heróis não são todos de aço e ouro. Eis aqui um que empunha apenas armas de ferro, tenuemente niqueladas, e de latão. 

O Velho Cavalheiro levou o seu protegido anual ao restaurante, até a mesa onde o festim sempre ocorrera. Foram reconhecidos.

— Aí vem o velhote — disse um garçom — que paga um almoço para o mesmo vagabundo, todo Dia de Ação de Graças.

O Velho Cavalheiro sentou-se à mesa, fulgindo como uma pérola esfumaçada na sua pedra fundamental de futura antiga Tradição. Os garçons abarrotaram a mesa de comida dominical — e Stuffy, com um suspiro que foi erroneamente tomado como expressão de fome, ergueu faca e garfo e conquistou para si uma coroa de imperecível louro.

Nenhum herói jamais abriu caminho tão denodadamente por entre as fileiras inimigas. Peru, postas de carne, sopas, legumes, bolos desapareceram tão depressa quanto lhe foram servidos. Repleto até os gorgomilos quando adentrara o restaurante, o odor de comida quase o fizera perder sua honra de cavalheiro, mas ele se reanimara, como bravo cavaleiro que era. Viu a expressão de felicidade beneficente no rosto do Velho Cavalheiro (uma expressão mais feliz do que a que as fücsias e aornithoptera amphrisius jamais lhe poderiam trazer) e não tivera coragem de vê-la empalidecer.

Ao cabo de uma hora, Stuffy recostou-se na cadeira com a batalha ganha.

— Muitíssimo obrigado, patrão — bufou, como um cano de vapor furado —, muitíssimo obrigado pelo ótimo almoço.

Ergueu-se então pesadamente, com os olhos vidrados, e dirigiu-se para a cozinha. Um garçom fê-lo girar como pião, e o pôs a caminho da porta. O Velho Cavalheiro contou cuidadosamente um dólar e trinta em moedas de prata, deixando três níqueis de gorjeta para o garçom.

Separaram-se, como todos os anos, à porta: o Velho Cavalheiro foi para baixo, Stuffy para cima.

Stuffy virou a primeira esquina e ficou imóvel durante um instante. Depois, pareceu enfunar seus trapos como uma coruja enfuna as penas, e desabou na calçada como um cavalo atacado de insolação.

Quando veio a ambulância, o jovem cirurgião e o condutor praguejaram em voz baixa diante do seu peso. Não havia cheiro de uísque que justificasse a transferência para o carro de presos, dado o que Stuffy e seus dois almoços foram para o hospital. Ali o estenderam numa cama e começaram a fazer-lhes exames em busca de doenças fora do comum, na esperança de poderem usar o bisturi para a solução de algum problema.

E, ai! Uma hora mais tarde outra ambulância trouxe o Velho Cavalheiro. Deitaram-no noutra cama e começaram a falar de apendicite, pois o paciente parecia estar em condições de pagar a conta da operação.

Mas logo depois um dos jovens doutores encontrou-se com uma das jovens enfermeiras de cujos olhos gostava, e deteve-se para prosear com ela sobre os casos.

— Aquele simpático e idoso cavalheiro ali, está vendo? — disse. Imaginaria você que é um caso de inanição, quase? Família antiga e orgulhosa, acho. Contou-me que não comia nada há mais de três dias.

Fonte> O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público.

Dissecando a Magia dos Textos (“Maria e Maria”, de Sinclair Pozza Casemiro)

Conto publicado neste blog em 22 de julho de 2020, no link 

RESUMO

Caminhoneiro Feliz
Tião, um caminhoneiro feliz, vive com suas duas Marias: a esposa e a filhinha. Apesar das dificuldades, ele se considera afortunado por ter um caminhão e uma família amorosa. As Marias são seu maior tesouro, e juntos enfrentam os desafios da vida.


A Vida na Estrada
A rotina de Tião é marcada por viagens e o convívio com os amigos. Maria, sempre rindo, cuida da casa e da filha, transformando a boleia do caminhão em lar. A amizade e o chimarrão são essenciais em sua vida simples.

Mudança e Mistério
A chegada de novos vizinhos traz mudanças. A história de um rancho amaldiçoado, onde uma mulher foi assassinada, assombra a vizinhança. Tião, cético, ignora os avisos, mas Maria começa a mudar, perdendo a alegria.

Tragédia e Consequências
A tensão aumenta quando Tião descobre a infidelidade de Maria, resultando em tragédia. Ele volta para casa e, em um momento de desespero, confronta a realidade devastadora. A dor da perda transforma sua vida para sempre.

ANÁLISE

Amor e Perda
A narrativa explora os laços familiares e a fragilidade do amor. Tião, inicialmente contente, enfrenta a desilusão e a tragédia.

Cultura e Vida Rural
A história retrata a vida rural no Brasil, com suas tradições, desafios e a luta diária por sobrevivência.

Mistério e Sobrenatural
Elementos do sobrenatural permeiam a narrativa, refletindo as crenças populares sobre lugares amaldiçoados e o impacto do passado nas vidas presentes.

PERSONAGENS PRINCIPAIS

Tião
Um caminhoneiro otimista e trabalhador, que valoriza sua família acima de tudo. Sua alegria é contagiante, mas ele se torna vulnerável às circunstâncias e à traição.

Maria (esposa)
Uma mulher forte e amorosa, que enfrenta as adversidades com graça. Sua risada é um símbolo de esperança, mas sua mudança de comportamento reflete a tensão crescente em sua vida.

Maria (filha)
A criança que representa a inocência e a alegria da família. Sua presença traz luz aos dias de Tião, mas sua tragédia acentua a dor do pai.

TEMAS CENTRAIS

Amor e Compromisso
A história examina como o amor pode ser testado e como os compromissos podem ser rompidos. Tião e Maria compartilham um laço profundo, mas as dificuldades e a traição geram uma fissura irreparável.

Superstição e Folclore
A presença do rancho amaldiçoado e as histórias locais refletem as crenças populares sobre o sobrenatural. Esses elementos criam uma atmosfera de mistério e tensão, influenciando as ações dos personagens.

A Vida Rural
O cotidiano de Tião e sua família é retratado com riqueza de detalhes, mostrando as dificuldades enfrentadas por quem vive no campo. As interações sociais, o trabalho duro e a simplicidade da vida rural são centrais para a narrativa.

DESENVOLVIMENTO DA TRAMA

A Rotina de Tião
Tião e suas Marias desfrutam de momentos simples, como passeios no caminhão e encontros com amigos. Essa felicidade inicial estabelece um contraste com os eventos futuros.

Chegada dos Novos Vizinhos
A mudança traz novos personagens e provoca rumores sobre o passado do rancho. A curiosidade e o medo começam a afetar a dinâmica da vizinhança.

Desvio de Comportamento
A transformação de Maria, que passa a demonstrar tristeza e desinteresse, gera preocupação em Tião e começa a criar uma fissura na relação.

A Tragédia
O clímax ocorre quando Tião descobre a traição. A cena final, marcada pela violência e perda, resulta em um desfecho trágico que ecoa os temas de desilusão e arrependimento.

FOLCLORE

Na narrativa de "Maria e Maria", vários elementos de folclore são destacados, criando uma atmosfera rica e carregada de simbolismo.

1. A Maldição do Rancho
A história sobre o rancho amaldiçoado, onde uma mulher foi assassinada, reflete crenças populares sobre lugares assombrados. Essa narrativa é central para a tensão da história, trazendo um senso de mistério e medo.

2. Lendas Locais
O passado trágico da mulher assassinada e o choro do bebê perdido são elementos que evocam lendas locais, conectando a comunidade a um passado sombrio e a histórias que circulam entre os moradores.

3. Superstições
A ideia de que tragédias atraem mais tragédias, como mencionado pelo amigo de Tião, demonstra a crença popular de que certas situações podem ser "amaldiçoadas" ou trazer má sorte.

4. Chimarrão e Tradições Regionais
O ato de compartilhar chimarrão entre amigos é uma prática cultural que simboliza união e acolhimento, ressaltando as tradições e a convivência social da comunidade.

5. Crenças sobre o Sobrenatural
Os personagens discutem fenômenos sobrenaturais, como a aparição da mulher que busca seu filho, mostrando como o sobrenatural permeia a vida cotidiana e afeta as emoções dos personagens.

Esses elementos folclóricos não apenas enriquecem a narrativa, mas também refletem a cultura e as crenças da comunidade, conectando os personagens a uma tradição mais ampla que molda suas vidas e interações.

Os elementos de folclore em "Maria e Maria" têm um impacto significativo na identidade cultural da comunidade de várias maneiras:

1. Preservação da História Coletiva
As lendas e histórias, como a do rancho amaldiçoado, ajudam a preservar a memória coletiva da comunidade. Elas conectam as gerações passadas às presentes, criando um senso de continuidade e identidade.

2. Construção de Valores e Crenças
As superstições e crenças locais moldam a forma como os moradores enxergam o mundo. Tais crenças influenciam decisões, comportamentos e interações sociais, promovendo uma cultura de precaução e respeito às tradições.

3. Fortalecimento dos Laços Comunitários
Práticas culturais, como o compartilhamento de chimarrão, reforçam laços sociais e criam um sentido de pertencimento. Esses momentos de convivência fortalecem a identidade da comunidade, promovendo solidariedade e apoio mútuo.

4. Reflexão sobre Medos e Desafios
As histórias de horror e mistério, como a do rancho, permitem que a comunidade explore e expresse medos coletivos. Isso ajuda a criar um espaço seguro para discutir problemas e desafios sociais, refletindo a resiliência da comunidade.

5. Identidade Regional
Os elementos folclóricos, incluindo costumes e lendas, contribuem para uma identidade regional única. Eles diferenciam a comunidade de outras, celebrando suas particularidades e características.

6. Relação com a Natureza
Muitas histórias e crenças estão intrinsicamente ligadas à natureza e ao ambiente local, promovendo um respeito profundo pelo espaço que habitam e enfatizando a interdependência entre as pessoas e seu entorno.

Esses aspectos não apenas moldam a vida cotidiana, mas também ajudam a construir uma base sólida para a identidade cultural da comunidade, promovendo um sentimento de união e continuidade frente aos desafios da vida moderna.

CONCLUSÃO

A obra de Sinclair Pozza Casemiro nos convida a refletir sobre a complexidade das relações humanas, a luta pela felicidade e as consequências de nossas escolhas. A jornada de Tião é um lembrete de que a vida pode mudar rapidamente, e que o amor, embora forte, pode ser quebrado por desilusões.

"Maria e Maria" é uma história que capta a essência da vida rural, explorando a complexidade das emoções humanas. Sinclair Pozza Casemiro nos lembra que a felicidade é efêmera e que os laços familiares podem ser tanto fonte de alegria quanto de dor. Essa dualidade, entre amor e tragédia, ressoa profundamente, tornando a narrativa uma reflexão poderosa sobre as relações e suas consequências.

Fonte: José Feldman. Dissecando a magia dos textos: Contos e Crônicas. Maringá/PR. IA Open.
 Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Recordando Velhas Canções (Nada além)

 

(Fox, 1934)

Compositores: Mário Lago e Custódio Mesquita

Nada além
Nada além de uma ilusão
Veja bem
É demais para o meu coração
Acreditando em tudo que o amor
Mentindo sempre diz
Eu vou vivendo assim feliz
Na ilusão de ser feliz
Se o amor
Só nos causa sofrimento e dor
É melhor, bem melhor
A ilusão do amor
Eu não quero e nem peço
Para o meu coração
Nada além
De uma linda ilusão…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Doce Ilusão do Amor em 'Nada Além'

A música 'Nada Além', é uma reflexão melancólica sobre o amor e suas desilusões. A letra aborda a ideia de que o amor, muitas vezes, traz mais sofrimento e dor do que felicidade. O eu lírico, ciente das mentiras e enganos que o amor pode trazer, prefere viver na ilusão de ser feliz, ao invés de enfrentar a dura realidade. Essa escolha pela ilusão é uma forma de proteção emocional, uma maneira de evitar o sofrimento que o amor verdadeiro pode causar.

Orlando Silva, conhecido como o 'Cantor das Multidões', foi um dos maiores intérpretes da música popular brasileira nas décadas de 1930 e 1940. Sua voz marcante e interpretação emotiva conferem à canção uma profundidade ainda maior. A letra de 'Nada Além' é simples, mas carregada de significado, refletindo uma visão cínica e resignada do amor. A repetição da palavra 'ilusão' reforça a ideia de que, para o eu lírico, a felicidade verdadeira é inatingível, e a única forma de ser feliz é através de uma ilusão.

A música também pode ser vista como uma crítica à idealização do amor romântico. Ao afirmar que 'é melhor, bem melhor a ilusão do amor', o eu lírico sugere que a busca por um amor perfeito é fútil e que aceitar a ilusão pode ser uma forma mais realista de lidar com os sentimentos. A melodia suave e a interpretação emotiva de Orlando Silva complementam a letra, criando uma atmosfera de resignação e melancolia que ressoa profundamente com o ouvinte.

No dia 09 de julho de 1937, estreava no Teatro Recreio, no Rio de Janeiro, a revista Rumo ao Catete, título que aludia a uma eleição presidencial que Getúlio não deixou acontecer. Além de um elenco de primeira - Araci Cortes, Oscarito, Eva Tudor -, a peça tinha libreto e direção musical de dois grandes compositores, Custódio Mesquita e Mário Lago. Reunindo todos esses valores, "Rumo ao Catete" foi um sucesso, com mais de 300 representações e, de quebra, ainda enriqueceu a música popular com duas belas composições, o fox "Nada Além" e a valsa "Enquanto houver saudade".

Maior sucesso da dupla Lago-Mesquita, "Nada Além" era motivo na peça de um quadro cômico-romântico: um homem de aparência simplória examinava, à porta de uma loja, várias mercadorias que lhe oferecia um vendedor. Vendo que o suposto freguês não se decidia, o vendedor o interpelava: "Afinal, o que deseja o cavalheiro?" ao que o sujeito respondia, cantando: "Nada além, nada além de uma ilusão...".

Apesar de aprovarem a interpretação operística dada no palco pelo tenor Armando Nascimento, os autores achavam que as canções se adaptavam melhor a uma voz popular, como a de Orlando Silva, à época no auge da fama. Então Custódio, sempre vaidoso, usou de um expediente para induzi-lo a gravá-las, sem correr o risco de uma rejeição, convidando-o a assistir a peça. E deu certo, pois ao final da sessão o cantor, entusiasmado, exigiu: "Custódio, me dá agora mesmo as partes de piano dessas músicas que eu quero gravá-las, o mais rápido possível". E assim o fez no início de 38.

sábado, 17 de agosto de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “22”

 

Leon Tolstói (O gatinho)

(fábula)

Era uma vez um irmão e uma irmã − Vássia e Kátia. Eles tinham uma gata. Na primavera, a gata sumiu. As crianças procuraram por todo canto, mas não conseguiram achar. Um dia, estavam brincando ao lado do celeiro e ouviram, lá em cima, alguma coisa miando com vozes finas. Vássia subiu correndo a escada para o forro do celeiro. Kátia ficou embaixo e toda hora perguntava: “Achou? Achou?” 

Mas Vássia não respondia. Afinal, Vássia gritou:

− Achei! A nossa gata… e ela teve gatinhos; são lindos; venha cá, depressa.

Kátia foi para casa correndo, pegou leite e levou para a gata. Os filhotes eram cinco. Quando cresceram um pouco e começaram a sair do cantinho onde nasceram, as crianças escolheram para elas um gatinho cinzento de patas brancas e levaram para casa. A mãe deu todos os outros gatos, mas aquele ficou para os filhos. As crianças lhe davam comida, brincavam com ele e dormiam junto com o gatinho.

Um dia as crianças foram brincar na estrada e levaram o gatinho.

O vento remexia a palha na estrada, o gatinho brincava com a palha e aquilo divertia as crianças. Depois viram no caminho umas folhas de azedinha, foram colher e esqueceram o gato. De repente ouviram alguém gritar bem alto:

− Para trás! Para trás!

E viram um caçador vir correndo e, na frente dele, dois cachorros que olhavam para o gatinho e queriam agarrá-lo. Mas o gatinho era bobo e, em vez de fugir, se agachou no chão, arqueou as costas e olhou para os cachorros. 

Kátia ficou assustada com os cachorros, começou a gritar e fugiu para longe deles. Mas Vássia foi correndo na direção do gato e o pegou na mesma hora em que os cachorros pularam na direção dele. 

Os cachorros queriam agarrar o gatinho, mas Vássia pulou de barriga em cima do gato e o escondeu dos cachorros.

O caçador chegou a galope e enxotou os cachorros; Vássia levou o gatinho para casa e nunca mais saiu com ele para o campo.

Fonte: Liev Tolstói. Livros de leitura para crianças. Publicado originalmente em 1864.  Disponível em Domínio Público