segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Arthur Thomaz (O cofre)

Imigrante, fugindo dos horrores da Segunda Guerra Mundial, juntou suas poucas economias e embarcou em um navio com destino ao Brasil. No convés da embarcação escutou conversas em que as pessoas exaltavam o valor de terras em um estado denominado Santa Catarina. Terras férteis e já ocupadas em grande parte por milhares de imigrantes de variadas nacionalidades.

Na viagem conheceu um distinto senhor brasileiro, que lhe contou algumas particularidades do seu povo e ainda trocou suas liras por dinheiro do Brasil.

Desembarcou, tendo o cuidado de esconder seu dinheiro nas meias, conforme aprendera com sua finada mãe.

Em uma banca de jornais, no cais, comprou um mapa da Revista Quatro Rodas. Foi a um albergue, onde pernoitou, e pela manhã, durante o café, estendeu o mapa do estado sobre a mesa, e com olhos fechados, colocou o dedo sobre ele.

Selecionou assim, ao acaso, a cidade onde iria estabelecer-se.

Na rodoviária, tomou o ônibus com destino à tal cidade.

Lá chegando, perambulou pela rua do comércio, por horas, até ouvir uma pessoa falando seu idioma.

Iniciou uma longa conversação com o novo amigo.

Orientado por ele, foi visitar as terras que almejava comprar para explorá-las na agricultura.

Com preços muito altos para suas economias, acabou encontrando uma propriedade no sopé de uma serra, onde fazia muito frio, com episódios de fortes geadas, e que era mais barata por esses fatores.

Acostumado aos rigores do inverno europeu, encantou-se pelo local, e no cartório da cidade, realizou a transferência da propriedade para o seu nome.

Com o restante das economias, comprou as ferramentas, insumos, defensivos agrícolas, mudas e sementes.

Na rústica casinha que havia na propriedade, realizou alguns reparos necessários para poder morar.

Após alguns meses de árduo trabalho, no qual empregou-se com afinco, chegando às vezes a ter as mãos sangrando, começou a colher algumas hortaliças, raízes e frutos.

Foi a pé empurrando um pequeno carrinho de mão, vendê-las no Mercado Municipal. 

Com esse dinheiro comprou uma pequena carroça e um burrinho para puxá-la.

Adquiriu mais insumos, mudas e sementes.

Iniciou a plantação de nova safra de produtos.

Algum tempo decorrido nessa faina diária, arrecadou uma quantia suficiente para comprar a propriedade vizinha e contratar uns empregados para ajudá-lo.

Passados alguns anos, já era considerado um grande produtor rural na região.

Contratou pedreiros e construiu uma casa sede da fazenda.

Sozinho, edificou um porão, com entrada oculta, para guardar, secretamente, dinheiro, documentos e pertences particulares.

Com o aprendizado da língua portuguesa, passou a frequentar o CTG (Centro de Tradições Gaúchas) da cidade, onde conheceu uma jovem descendente de europeus. Casaram-se e dessa união nasceram dois filhos, que em pouco tempo também ajudavam na lida das propriedades.

Não contou sobre o porão nem para a esposa, indo a noite arrumar o aposento e guardar o dinheiro em uma gaveta de uma estante.

Fiodor, por não confiar em instituições bancárias, mandou importar um enorme cofre e cimentou-o no solo do secreto porão. Memorizou, sozinho, o segredo, garantindo assim, ter somente ele, o acesso.

E nele armazenava todo o lucro da propriedade, realizando todos os pagamentos em espécie.

Uma vez por semestre ia até a capital do estado e em uma loja de câmbio, trocava suas economias por moedas estrangeiras, acumulando, assim, uma pequena fortuna, que guardava, zelosamente, no cofre.

Depois de seu falecimento, os laboriosos filhos, desconhecendo a existência do cofre, continuaram a vida na fazenda. Passaram a utilizar agências bancárias para transações financeiras. Expandiram os negócios, amealhando muito dinheiro e comprando mais terras vizinhas. 

Casaram-se e também tiveram filhos que mantiveram a tradição rural da família.

Já os membros da quarta geração, Giuseppe e primos, eram um pouco menos dedicados ao trabalho nas fazendas, acostumados às polpudas mesadas. Preferiam simular estar estudando em busca de diplomas do que a faina diária na lavoura. Moravam fora do Estado, vindo somente nas férias para visitar os parentes.

Em uma dessas férias, Giuseppe, um pouco mais curioso que os outros, resolveu explorar o antigo e enorme casarão sede das propriedades. Observou um som diferente no contato do taco de suas botas com o assoalho. Com a picareta, abriu um buraco e surpreendeu-se ao encontrar um aposento. 

Com a ajuda dos primos, alargaram a passagem e desceram com o auxílio de uma escada de madeira.

Depararam-se, surpresos, com o enorme cofre.

Entreolharam-se, já imaginando o que fazer com a possível quantia em dinheiro que poderia haver lá dentro. 

Tentaram, por muito tempo, diversas maneiras de abri-lo. Iniciaram por aleatórios números encontrar o segredo.

Depois, com o auxílio de um estetoscópio, procurando imitar o que assistiram nos filmes.

Mesmo relutantes em expor o achado a estranhos, apelaram a um chaveiro, que inutilmente tentou, por horas, abri-lo.

Já impacientes, dinamitaram o objeto, sem sucesso.

Recorreram até a um vidente e a um pai de santo, para entrar em contato com o espírito de Fiodor, em vão.

Após meses de vãs tentativas, com muito dinheiro gasto, reuniram-se e resolveram enterrá-lo e esquecer a existência desse estorvo.

Desdenharam a possibilidade do cofre conter algo interessante economicamente. Não contaram esse fato nem aos descendentes, a fim de que caísse no esquecimento para toda a eternidade.

O que nenhum deles reparou, foi em um quadro na parede do aposento, emoldurando um antigo mapa do Estado de Santa Catarina, no qual havia uma sequência de números escritos em volta do nome da cidade.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: insondáveis. 1. ed. Santos/SP: Bueno Editora, 2024. Enviado pelo autor 

domingo, 8 de setembro de 2024

José Feldman (Versejando) 148

 

Filemon Francisco Martins (Trovas em preto e branco)


1
A felicidade é um sonho,
- por que deixar pra depois?
O amor é sempre risonho
na vida vivida a dois.
2
Cai a chuva na vidraça
e eu fico triste, porquê
não há beleza, nem graça,
nesta casa sem você.
3
Criança és flor, és bonança
espargindo luz e amor,
porque trazes a esperança
de um futuro promissor.
4
“Das coisas belas da vida”
que colhi, em profusão,
eis a mais nobre e querida:
em cada TROVA um irmão!
5
Falando de amor, Maria,
que saudades sinto agora
daquela doce alegria
que em teus olhos vi outrora.
6
Gosto da vida pacata,
homens simples dos sertões,
pois vejo usando gravata
por aqui muitos ladrões.
7
Nenhum poema é mais belo
e inspira tanta esperança
do que um sorriso singelo
no rosto de uma criança.
8
No meu balaio carrego
sonhos de amor e venturas,
mas muitos sonhos, não nego,
se tornaram desventuras.
9
Quantas noites, meu amor,
olhando, no céu, a lua,
eu me sinto um trovador
pensando na imagem tua.
10
Que o teu futuro, criança,
seja de luz e esplendor,
vislumbre de confiança
no mundo do desamor.
11
“Sorriria de feliz”
e o mundo teria paz,
se o coração que maldiz
soubesse perdoar mais.
12
Tenho certeza que a trova
– poema feito de amor -
é um sonho que se renova
na vida de um trovador.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = 

AS TROVAS DE FILEMON MARTINS EM PRETO E BRANCO
por José Feldman

As trovas de Filemon Martins são belas expressões de sentimentos profundos e reflexões sobre a vida, o amor e a inocência. Cada uma delas traz um toque de sabedoria e carinho, capturando emoções que ressoam com muitos de nós.

AS TROVAS UMA A UMA

1. A felicidade é um sonho
A felicidade é apresentada como um ideal, um sonho que deve ser buscado. O amor, descrito como "risonho", indica que a partilha da vida a dois é fundamental para a realização desse sonho.

2. Cai a chuva na vidraça
A chuva simboliza tristeza e melancolia. A casa "sem você" representa a ausência de um amor, enfatizando que a beleza da vida está intrinsecamente ligada à presença do outro.

3. Criança és flor, és bonança
A comparação da criança a uma flor expressa a fragilidade e beleza da infância. A criança é vista como portadora de esperança, sugerindo que o futuro pode ser iluminado pela inocência.

4. “Das coisas belas da vida”
A valorização das conexões interpessoais é central. A frase "em cada TROVA um irmão" indica que a arte e a poesia podem unir as pessoas, criando laços de fraternidade.

5. Falando de amor, Maria
A menção a Maria e a "doce alegria" expressa uma nostalgia profunda. A lembrança dos olhos do amado sugere que o amor deixa marcas duradouras na memória.

6. Gosto da vida pacata
A preferência pela vida simples contrasta com a corrupção e desonestidade, simbolizadas pelos "homens usando gravata". Há uma crítica à superficialidade e à hipocrisia da sociedade.

7. Nenhum poema é mais belo
O sorriso de uma criança é exaltado como a mais pura forma de beleza. Essa simplicidade é um reflexo da esperança e da pureza que ainda existem no mundo.

8. No meu balaio carrego
A imagem do "balaio" representa a carga emocional que o eu lírico carrega. A dualidade entre sonhos e desventuras reflete a realidade de que nem todos os desejos se concretizam.

9. Quantas noites, meu amor
A lua simboliza a inspiração e a contemplação noturna, reforçando a ideia de que a distância do amor provoca reflexão e saudade.

10. Que o teu futuro, criança
Um desejo sincero para que as crianças tenham um futuro brilhante, mesmo diante das adversidades. O "mundo do desamor" sugere um ambiente difícil, mas a confiança é uma luz a ser cultivada.

11. “Sorriria de feliz”
O perdão é apresentado como uma solução para a maldade e a discórdia. A ideia de que um coração que perdoa poderia trazer paz ao mundo é um forte apelo à empatia e compreensão.

12. Tenho certeza que a trova
A trova é vista como uma forma de arte que renova sentimentos e experiências. É um testemunho do poder da poesia em refletir o amor e as vivências humanas.

TEMAS ABORDADOS PELAS TROVAS DE FILEMON E SUA SIMILARIDADE COM POETAS DE DIVERSAS ÉPOCAS

1. Felicidade e Amor
A busca pela felicidade é um tema universal. Filemon sugere que o amor é a chave para essa felicidade, refletindo a visão romântica de que a união entre duas pessoas é essencial para a realização pessoal. Poetas como Pablo Neruda e Vinicius de Moraes também exploraram essa conexão, enfatizando a intensidade e a beleza do amor. Para Neruda, o amor é um ato de resistência, uma força que nos conecta profundamente com o outro e com nós mesmos.

2. Solidão e Ausência
A tristeza provocada pela ausência de um amor é um sentimento profundo e recorrente na poesia. Filemon expressa essa dor de forma sensível, semelhante ao que Fernando Pessoa fez com sua famosa saudade, mostrando como a ausência pode modificar a percepção do mundo.

3. Inocência e Esperança
A criança como símbolo de esperança remete a uma visão otimista da vida. Cecília Meireles capturou essa essência, ressaltando a beleza da infância e a pureza dos sentimentos, mostrando que a inocência é uma forma de resistência ao desespero do mundo. A infância e a inocência trazem esperança em meio à tristeza. As crianças são flores que brotam em nossos corações.

4. Relações Humanas
O trovador valoriza as conexões humanas, refletindo uma visão de comunidade e amor fraternal. Esse tema é também central na obra de Adélia Prado, que muitas vezes fala sobre as relações interpessoais e a importância do afeto na vida cotidiana, nas relações simples que encontramos a verdadeira beleza. A vida cotidiana é repleta de amor fraternal.

5. Saudade
A saudade é uma emoção complexa, que mistura nostalgia e amor. Carlos Drummond de Andrade explorou essa sensação, mostrando como as memórias moldam nosso presente e futuro, a hipocrisia da sociedade nos rodeia. Precisamos valorizar a autenticidade e a verdade, mesmo que isso nos leve a desilusões.

6. Simplicidade e Crítica Social
A crítica à superficialidade e à desonestidade é um tema pertinente em várias obras. Machado de Assis também abordou a hipocrisia social, mostrando que a verdadeira riqueza está na simplicidade e na honestidade.

7. Inocência e Beleza
Filemon destaca a beleza do sorriso infantil, um tema que ressoa com a obra de Manuel Bandeira, que também cultivou a ideia de que a simplicidade e a pureza são fontes de verdadeira beleza, a simplicidade do sorriso infantil é um lembrete de que a beleza reside nas pequenas coisas, mesmo em tempos difíceis.

8. Sonhos e Desilusões
A dualidade entre sonhos realizados e desilusões é uma reflexão sobre a vida humana. Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, também lidou com essa questão, abordando a relação entre aspirações e a dura realidade. 

9. Romantismo
O romantismo é uma constante na poesia, e a contemplação da lua é uma imagem clássica que evoca emoções profundas. Lord Byron e Mary Shelley usaram a natureza para expressar sentimentos amorosos e melancólicos.

10. Esperança e Confiança
O desejo de um futuro promissor para as crianças é um apelo à esperança em tempos difíceis. Poetas contemporâneos, como Martha Medeiros, também enfatizam a importância de cultivar a esperança em meio às adversidades, o futuro das crianças está entrelaçado com a luz que conseguimos cultivar hoje.

11. Perdão e Paz
O perdão como caminho para a paz é um conceito fundamental em muitas tradições literárias. Guilherme de Almeida e outros poetas enfatizaram a importância do perdão como um ato de amor e compreensão, somente assim podemos alcançar a paz que tanto desejamos.

12. Poesia e Renovação
A ideia de que a poesia renova sentimentos é uma reflexão sobre o poder da arte. Rainer Maria Rilke analisou a transformação que a poesia pode trazer à vida e às emoções humanas, pois a poesia é o caminho. Ela nos renova, transforma nossas dores e alegrias em algo eterno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

As trovas acima expostas são um bordado de emoções, reflexões e críticas sociais. Elas abordam a complexidade das relações humanas, a busca pela felicidade, a importância da inocência e a necessidade de esperança e perdão.

Filemon Martins, através de suas trovas, oferece uma visão profunda e sensível da vida. Seus versos são um convite à reflexão, à busca de conexões autênticas e à valorização das emoções que nos tornam humanos. Ao explorar a complexidade dos sentimentos e das relações, ele deixa um legado atemporal que continua a ressoar, inspirando novas gerações a encontrar beleza e significado em suas próprias experiências. Não apenas torna suas mensagens mais acessíveis, mas também intensifica o impacto emocional de seus versos.

Os versos contidos nas trovas, carregam um peso emocional que nos lembra que, apesar dos desafios, o amor, a esperança e a poesia são fundamentais para a nossa jornada, fazendo delas uma contribuição valiosa à literatura e à poesia.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. vol.1. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Coelho Neto (A direção do balão)

Craveiro, da extinta e florida firma de Craveiro & Rosas (chá, cera, rapé e sementes) era homem de muita carne, de bom sangue, católico e conservador. O pai, além de haver sido um dos esteios do partido, fora na mocidade, conservador de um museu, onde diziam as más línguas, ele encontrara a excelente senhora D. Brígida, modelo de honestidade e de magreza — o que lhe sobrava em virtude escasseava em carnes. 

Até os vinte anos Craveiro Júnior, que nascera franzino, foi um mocinho amarelo e magro, muito sujeito a bronquites e a cólicas, sempre a tossir e a gemer pela casa, recatado e mole. A mãe atirava-lhe para os ombros derreados todas as lãs que encontrava, o pai obrigava-o a trazer baetas sobre a pele e D. Serafina, todas as noites, fazia-lhe uma gemada substancial com canela e cravo e punha- lhe aos pés, sob as cobertas, duas botijas com água a ferver, tanto que uma vez, estando Craveiro a dormir quando a solícita senhora lhe chegou às plantas o aquecedor, o rapaz, num assombro, saltou da cama berrando que descera ao inferno, como Orfeu, e pôs-se a esfregar os pés, agarrando ferozmente, mostrando bolhas que lhe haviam feito os ardentes ladrilhos do reino de Belzebu. Apesar de todos os cuidados Craveiro continuava a amarelecer e a definhar, sempre a tossir, mastigando pastilhas, engolindo xarope. 

Não era bonito, tinha sardas e cravos (não fosse ele Craveiro), os cabelos eram negros mas raros e a fronte ia lhe alargando com a idade, o que maravilhava o velho que, ao contemplar a vastidão daquela testa, lisa e cor de marfim que ia subindo a pique, dizia com enlevo e orgulho — que era o talento, o fogo vivo do gênio que esturrava a raiz do cabelo como as chamas, em agosto, lavrando por um cerro, consomem até às raízes as plantas que o vestem. 

Apesar da profecia do velho, o apregoado talento do rapaz era difícil, e só escorria num fio escasso, em dias de festa doméstica, arriscando à mesa um brinde trêmulo. Quando se falou em mandar Craveiro aos estudos, D. Brígida opôs-se aterrorizada aconchegando o filho aos ossos do peito: 

— Medicina, Brígida; aventurou pacatamente o velho. 

— Deus me livre! O quê? Para o pobre menino ter de estudar em defuntos e passar toda a vida à cabeceira de doentes com risco de apanhar alguma coisa!? Deus me livre! 

— Bem... engenharia, então. 

— Que engenharia, homem! Você parece maluco: para um dia cair de uma ponte ou ficar debaixo de um túnel... 

— Então... direito. 

— Nada! pode, como promotor, acusar um sujeito de maus bofes que mais tarde, queira se vingar... 

— Então, filha, só o seminário; vamos metê-lo no seminário. 

D. Brígida sorriu desvanecida, mas veio logo um suspiro contrariar o prazer: 

— Sim, padre, isso era outra coisa, mas... e os jejuns? Ele podia lá com os apertados jejuns!? Não. Olha, queres a minha opinião? Mete-o no comércio, dá-lhe sociedade na loja. Ele que venda chá, dizem que o chá ataca os nervos, mas é história, o chá é inofensivo, a cera é grata ao Senhor e as sementes são a riqueza da terra. 

— E o rapé? E as lanternas? E os fogos? 

— É verdade... Mas seu Rosas pode encarregar-se dessas coisas. Divida-se a casa em duas seções: uma para o pequeno, outra para seu Rosas. 

E assim se fez. Craveiro encarregou-se da 1ª seção e o Rosas lá foi para a dos explosivos e dos esternutatórios (que provocam espirros). 

Nos primeiros tempos a vida foi uma maçada tediosa para o mancebo. O dia todo ao balcão ou no escritório a vender círios, barrigas, pernas, chá verde, chá preto, chá padre, abóboras e fúcsias, pouco a pouco, porém, habituando-se, Craveiro deu em pandear — aos vinte e cinco anos era todo ele uma só imensa barriga — foi necessário alargar a porta do escritório para que o homem passasse. A mãe, alvoroçada, exigiu um exame médico e a ciência em lenta e minuciosa análise achou apenas toucinho. Foi uma alegria em casa. 

Um dia chovia a jorros, Craveiro bocejava no escritório com a fronte lisa sobre a mão, quando duas senhoras, acossadas pelo aguaceiro, entraram precipitadamente na loja. Era no tempo dos balões tufados, aí pelos fins da guerra. A que parecia mais velha trazia um balão de pequeno diâmetro, a outra, porém, com as goteiras que pingavam da saia, fez na casa um círculo maior que a roda maciça de um carro de bois. 

Era uma criaturinha viva, de um moreno quente e aveludado, olhos mais negros que jabuticabas maduras e com uma pequenina boca que era mesmo um botão de rosa. O colo era alto e arfava, as mãos eram finas e arrebatavam o mantelete (capa curta usada por mulheres) com um brilho rico de anéis. 

Craveiro, vendo-a, sentiu um tumulto no coração amadurecido para o amor e como as duas senhoras se conservassem de pé examinando plantas, ele compreendeu com muita sutileza que elas não queriam saber de dálias, nem de azaleias, senão de um pouco de agasalho até que a chuva estiasse, e ofereceu cadeiras. Agradeceram e sentaram-se. A mais velha acomodou o balão, a mais nova, porém, por mais que batesse, por mais que aconchegasse, não conseguiu submeter os arcos rebeldes da crinolina que ficou rebeldemente empinada e enfunada expondo à curiosidade lúbrica de Craveiro os pequeninos pés da linda morena e um palmo de meias cor de rosa que eram uma tentação, ou melhor duas tentações. 

Craveiro perdeu a cabeça e de olhos gulosamente abaixados, admirava, os caixeiros ouviam-lhe os roncos e viam-lhe o fogo das pupilas incendiadas. Felizmente chovia e os fogos lá estavam na seção pirotécnica do Rosas. Por fim a chuva serenou e as duas senhoras, com muitos sorrisos e agradecimentos saíram. 

Craveiro não se conteve, tomou, à pressa o casaco e abalou, a largas pernadas, chapinhando nas poças, escorregando no lodo, a ver a direção que tomavam os balões. 

Oh! Aquela morena! Aquelas meias cor de rosa!... Via-a ao longe, muito tufada no grande balão que bamboleava, via-a e forcejava por alcançá-la... Mas a barriga! Aquela barriga... 

Num cruzamento de ruas perdeu de vista a linda criatura. Ficou a olhar pasmado: onde se teria metido? Pôs-se a rondar o ponto em que se sumira a beleza, a olhar as casas, a tossir, a pigarrear... e nada! E ali esteve até tarde. Já escurecia quando, com o desespero na alma, o desventurado resolveu voltar ao negócio mas, ai dele! Já não era o mesmo homem calmo, sisudo, despreocupado — tornou-se frenético, deu em berrar com os caixeiros, em atirar murros à secretária e, em casa à noite, cercava-se de papéis e punha-se a riscar, a calcular e ia até à madrugada, às vezes, naquela lida, suspirando e bufando. 

O pai interpelou-o uma noite sobre aquelas vigílias que lhe comprometiam a saúde e Craveiro, sem tirar os olhos do papel respondeu secamente: “estou vendo se descubro uma coisa...”. 

De sorte que o velho, quando D. Brígida suspirava atribulada com tantas noites em claro e trabalhosas, dizia-lhe com uma ponta de orgulho: “deixa lá o rapaz, está com a sua descoberta... Eu, quando te dizia que ele devia estudar para engenheiro, tinha as minhas razões”. E Craveiro, sobre um complicado desenho que representava o cruzamento das ruas, colocava dois feijões pretos e um feijão cavalo — os feijões pretos representavam as duas aerostáticas senhoras, o feijão cavalo era ele e tanto mexia com os tais feijões que perdia a calma e acabava a pesquisa atirando formidáveis murros à mesa e, já deitado, esmagando os travesseiros, lançava ainda exclamações que atroavam a casa: “eu hei de descobrir, custe o que custar. Eu hei de descobrir”. E tanto insistiu na famosa descoberta que, um dia, foi postar-se no tal cruzamento, perguntando a todos que passavam: “o senhor (ou a senhora) não viu por aqui um balão com umas meias cor de rosa? Não sabe que direção tomou?” 

Arrancaram-no dali, à noite — estava louco. 

Os pais quiseram conservá-lo em casa, mas Craveiro berrava com tal furor que a vizinhança, alarmada, recorreu à polícia e o infeliz foi internado em um hospício. O Rosas passou a dirigir as duas seções, D. Brígida finou-se ralada de tristezas, o velho seguiu-a pouco depois, e Craveiro lá ficou no hospício calculando e engordando até que as banhas o prostraram a um canto do cubículo, pesado e inerte. 

Com os anos, porém, foi lhe desvanecendo a mania e os médicos pensavam em dar-lhe alta e teríamos cá fora o estupendo corpanzil do antigo negociante se um incidente não o comprometesse. O médico passava a visita quando, justamente diante de Craveiro, voltou-se para o farmacêutico que o acompanhava: 

— Então, hein? Temos o balão. 

Craveiro estremeceu e arregalou os olhos, maravilhado. 

— Parece que sim, doutor. 

— Onde? Bradou o louco, num rugido. 

— Onde? Em Paris. 

— Em Paris?! Um balão? Com umas meias cor de rosa? 

— Como? 

— Sim, senhor: meias cor de rosa... Acharam sempre, hein? 

— Acharam; e foi um patrício nosso, mas... que história é essa de meias cor de rosa? 

Craveiro teve um sorriso malicioso e, afagando a papada, murmurou: “É cá uma coisa, doutor. Se eu, naquele dia, tivesse descoberto a direção... Ah! Não lhe conto nada...” 

— Que direção? 

— A direção que tomou o balão; eram dois... 

— Um do Severo, disse o farmacêutico. 

— Qual Severo! Um era de uma senhora magra, já idosa, a mãe, creio. Mas o das meias!... 

— Que meias? 

— Que meias, hein? Que meias? 

Pôs-se a ranger os dentes, fechou ameaçadoramente os punhos e... foi metido em camisola de força. E agora a fúria é contra o médico porque entende o infeliz que foi ele (pobre Dr. Brochado!) quem descobriu o balão ou antes — a direção que tomou a dama que o vestia. 

E lá está.

Fonte: Olavo Bilac & Coelho Neto. Contos Pátrios. RJ: Francisco Alves, 1931. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (História do Brasil)


(Marcha/Carnaval, 1934)
Compositor: Lamartine Babo

Quem foi que inventou o Brasil? 
Foi seu Cabral!
Foi seu Cabral!

No dia vinte e um de abril
Dois meses depois do carnaval
Depois
Ceci amou Peri
Peri beijou Ceci
Ao som...
Ao som do Guarani!

Do Guarani ao guaraná
Surgiu a feijoada
E mais tarde o Paraty

Depois
Ceci virou Iaiá
Peri virou Ioiô

De lá...
Pra cá tudo mudou!
Passou-se o tempo da vovó
Quem manda é a Severa
E o cavalo Mossoró
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Carnaval Histórico: Uma Viagem Musical pela História do Brasil

A música "História do Brasil" de Lamartine Babo, é uma peça vibrante que mistura elementos de humor e crítica social, característicos das marchinhas de carnaval. A letra inicia com uma pergunta retórica sobre quem inventou o Brasil, respondida de forma jocosa atribuindo a descoberta ao navegador português Pedro Álvares Cabral, marcando ironicamente a chegada dos portugueses como o 'invento' do Brasil.

A canção segue fazendo referências a elementos culturais e históricos brasileiros de forma leve e divertida. Ceci e Peri, personagens do romance indianista "O Guarani" de José de Alencar, são usados para simbolizar o encontro de culturas, transformando-se em figuras carnavalescas Iaiá e Ioiô, representando a miscigenação do povo brasileiro. A menção ao guaraná e à feijoada, elementos típicos da culinária brasileira, e ao Paraty, uma referência ao famoso destilado, reforça a identidade nacional construída a partir de uma mistura de influências.

Por fim, a música menciona a mudança dos tempos, onde 'quem manda é a Severa e o cavalo Mossoró', possivelmente uma crítica à modernização e às novas figuras de poder no Brasil, contrastando com a simplicidade dos tempos antigos. Essa marchinha não só entretém, mas também provoca reflexão sobre a história e cultura brasileira, utilizando o carnaval como pano de fundo para uma crítica social sutil e bem-humorada.

sábado, 7 de setembro de 2024

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 24

 

Nemésio Prata (Trovas em preto e branco)


1
Ao ver a imagem singela
do barco, tranquilo, ao mar,
lembrei-me: não há procela
que Deus não possa acalmar!
2
Bom Humor em injeção 
comprimidos, ou xarope, 
é a melhor prescrição 
para tristeza a galope!
3
Correndo, desesperado,
de mala e chapéu na mão,
o passageiro, coitado,
perdeu o trem... e a razão!
4
Ensinar é dom sublime
que requer saber e amor;
o que muito bem exprime
a lide do Professor!
5
Homem, mau, vil e perverso;
toda vez que tu desmatas,
mesmo em nome do progresso,
é a ti mesmo que tu matas!
6
Na mata o machado bate
forte pra tirar "madeira";
e assim o "homem" abate,
uma a uma, a mata inteira!
7
Olhando com bem clareza
pras marcas do seu herdeiro,
já não tem tanta certeza
de ser o pai verdadeiro!
8
Por aqui passava um rio
caudaloso e pleno em vida;
hoje mal se vê um fio
d'água suja e poluída!
9
Se a lua inspira o Poeta...
também o faz o arrebol;
venturoso é para o esteta
ter os dois por seu farol!
10
Seja-lhe a vida a favor,
ou o seu viver adverso,
regala-se o Trovador
na lide de fazer verso!
11
- Solta-me! Clama o navio
ao cais que o faz prisioneiro;
- deixa-me sair vadio
pelo mar... que é meu parceiro!
12
Tem quem só quer receber
para si o que é melhor,
porém ao aparecer
chance pra dar: dá o pior!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

AS TROVAS DE NEMÉSIO EM PRETO E BRANCO
por José Feldman


AS TROVAS UMA A UMA

1. Acalmando as Tempestades
Esta trova reflete a ideia de que, mesmo diante das adversidades (as tempestades da vida), a fé em Deus pode proporcionar tranquilidade. O barco representa a jornada da vida, enquanto a presença divina sugere proteção e esperança.

2. O Poder do Bom Humor
O humor é apresentado como um remédio poderoso contra a tristeza. A metáfora dos "comprimidos" e "xarope" sugere que, assim como medicamentos, o bom humor é essencial para a saúde mental, enfatizando a importância de uma atitude positiva.

3. Desespero e Oportunidade Perdida
Aqui, o passageiro simboliza aqueles que, na pressa da vida, perdem oportunidades valiosas. A "mala e chapéu" indicam a carga emocional e as responsabilidades que ele carrega, e a perda do trem é uma metáfora para a perda de controle e direção na vida.

4. A Nobreza do Ensino
A figura do professor é exaltada como alguém que, além de transmitir conhecimento, deve ter amor pela educação. A expressão "dom sublime" destaca que ensinar é uma vocação que envolve dedicação e compromisso com o futuro.

5. A Destruição da Natureza
Esta trova critica a degradação ambiental, alertando que a exploração desenfreada dos recursos naturais traz consequências. A ideia de que "é a ti mesmo que tu matas" sugere uma reflexão sobre o impacto das ações humanas sobre si mesmos e as futuras gerações.

6. O Machado e a Mata
Com uma abordagem similar à anterior, aqui Nemésio usa a imagem do machado como símbolo da destruição. A repetição da palavra "abate" enfatiza a continuidade da devastação, mostrando um ciclo de morte que se perpetua por ações humanas.

7. Dúvidas de Paternidade
Esta trova de forma humorística aborda a insegurança nas relações familiares. O "herdeiro" e a "certeza" contrastam, refletindo sobre a complexidade das relações humanas e as dúvidas que podem surgir em laços familiares, questionando a identidade e a paternidade.

8. O Rio Poluído
A transformação do rio de "caudaloso" a "fio d'água suja" é uma poderosa metáfora para a degradação ambiental. Essa imagem expressa a perda da pureza e vitalidade do meio ambiente, um lamento sobre o impacto humano na natureza.

9. Inspiração Poética
A trova destaca a dualidade entre a lua e o arrebol como fontes de inspiração. Isso sugere que a beleza pode ser encontrada em diferentes formas e momentos, e que o artista deve estar atento a essas fontes para criar.

10. Alegria na Criação
Independente das circunstâncias, a figura do Trovador expressa que a criação poética é uma fonte de alegria. A palavra "regala-se" indica que a arte é um refúgio e uma forma de expressão que traz satisfação.

11. Clamor por Liberdade
O navio clamando ao cais representa o desejo de liberdade e exploração. Essa metáfora reflete o espírito aventureiro e a luta contra as amarras que prendem, simbolizando a busca por autonomia e novas experiências.

12. Egoísmo e Generosidade
Esta trova critica a natureza egoísta de algumas pessoas, que se aproveitam das oportunidades sem considerar os outros. A dicotomia entre "receber" e "dar" ressalta a falta de altruísmo e a necessidade de uma reflexão ética sobre as ações humanas.

TEMAS ABORDADOS PELAS TROVAS DE NEMÉSIO E SUA SIMILARIDADE COM POETAS DE DIVERSAS ÉPOCAS

1. Natureza e Degradação Ambiental
Nemésio em várias trovas critica a exploração desenfreada dos recursos naturais, alertando para as consequências de uma relação desequilibrada entre o ser humano e o meio ambiente. Essa preocupação é cada vez mais relevante no contexto atual, onde a urgência das questões ecológicas se torna inegável. Essa temática é comum na literatura, desde poetas românticos como William Wordsworth, que exaltava a beleza natural, até contemporâneos como Adélia Prado, que também aborda a relação do ser humano com a natureza de forma crítica.

2. A Condição Humana e a Busca por Identidade
A exploração da paternidade e das incertezas nas relações familiares revela uma busca profunda por identidade e pertencimento. A dúvida e a insegurança são sentimentos universais que ressoam com a experiência humana, conectando a poetas que também exploraram a complexidade das relações. Essa preocupação é encontrada em obras de Fernando Pessoa, que explorou a fragmentação do eu, e em poetas contemporâneos como Marianne Moore, que também refletiu sobre a complexidade das relações interpessoais.

3. O Papel do Professor e a Educação
A valorização do ensino como um ato de amor e dedicação destaca a importância da educação na formação do indivíduo e da sociedade. Nemésio se une a uma longa tradição de poetas que reconhecem a nobreza e o impacto do educador na vida das pessoas. A exaltação do professor como figura essencial na formação humana ecoa o pensamento de poetas como Cecília Meireles, que valorizava a educação e o saber.

4. Humor e Alegria como Remédios
A capacidade de encontrar alegria e leveza em meio às adversidades evidencia uma resiliência humana notável. O humor, apresentado como um remédio, reflete uma estratégia vital para enfrentar os desafios da vida. Esta ideia de que o humor pode curar a tristeza se alinha com a obra de poetas como Mário Quintana, que frequentemente usou a leveza e o humor como formas de enfrentar as dificuldades da vida. Ambos os poetas promovem uma visão positiva, ressaltando a importância da alegria.

5. Liberdade e Autonomia
O desejo de liberdade, simbolizado pelo clamor do navio, encapsula a luta intrínseca do ser humano por autonomia e exploração. Essa busca é um tema constante na literatura e ressoa com o espírito aventureiro presente em diversos poetas, desde Alfred Lord Tennyson, que abordou a busca por liberdade e aventura, até poetas contemporâneos que lutam contra as limitações sociais. Nemésio se junta a essa tradição ao expressar o anseio por explorar o mundo.

6. Egoísmo e Generosidade
A crítica ao comportamento egoísta e a promoção da generosidade revelam uma preocupação ética que é fundamental para a coexistência social. A reflexão sobre a moralidade das ações humanas é um convite à introspecção e à mudança. Poetas como Vinicius de Moraes exploraram a complexidade das relações humanas e a importância da generosidade. Nemésio, ao abordar essa dualidade, reflete uma preocupação ética que ressoa com a tradição poética.

Poetas românticos como Gonçalves Dias e Alphonsus de Guimaraens também exploraram a natureza e as emoções humanas. A busca por identidade e a crítica social em poetas modernistas, como Carlos Drummond de Andrade, mostram similaridades com a abordagem nas trovas, que também questiona valores e realidades contemporâneas. Poetas contemporâneos como Marcelino Freire e Juliana Gomes abordam a identidade e as relações sociais de forma incisiva, refletindo preocupações semelhantes às de Prata em um contexto atual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

As trovas de Nemésio Prata compõem uma teia de temas que refletem a complexidade da condição humana e a interação do ser humano com o mundo ao seu redor. Ao longo de suas trovas, aborda questões essenciais como a natureza, a degradação ambiental, a busca por identidade, a importância da educação, o poder do humor e a dualidade entre egoísmo e generosidade.

Em suma, as trovas de Nemésio Prata não apenas capturam a essência da experiência humana, mas também convidam à reflexão sobre questões que permeiam a sociedade contemporânea. Seu estilo poético, que combina musicalidade e profundidade, permite que suas mensagens ressoem através do tempo, estabelecendo um diálogo com poetas de diferentes épocas e tradições. As suas trovas são um testemunho da capacidade da poesia de tocar a alma humana, oferecendo consolo, reflexão e, acima de tudo, uma conexão com o que significa ser humano.

A combinação de leveza e profundidade é uma das características que tornam suas trovas tão impactantes. Consegue, com elas, evocar emoções complexas e instigar reflexões sobre temas que permanecem relevantes. Essa habilidade de sintetizar sentimentos e ideias em formas simples é um testemunho de sua verve poética.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. vol.1. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Luís da Câmara Cascudo (A Princesa do Sono Sem Fim)

Havia um reinado em que a rainha velha tinha a sina de correr de lobisomem, matando gente para beber o sangue. O príncipe seu filho era um moço sem tacha, bom e valente, e vivia triste com o destino da mãe. Sua distração era ir conversar com um velho, muito velhinho, que morava fora da cidade, perto de uma floresta sombria, na qual ninguém ia caçar nem passear.

O velhinho armava uma rede no alpendre para o príncipe descansar e este passava horas e horas ouvindo as histórias do tempo antigo, esquecendo-se da rainha velha e da sua doença de beber sangue de gente.

Vez por outra, quando o vento passava mais forte e levantava os galhos do arvoredo, o príncipe enxergava, lá ao longe, uma pequena mancha vermelha, parecendo um telhado de casa.

Um dia ele perguntou ao velhinho que telhado ao longe era aquele. O velho, então, contou:

– Aquilo é um palácio encantado, príncipe meu senhor. Meu avô contou a meu pai e este contou a mim que, há cem anos, está ali dormindo uma princesa, com todos os seus criados, pajens e mordomos, por via de umas fadas. No reinado Fulano, o rei e a rainha, nesse tempo, não tinham filhos e só faltavam morrer de vontade. Apresentou-se a rainha grávida e descansou uma menina bonita como o sol. Todo o dia era uma festa no palácio. Para o batizado o rei convidou todas as fadas que existiam por perto do reinado. Só não convidou a fada mais velha porque ninguém sabia da morada dela e julgavam que tivesse morrido.

As fadas vieram todas e já estava na mesa do banquete quando a fada velha apareceu resmungando e dando de corpo como uma condenada. A fada mais moça botou reparo na zanga da fada velha e mais do que depressa escapuliu-se da mesa e se escondeu sem que ninguém notasse sua falta. Depois do banquete as fadas foram fadar, dando as sinas e os dons. Cada uma dizia a coisa mais bonita.

– Eu te fado que sejas linda como a luz do sol.

Outra dizia por aqui assim:

– Eu te fado que sejas boa como o amor de mãe. Eu te fado que sejas rica como um tesouro. Eu te fado com a ciência de Salomão. E assim foram dizendo, e o rei, todo satisfeito, ao lado da rainha que tinha a princesinha nos braços. No fim, a fada velha se levantou, com a fala grossa, e disse:

– Nem vale a pena tanta sina boa para essa menina. Ela será tudo isto mas durante pouco tempo. Quando se puser moça, irá visitar a quinta do seu pai e aí furará a palma da mão com um fuso de fiar algodão e morrerá logo, sem remédio nem jeito.

As fadas, que já tinham fadado e não podiam desmanchar o que a fada velha tinha feito, choravam, quando a fada mais moça saiu de trás de uma cortina e disse:

– Não posso desmanchar o que foi fadado porque não tenho poderes mas, como ainda não fadei, fado esta menina para que, quando o fuso lhe ferir a palma da mão, não morra, mas fique dormindo cem anos, acordada que seja por um príncipe, case e seja feliz.

Acabou-se a festa e o rei proibiu, sob pena de morte, que alguém fiasse com o fuso no seu reinado. Apesar de todo cuidado, quando a princesinha inteirou os quinze anos, foram todos visitar outro palácio que o rei possuía dentro de umas matas mais bonitas do mundo. A menina andava, para cima e para baixo, corrigindo tudo, e, lá num quarto esconso da casa, encontrou uma velha ama que estava fiando. Pediu logo para ver o que era e desejou imitar. Assim que pegou no fuso, este saltou e varou sua mão.

Nem marejou sangue mas a princesinha caiu para trás, como morta.

Correram todos e deitaram a menina numa cama, num quarto preparado de um tudo, espelhando de bonito. A fada moça veio voando e bateu a varinha de condão na cumeeira do palácio. Todo mundo que estava dentro, tirando o rei e a rainha, pegou no sono profundo. Os músicos ficaram com os instrumentos na boca e a mesma cozinheira agarrou a dormir com a mão segurando uma galinha que estava assando no fogo.

O rei e a rainha, como aquilo era sina permitida por Deus, beijaram a filha, abençoaram e foram embora, com a fada, para o reinado. Por lá morreram e o reinado deles acabou-se. Só ficou o palácio dentro do arvoredo, com a princesa dormindo o sono sem fim. Era o que meu avô contava a meu pai e este me contou quando eu era menino.

O príncipe ficou alvoroçado com a história que o velho contou e não dormiu pensando na princesa encantada. Pela manhã pegou um facão bem afiado e tocou-se para a mata, perto da casinha do velho. Chegou e meteu o facão, abrindo uma picada, porque era tudo fechado, fechado. Ia abrindo e entrando, e, assim trabalhando, foi andando, até que deu numa roda de árvores enormes e no meio estava o palácio coberto de cipós, sem nenhum rumor, parecendo morto. O príncipe entrou pela porta principal e foi vendo soldados, músicos, damas e senhores, até cozinheiras e meninos, até os bichos, tudo parado, dormindo a sono solto.

Depois de subir as escadas e passar as salas cheias de gente roncando, viu deitada numa cama, forrada de seda, a moça mais bonita que a terra havia de comer, profundamente adormecida. O príncipe chegou para perto e pegou na mão da princesa e esta logo abriu os olhos, dizendo:

– Oh príncipe! Como demoraste em vir!...

O palácio estremeceu e todo mundo acordou. O príncipe ouviu as cornetas tocando, bichos berrando, as pisadas dos soldados, gritos, a música, enfim o barulho de gente viva.

Veio um mordomo muito bem-vestido anunciar que o jantar estava na mesa e o príncipe comeu a galinha que estava sendo assada há cem anos.

Ficou aí como num céu aberto. Veio o padre e casou os dois sem perder tempo. Os dias voavam e a princesa era feliz. O príncipe, sabendo a mãe que tinha, ia ao palácio dar ordens e voltava, dizendo que estava caçando. Não queria que ninguém o acompanhasse. 

No fim de um ano a princesa teve um filho lindo que se chamou Belo-Dia; e no outro ano nasceu uma menina, batizada por Bela-Aurora. 

Apareceram umas guerras e o príncipe não podia deixar de ir com as tropas. Como não queria deixar a mulher e os filhos naquele ermo, resolveu levar todos para casa. Foi na frente e contou o que se passara a sua mãe. A rainha velha só fazia pigarrear, com a cara fechada como o rei Herodes, imaginando coisas ruins.

Antes de ir embora, o príncipe dividiu o palácio em duas partes. A rainha velha ficaria num canto e a mulher com os filhos noutro, todos com criados e conforto. Chamou o príncipe ao mordomo que era muito seu amigo, de toda confiança, e pediu que vigiasse a família e tivesse cuidado com a rainha velha.

Assim que o príncipe montou a cavalo e viajou, a rainha velha começou a ter vontade de beber sangue e comer carne humana. Ficou mesmo bruta e, não podendo passar o desejo, chamou o mordomo e mandou que lhe servisse Belo-Dia, com bom molho, no almoço do dia seguinte.

O mordomo só faltou morrer. Pensou, pensou, procurou a princesa, contou tudo, levou Belo-Dia para sua casinha, longe do palácio e escondeu-o. 

Na manhã  do outro dia matou uma lebre, guisou-a bem e avisou que o almoço estava na mesa. A rainha velha comeu a fartar lambendo os beiços e gabando tudo.

Dias depois, veio o desejo e ela mandou que o mordomo matasse Bela-Aurora. O mordomo levou a menina para casa e assou uma paca. A rainha achou o prato gostoso por demais.

Dias passados, exigiu que a princesa fosse refogada em molho de tomate e cebola, para o jantar, porque tinha a carne dura. O mordomo levou a princesa para sua casa, juntou-a aos filhos, bem escondidos, e matou uma veadinha, refogando-a e preparou o jantar, com molho de tomates e cebolas. A rainha velha comeu, saboreando.

Os dias iam passando e a velha tornou a ter a cisma da carne humana de cristão e saiu de noite, como uma desesperada, farejando quem mandar matar para saciar sua sina. Ia passando por uma rua longe do palácio, tarde da noite, quando ouviu a voz da princesa sua nora e a dos netos, conversando dentro de uma casa. Subiu na calçada, encostou o ouvido e soube que era ali a casa do mordomo e que a princesa estava fazendo Belo-Dia dormir, porque este perdera o sono e acordara Bela-Aurora, todos com saudades do pai.

A rainha velha, feia como uma coruja, nem coração tinha para essas coisas, saiu babando de raiva e pela manhã mandou prender a nora, os netos e o mordomo. Uma fogueira enorme foi feita diante do palácio, e quando o braseiro estava escandeando de quente, a rainha velha veio para a varanda assistir à morte da mulher e dos filhos do seu filho e do pobre mordomo.

Já vinham todos amarrados, no sol pegando fogo, quando ouviram a fortaleza salvar e o tropel de cavalaria. Era o príncipe que vinha voltando com os seus soldados, morto de saudades da mulher e dos filhos. Chegando na praça e vendo aquele horror, o príncipe voou do cavalo embaixo, puxou a espada e livrou a esposa e os filhinhos e o mordomo das cordas, e, bufando de raiva, gritou perguntando quem se atrevera a pôr a mão no que ele queria demais em cima do Mundo.

A rainha velha saltou do sobrado para o fogo das fogueiras, com medo do castigo, e aí morreu, queimada, estorricada, virada cinza e pó preto. 

O príncipe foi para o palácio com a princesa, Belo-Dia e Bela-Aurora, abraçando-os e chorando de alegria. Nomeou o mordomo para vice-rei num reinado que ganhara na guerra. E morreram todos de velhos, bem felizes.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.