sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Menina de Tranças)

NO PEQUENO E PACATO vilarejo de Santa Luzia do Monte Sagrado, onde o tempo parecia ter estancado os passos de seguir num ritmo próprio, havia uma menina que todos conheciam pela sua beleza ímpar e rara, e –, em igual sorte –, no modo carinhoso como tratava as pessoas. Seu nome, Laudicea (a maioria a chamava carinhosamente de “Menina de Tranças.”) Seus longos cabelos pretos, macios e sedosos, engalanados com fitas coloridas, se consubstanciavam na marca registrada dessa mocinha de quinze anos, cujos sorrisos fáceis e encantadores se misturavam e se alinhavam com os olhos verdes nervosamente matizados por um brilho indescritível.

Santa Luzia do Monte Sagrado não se estendia além de um lugarejo pacato e tranquilo sediada à margens direita de um rio de leito suave, e onde as pessoas de canto a canto se conheciam pelo primeiro nome, ou em decorrência de um apelido advindo de algum familiar ou alguém mais chegado à vida cotidiana. No geral, tudo seguia um ciclo de vida sopitado. A praça central virara um “point” obrigatório de começos de tardes para onde  convergiam não só os jovens, mas também as crianças em alvoroços barulhentos, os namorados e os idosos num regozijo reinante que se avultava até por volta das vinte e duas, mais tardar às vinte e três horas, quando então se iniciava a debandada de retorno, cada um voltado para o conforto de seus respectivos lares.  

Nessa praça se situava o seu Luiz, o pipoqueiro oficial e sua mulher, dona Almerinda das pamonhas –, o Benjamim do cafezinho, o Nicanor das cocadas e dos pés de moleques, e os poucos comerciantes quando encerravam as suas atividades ao longo da rua principal, onde ficavam o mercado, a padaria, o açougue, a farmácia e a funerária. Como toda cidade esquecida nos cafundós dos centros efervescentes, havia a igreja da Padroeira. Ou mais precisamente a de Santa Luzia. O santuário dela se arrimava defronte à praça e o palanque do coreto antigo (onde em tempos idos), as bandinhas dos dois grupos escolares se ajuntavam em datas comemorativas regidas pela batuta do maestro Otto Canavieiro. Em dias de hoje, o sustentáculo desse espaço virou palco ativo de moradores de ruas e usuários de drogas advindos de outras localidades, o que contribuiu para afastar a maviosidade dos futuros músicos a perderem no “para sempre” o viço dos saudosos tempos em que se aprendia a ler partituras ou tocar um instrumento qualquer.   

No mesmo tom, os bancos de cimento, os postes de madeira das luminárias acendidas todos os dias, no chegar das dezoito horas, pelo seu Belizário, que alimentava os surrados lampiões e o colossal jardim todo desflorido plantado pelas antigas administrações da prefeitura se pegaram carcomidos pelo decorrer dos anos, e não só deles – igualmente pelo descaso dos colaboradores dos prefeitos – numa sucessão sem tamanho, o que contribuiu, sobejamente para marcar, de forma retrógrada, o ápice das batidas do grandioso coração que vivificava as bases do esquecido vilarejo. Justamente ali, num local embaixo das sombras generosas de árvores centenárias, as únicas que insistiam em seguir lutando pela sobrevivência, a gloriosa Laudicea costumava se sentar para ouvir as histórias dos seus pais, avós e outros que se juntavam na mesma sintonia meridiana. 

Entre uma e outra, ela se luxuriava a urdir pequenos nós nos próprios cabelos e, de contrapeso, ajudava a avó, dona Cotinha, a produzir as suas bonecas de pano para, com as vendas, manter a sustentação dos alimentos mais prementes não se olvidarem das prateleiras contíguas às despensas da cozinha. As histórias desse centro nevrálgico se materializavam como uma tapeçaria estonteante que conectava o passado ao presente. Havia histórias de bravura e amor, de mistérios ocultos e figuras indecifráveis. Laudicea se fizera uma ouvinte atenta, absorvendo cada palavra como se fosse uma ponderação. Ela acreditava piamente que cada conto “atonal” tinha o poder de transformar a realidade, como se as palavras fossem fios invisíveis que desobstruíssem para melhor, o destino das pessoas.

Uma tarde, quando o sol preparava a mochila para ir embora e voltar dia seguinte, uma nova alma chegou ao vilarejo. Esse, um viajante maltrapilho, as roupas sujas da poeira de tantos quilômetros percorridos, com um chapéu largo e seboso, uma manta que parecia não ver água por um bocado de janeiros. Essa criatura fora do comum para os padrões daquele pedaço de chão, se achegou à localidade e se juntou ao largo do reduto. Em poucas palavras (e no correr dos dias) se soube que também contava histórias. A maior parte delas, relatos sem pé nem cabeça, nascidas de céus e mares distantes, apimentadas de aventuras fantásticas e inverossímeis. Os domiciliados que por ali viviam, em pouco tempo ficaram pasmos e encantados. 

Todavia, foi a “menina de tranças” quem mais as escutou com a devida dosagem da atenção que emanava da fluidez das suas curiosidades à flor da pele. O viajante em poucos dias diversificou lorotando crônicas e causos os mais estapafúrdios e, entre esses bololôs (rolos), o “chegado” narrou um imaginoso que despertou na adolescente Laudicea, a de uma garotinha de oito anos que tinha o poder de fazer os desejos se tornarem realidade. Para isso, ela precisava simplesmente engastar um fio de ouro que não se fazia visível aos olhos comuns. Esse suposto cordel, uma vez trançado, poderia realizar qualquer desejo que a menina mentalizasse. Em oposto, a donzelinha carregava uma responsabilidade imensa: os anelos almejados, como se fossem uma espécie de fatos intrincados que não se traduziam tão simples, e cada um deles, tinha lá as suas consequências no “a depois.”

Quando o repertório dessas histórias se fez conclusivo, o viajante misterioso, dezoito dias depois da sua aparição se despediu e deixou a bucólica Santa Luzia do Monte Sagrado tão enigmaticamente de quanto havia aportado. Laudicea ficou sem norte, ao sabor da mente repleta de perguntas e um revolvimento inquieto martelando dentro do peito. Na noite da partida do estrangeiro, ela não conseguiu conciliar o sono. A imagem fúlvida (viva e cativante) do fio de ouro e da tal garota que realizava desejos dançava tresloucadamente em seus pensamentos. Na manhã seguinte, Laudicea decidiu que queria tentar. Precisava, carecia, tinha urgência. Se fazia imperioso colocar em pratica, sem mais delongas o escutado. Por conta disso, ao invés de usar apenas fitas coloridas, pediu à avó um pouco de sua linha dourada.  

Esse condutor (composto de um fio simples), para ela, a incrível “menina de tranças,” do mais profundo do seu âmago, acreditava piamente que ele reunia todas as qualidades necessárias tipo as daqueles povos indígenas da antiguidade – que evocavam rituais místicos realizado por um pajé indígena visando curar enfermidades futuras. Enquanto conglomerava o “fio, ou o barbante dourado” em seus cabelos, ela se ateve a um único desejo: um só. Que a sua querida Santa Luzia do Monte Sagrado nunca perdesse (ainda que acontecesse algo sobrenatural), ou deixasse despencar por terra a sua essência de paz, de amor e amizade. A vida continuou a fluir como sempre. Entretanto, algo sutil havia mudado. E para melhor. As pessoas começaram a se unir mais, a ajudar umas às outras de maneiras inesperadas. Os problemas da pequena cidadezinha pareciam menores, e a sensação de uma comunidade unida e coesa crescia a cada dia. 

Embora Laudicea nunca tenha revelado a ninguém o que fizera, todos os habitantes sentiram que havia algo especial pairando no ar. Os anos passaram. Laudicea cresceu. Se tornou uma moça bonita. Mais do que já era. Se formou professora e se casou com um menino que, desde que se pegara apaixonada pelas malhas do amor, se tornou esposa desse garoto (na época um vizinho seu) que fora embora para a capital e voltou, anos depois, formado em medicina. Laudicea nunca deixou a sua cidade de berço, e sempre manteve a tradição das “tranças” e o fio dourado dentro de seu “eu oculto.” Em tempo algum precisou de invocar mais desejos, uma vez que descobrira a verdadeira magia da felicidade plena e que, para mantê-la em firme evidência bastava acreditar que um pouco de bondade e esperança poderiam fazer e não só fazer, operar maravilhas.

Quando ela chegou à casa dos sessenta, junto com o seu marido doutor e filhos (que, à semelhança do pai, seguiram as suas trilhas), a inoxidável “Menina de tranças” (após a morte de todos os seus entes queridos) deixou definitivamente Santa Luzia do Monte Sagrado para explorar a capital. Paralelamente, o mundo. Levou consigo, nessa viagem, não só o fio dourado, mas a certeza plena de que os verdadeiros encantos não se faziam construídos de fios de ouro, ou barbantes para se costurarem bonecas. Sobretudo, se avultavam reais e imorredouros, em face de pequenas ações, corações e mentes voltadas para um único objetivo: o bem comum. Assim, a fabulosa “Menina de Tranças” se tornou uma lenda viva em sua cidadezinha natal. Não apenas como aquela criança inocente que cuidava de seus cabelos cheios de tranças multicores, que ouvia histórias e que ajudava a avó a criar bonecas de pano. Ela se fez além das tranças, como a jovem que, num único desejo sincero, ajudou a tecer um destino brilhante e imorredouro para todos que circundavam ao seu redor. 

Fonte: Texto enviado pelo autor

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Figueiredo Pimentel (O cágado e o urubu)

O cágado e seu companheiro urubu foram convidados para uma festa no céu. O urubu, querendo debicá-lo (ironizá-lo), disse:

– Então, compadre cágado, já sei que vai à festa e eu quero ir em sua companhia.

– Pois não, respondeu o outro, contanto que você leve a sua viola.

Separaram-se, ficando o urubu de ir à casa do cágado, para irem juntos.

No dia seguinte, logo muito cedo, o urubu apareceu. O cágado estava à janela, e assim que o viu voando, escondeu-se.

O outro entrou, e foi a mulher quem o recebeu. Convidou-o a passar para a sala de jantar.

– Venha cá para dentro tomar uma xícara de café. Deixe aí a sua violinha, que ninguém a quebra.

O cágado, assim que o urubu passou, meteu-se dentro da viola.

– E seu marido, comadre?

– Ora, mandou pedir mil desculpas, mas já foi adiante.

O urubu, acabando o café, pegou na viola sem nada desconfiar, abriu voo e chegou ao céu.

Perguntaram-lhe pelo cágado, sabendo que haviam combinado vir juntos.

– Qual! Pois vocês pensam que ele vem? Quando lá embaixo ele nem sabe andar, quanto mais voar!

Pilhando-o distraído, o cágado saiu da viola e apareceu no meio dos outros, que se admiraram muito ao vê-lo.

Dançaram e brincaram até tarde.

Acabada a festa, usando do mesmo estratagema, o cágado meteu-se dentro da viola.

O urubu descia voando, quando o cágado se mexeu sem querer.

– Ah! é assim que você sabe voar? Pois voa mais depressa. - exclamou o companheiro virando a caixa.

O cágado despenhou-se daquela imensa altura, e, quando vinha cegando à terra, vendo que ia se esborrachar sobre uma pedra, começou a berrar:

– Arreda, pedra, senão eu te esborracho!

Quem caiu foi ele, que se achatou completamente, ficando com a forma que ainda hoje conserva.

Fonte: Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.  

Vereda da Poesia = 108


Trova de
GODOFREDO MENDES VIANA
São Luís/MA (1878 – 1934)

A todos respeito e ensino
a minha definição.
O beijo é o til pequenino
da palavra coração.
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Poema Indígena de
PAULA BELMINO
Lagoa Nova/RN

Sangue de Índio

Sou filha de índio
Aprendi com eles a dançar
Na luta pela mata virgem
Pela floresta livre a passear
Tenho seu sangue
Guerreiros sempre a lutar
Cantam e seus males espantam
Assim com eles vivo a cantar
Sou filha de índio
E os animais são meus companheiros
Amo a natureza
E a ela tenho por minha mãe
Planto, reciclo, não derrubo as árvores,
Alimento-me do suor de minha mão
Sou filha de índio
E respeito a diversidade
Faço barulho pra alegrar a vida
Num ritual de felicidade
Sou pintura e riso
Sou cultura em qualquer parte
Sou filha de índio
Sou beleza, cor e arte.
O sorriso é minha arma
Ecoando pelos quatro cantos do mundo
Na dança de amor pelo futuro.
Não esquecendo as raízes
Quero uma terra sem sangue,
Em paz! Homens felizes!
Sou filha de índio
Meu sangue é deles
E por eles existo e vivo
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Trova de
MARIA VERGÍNIA GONÇALVES
Maringá/PR

A beleza e o dinheiro
acentuam diferenças:
o segundo é o primeiro
a provocar desavenças.
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Soneto de
VICENTE DE CARVALHO
Santos/SP (1866 – 1924)

Velho tema (IV)

Eu não espero o bem que mais desejo:
Sou condenado, e disso convencido;
Vossas palavras, com que sou punido,
São penas e verdades de sobejo.

O que dizeis é mal muito sabido,
Pois nem se esconde nem procura ensejo,
E anda à vista naquilo que mais vejo:
Em vosso olhar, severo ou distraído.

Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:
Ao meu amor desamparado e triste
Toda a esperança de alcançar-vos nego.

Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste;
Conto-lhe o mal que vejo, e ele, que é cego,
Põe-se a sonhar o bem que não existe.
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Trova Premiada em Blumenau/SC, 2016

MYRTHES MAZZA MASIERO
São José dos Campos/SP

Mulher e mãe! Que mistura!
Cuidados mil pelos seus...
Zelo, amor, doce ternura,
obra perfeita de Deus!
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Poema de
WISLAWA SZYMBORSKA 
Kornik/Polônia (1923 - 2012)

Álbum

Na minha família ninguém morreu de amor.
Se alguma coisa houve não passou de historieta.
Tísicas de Romeu? Difterias de Julieta?
Alguns envelheceram até ganhar bolor.
Ninguém a definhar por falta de resposta
a uma carta molhada e dolorosa.
Apareceu sempre por fim algum vizinho
com lunetas e uma rosa.
Ninguém a desfalecer no armário de asfixia
de algum marido voltando sem contar.
E os mantos e os folhos e as fitas de apertar
a nenhuma impediram de ficar na fotografia.
E nunca no espírito satânico de Bosch!
E nunca pelos quintais de arma em punho!
De bala na cabeça teve a morte outro cunho
e em macas de campanha alguém os trouxe.
De olheiras fundas como após a grande folia,
até esta aqui de carrapito extático,
se fez ao largo em grande hemorragia
mas não por ti, ó bailarino, e com viático.
Talvez antes do daguerreótipo, alguém,
mas nos deste álbum, ninguém, que eu verifique.
Tristezas dissiparam-se, os dias sucederam-se,
e eles, reconfortados, sumiram-se de gripe.
(Tradução: Júlio Souza Gomes)
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Trova Popular

Por te amar perdi a Deus,
por teu amor me perdi,
agora vejo-me só,
sem Deus, sem amor, sem ti.
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Soneto de
GILSON FAUSTINO MAIA
Petrópolis/RJ

Primavera 

Então ela chegou mostrando as cores, 
transformando a tristeza em alegria, 
trazendo borboletas, poesia, 
suavizando o encontro dos amores. 

Aqui e ali, já estão brotando as flores, 
e os passarinhos, ao raiar o dia, 
no pomar fazem sua sinfonia. 
Vibrem poetas, cantem trovadores! 

Modifica-se, inteira, a natureza. 
A musa mostrará sua beleza 
e o jovem perderá seu coração. 

O sol irá brilhar mais claro agora! 
Capim novo, refaz-se a nossa flora, 
há mais vida no ar e em nosso chão.
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Trova de
CECIM CALIXTO
Pinhalão/PR (1926 – 2008) Tomazina/PR
 
É verdade, neste inverno,
vou dar tudo a quem não tem,
porque sei que para o inferno
nunca vai quem faz o bem.
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Poema de
JONAS ROGÉRIO SANCHES
Catanduva/SP

Semeaduras de Amor e Sangue

Sulquei a terra e ali plantei
sonhos, sangue e lágrimas;
depois de um tempo eu colhi
mil flores de cores áridas.

Semeaduras de almas inocentes
onde o amor foi a semente,
onde a dor foi o adubo
que fez crescer perdão na gente.

Terras de arados tão febris
que alimentam paixões pueris
que atormentam o trovador
que resolveu morrer de amor.

Terras plantadas, flor que condiz
na madrugada seu olor matiz,
noite enluarada e uma cicatriz
no peito que mata o amor motriz.

Plantei meu sangue pelos terreiros
desse sertão tão meu, brasileiro;
colhi meus sonhos tão inconsequentes
e fui feliz amando a minha gente.
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Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Bonita, pobre e sacana
é a nova mulher do Ernesto.
Do velho, só quer a grana
e, do filho dele... o resto!
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Soneto de 
CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Mariana/MG, 1729 – 1789, Ouro Preto/MG

VIII

Este é o rio, a montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.

Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.

Oh quão lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e as vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!

Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.
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Trova de
JOUBERT DE ARAÚJO E SILVA 
Cachoeiro do Itapemirim/ES, 1915 – 1993, Rio de Janeiro/RJ

A aliança é um elo sagrado,
mas quando o amor morre cedo,
lembrando um sonho acabado,
é um zero enfeitando o dedo...
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Poema de
INGMAR HEYTZE
Utrech/Holanda

Trabalho Noturno

O tic-tac do despertador. O sussurro da caldeira.
O fremir do frigorífico quando liga e desliga.
Os batimentos da chuva contra a janela.
A escuridão apodera-se de nós.

 O sono entrega o coração e a respiração
ao ritmo da noite.
A alma a secar calmamente pendurada
nas suas cordas branco-prateadas.

A manhã inverte os papeis.
O barulho do chuveiro. O apito da chaleira.
O café a gotejar. A escuridão
esconde-se nas cortinas

e espera, e espera, apenas espera e,
espera.
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Trova de
ROBERTO C. DA MOTTA
Natal/RN

Cuidemos nós, da beleza,
também da preservação,
das coisas da natureza,
para os outros que virão.
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Soneto de
BASTOS PORTELA
Recife/PE, 1890 – 1956

Esplendor efêmero

És moça e bela. Assim, hoje pões e dispões;
E, feliz, num requinte fátuo de vaidade,
Vais pela vida, altiva, a esmagar corações...
Nada encontras no amor que te amargure ou enfade!

Mas, quando, um dia, enfim, atingires a idade
Em que se perdem, para sempre, as ilusões,
Tu me dirás, então, o que é sentir saudade
E o que é chorar no horror de longas solidões...

A beleza desfeita, humilde, decadente,
Serás a flor que, num jardim, murcha e descora,
Ao crepúsculo azul da tarde, mansamente...

E vendo-te passar, como os fantasmas, eu...
Eu sofrerei, talvez, como quem lembra ou chora
Uma bela mulher que se amou, e morreu!
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Trova Premiada em Blumenau/SC, 2016

PLÁCIDO FERREIRA DO AMARAL JÚNIOR
Caicó/RN

Tua vida em nossas vidas
é um porto de acalantos.
Teus cuidados são guaridas
onde eu ancoro os meus prantos.
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Poema de
FERNANDO NAMORA 
Condeixa-a-Nova/ Portugal, 1919 – 1989, Lisboa/Portugal

Poema para Iludir a Vida

Tudo na vida está em esquecer o dia que passa.
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raízes,
ou asa de anjo
caída num paul. 

O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos portos.
Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje o fim
e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje é o dia de amanhã.
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

A vida nem sempre é encanto; 
para alguns é injusta e inglória... 
– Quanta gente corre tanto, 
porém perde o trem da história!
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Quadrão em Oito* de
LACERDA FURTADO**

Quadrão para Joaquim Batista de Sena

Namorando a Salomé, 
Vi a barca de Noé, 
Palestrei com Josué, 
Com Jacó e Salomão; 
Travei luta com Sansão, 
Nadei no delta do Nilo, 
Montado num crocodilo, 
Cantando os oito em Quadrão!
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Trova da Princesa dos Trovadores 
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Sussurrando com ternura,
prova a fonte, sem revolta,
como é possível ser pura,
mesmo tendo lama em volta.
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Hino de Jaraguá do Sul/SC

Entre montes te vejo engastada,
Marginando corrente prateada...
Vibra um povo querendo progresso,
Crescimento, trabalho e sucesso.

Jaraguá do Sul és vibrante,
Não haverá quem te suplante,
Teu povo alegre e varonil,
Tem por lema: Avante Brasil.

De teus campos abertos em flor,
Da indústria a todo vapor,
Brotam rios de riqueza a sorrir.
Para o dia de amanhã que surgir.

Teu brasão tem o verde: é esperança,
O vermelho, este povo que avança.
Ao lufar da bandeira marchamos
Pela terra que é nossa e que amamos.
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Trova de 
WALDIR NEVES 
Rio de Janeiro/RJ (1924 – 2007)

Saudade!... foto em pedaços
 que eu colei com mão tremida,
 tentando compor os traços
 de quem rasgou minha vida...
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Poema de
LUCI COLLIN
Curitiba/PR

Dor mesmo

dor mesmo nem tanto a incisiva
- surpresa da faca na pele –
intensa dor mas reversível
ferida que enfim cicatriza

dor mesmo é aquela miúda
dor sempre que não envelhece
lateja esta dor – a mais funda –
de um ontem que nunca se esquece
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Trova de 
FERNANDO PESSOA
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

O poeta é um fingidor.
finge tão completamente,
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente!
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

A raposa e o busto

Era um busto famoso, um todo teatral...
Por entre a multidão, o burro, esse animal
Que não sabe julgar senão as aparências,
Gabava da escultura as raras excelências.

A raposa, porém, um tanto mais sabida,
Aproxima-se e diz: «Não vi, por minha vida,
Cabeça tão perfeita!... É mágoa verdadeira
A falta que lhe faz lá dentro a mioleira!»

Aos centos, pelo mundo, os homens conto
Que são bustos perfeitos neste ponto.
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* QUADRÃO EM OITO
Ao longo do tempo, o Quadrão tem sido o gênero a receber o maior número de alterações, não só na sua forma interna, mas, também, na estrutura das estrofes, em geral. O Quadrão antigo é formado por uma estância de oito linhas, pertencente à família dos setessílabos, rimando o primeiro verso com o segundo e o terceiro; o quarto com o oitavo, e o quinto com o sexto e o sétimo, contando, no final, o estribilho de sua denominação. O Quadrão em oito apareceu com ligeira modificação na sua forma interna, isto é, o quarto verso que rimava somente com o oitavo passou a rimar também com o quinto. (http://www.bahai.org.br/cordel/generos.html)

Após modificações no universo multifacetado da cantoria, os Quadrões foram incluídos nas Décimas e hoje temos quatro modalidades deste gênero com dez pés, todos mantendo o estribilho na última linha das estrofes.  Além dos cantadores Antônio Batista Guedes, Simplício Pereira da Silva e Manoel Furtado, os saudosos irmãos Batista (Dimas, Lourival e Otacílio), foram os grandes mestres deste estilo especial de cantoria, inclusive tendo sido (os Batista) os criadores do famoso “Quadrão Perguntado”, que recebeu esta denominação por ser uma espécie de diálogo constituído de perguntas e respostas intercaladas, obedecendo a métrica e a rima, pelos dois cantadores. (Fonte: Lilian Maial ) 

** Lacerda Furtado = não encontrei dados de nascimento e/ou morte deste poeta. Se alguém souber, favor me enviar para atualizar no blog.
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Recordando Velhas Canções (Tardes De Lindóia)


(valsa, 1930)
Compositor: Zequinha de Abreu

Tardes silenciosas de Lindoia
Quando o sol morre tristonho
Tardes em que toda a natureza
Veste-se de um véu de sonho

Baixo os arvoredos murmurantes
De a tênue brisa um soprar
Anjinho dos sonhos meus
Não sabes tu com és
Sublime contigo sonhar

Longe, lá no horizonte calmo
As nuvens se incendeiam
Num incêndio de luz

Vibra e se exalta minha alma
Na sensação que a seduz

Um plangente sino toca
Chamando a prece a todos
Os que ainda sabem crer

Então que sonho e creio
Beijar a tua linda boca
Para acalmar o meu sofrer

A Nostalgia Poética em 'Tardes de Lindóia'
A música 'Tardes de Lindóia' de Francisco Petrônio é uma ode à beleza e à serenidade das tardes na cidade de Lindóia. A letra descreve um cenário bucólico e tranquilo, onde o sol se põe de maneira melancólica, e toda a natureza parece se vestir de um véu de sonho. Esse ambiente idílico é um convite à introspecção e à contemplação, onde o eu lírico encontra um refúgio para seus pensamentos e sentimentos mais profundos.

A canção utiliza uma série de metáforas e imagens poéticas para transmitir a sensação de paz e beleza do momento. As 'tardes silenciosas' e o 'véu de sonho' são exemplos de como a natureza é personificada e transformada em um cenário quase onírico. A brisa suave e os 'arvoredos murmurantes' contribuem para essa atmosfera de tranquilidade e introspecção, onde o eu lírico se sente em comunhão com a natureza e consigo mesmo.

Além disso, a música também aborda temas de fé e esperança. O 'plangente sino' que toca ao longe chama todos à prece, simbolizando um momento de reflexão e conexão espiritual. O eu lírico expressa um desejo profundo de encontrar consolo e paz, simbolizado pelo anseio de beijar a 'linda boca' de seu amado ou amada. Esse gesto é visto como uma forma de acalmar seu sofrimento, mostrando como o amor e a fé podem ser fontes de conforto em momentos de tristeza e melancolia.

"Tardes de Lindoia" foi escrita em 1916, e é uma das composições mais conhecidas de Zequinha de Abreu. Peça musical inspirada nas belezas naturais da cidade de Lindoia, localizada no Estado de São Paulo. A valsa é caracterizada por sua melodia doce e suave, que evoca uma atmosfera romântica e nostálgica. A obra é uma composição elegante, que combina elementos clássicos e populares, e é considerada uma das mais belas valsas da música brasileira.

A combinação de melodia e harmonia cria uma atmosfera serena e melancólica, que transmite a sensação de tardes tranquilas e ensolaradas. A obra de Zequinha, incluindo "Tardes em Lindoia" (Também conhecida como "Tardes de Lindoia"), foi um marco na música brasileira do século XX, destacando-se pela originalidade e beleza de suas composições. "Tardes de Lindoia" tem sido interpretada e regravada por muitos músicos ao longo dos anos, sendo uma das obras mais conhecidas e amadas do repertório brasileiro.
Fontes: 

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Daniel Maurício (Poética) 76

 

Arthur Thomaz (O cofre)

Imigrante, fugindo dos horrores da Segunda Guerra Mundial, juntou suas poucas economias e embarcou em um navio com destino ao Brasil. No convés da embarcação escutou conversas em que as pessoas exaltavam o valor de terras em um estado denominado Santa Catarina. Terras férteis e já ocupadas em grande parte por milhares de imigrantes de variadas nacionalidades.

Na viagem conheceu um distinto senhor brasileiro, que lhe contou algumas particularidades do seu povo e ainda trocou suas liras por dinheiro do Brasil.

Desembarcou, tendo o cuidado de esconder seu dinheiro nas meias, conforme aprendera com sua finada mãe.

Em uma banca de jornais, no cais, comprou um mapa da Revista Quatro Rodas. Foi a um albergue, onde pernoitou, e pela manhã, durante o café, estendeu o mapa do estado sobre a mesa, e com olhos fechados, colocou o dedo sobre ele.

Selecionou assim, ao acaso, a cidade onde iria estabelecer-se.

Na rodoviária, tomou o ônibus com destino à tal cidade.

Lá chegando, perambulou pela rua do comércio, por horas, até ouvir uma pessoa falando seu idioma.

Iniciou uma longa conversação com o novo amigo.

Orientado por ele, foi visitar as terras que almejava comprar para explorá-las na agricultura.

Com preços muito altos para suas economias, acabou encontrando uma propriedade no sopé de uma serra, onde fazia muito frio, com episódios de fortes geadas, e que era mais barata por esses fatores.

Acostumado aos rigores do inverno europeu, encantou-se pelo local, e no cartório da cidade, realizou a transferência da propriedade para o seu nome.

Com o restante das economias, comprou as ferramentas, insumos, defensivos agrícolas, mudas e sementes.

Na rústica casinha que havia na propriedade, realizou alguns reparos necessários para poder morar.

Após alguns meses de árduo trabalho, no qual empregou-se com afinco, chegando às vezes a ter as mãos sangrando, começou a colher algumas hortaliças, raízes e frutos.

Foi a pé empurrando um pequeno carrinho de mão, vendê-las no Mercado Municipal. 

Com esse dinheiro comprou uma pequena carroça e um burrinho para puxá-la.

Adquiriu mais insumos, mudas e sementes.

Iniciou a plantação de nova safra de produtos.

Algum tempo decorrido nessa faina diária, arrecadou uma quantia suficiente para comprar a propriedade vizinha e contratar uns empregados para ajudá-lo.

Passados alguns anos, já era considerado um grande produtor rural na região.

Contratou pedreiros e construiu uma casa sede da fazenda.

Sozinho, edificou um porão, com entrada oculta, para guardar, secretamente, dinheiro, documentos e pertences particulares.

Com o aprendizado da língua portuguesa, passou a frequentar o CTG (Centro de Tradições Gaúchas) da cidade, onde conheceu uma jovem descendente de europeus. Casaram-se e dessa união nasceram dois filhos, que em pouco tempo também ajudavam na lida das propriedades.

Não contou sobre o porão nem para a esposa, indo a noite arrumar o aposento e guardar o dinheiro em uma gaveta de uma estante.

Fiodor, por não confiar em instituições bancárias, mandou importar um enorme cofre e cimentou-o no solo do secreto porão. Memorizou, sozinho, o segredo, garantindo assim, ter somente ele, o acesso.

E nele armazenava todo o lucro da propriedade, realizando todos os pagamentos em espécie.

Uma vez por semestre ia até a capital do estado e em uma loja de câmbio, trocava suas economias por moedas estrangeiras, acumulando, assim, uma pequena fortuna, que guardava, zelosamente, no cofre.

Depois de seu falecimento, os laboriosos filhos, desconhecendo a existência do cofre, continuaram a vida na fazenda. Passaram a utilizar agências bancárias para transações financeiras. Expandiram os negócios, amealhando muito dinheiro e comprando mais terras vizinhas. 

Casaram-se e também tiveram filhos que mantiveram a tradição rural da família.

Já os membros da quarta geração, Giuseppe e primos, eram um pouco menos dedicados ao trabalho nas fazendas, acostumados às polpudas mesadas. Preferiam simular estar estudando em busca de diplomas do que a faina diária na lavoura. Moravam fora do Estado, vindo somente nas férias para visitar os parentes.

Em uma dessas férias, Giuseppe, um pouco mais curioso que os outros, resolveu explorar o antigo e enorme casarão sede das propriedades. Observou um som diferente no contato do taco de suas botas com o assoalho. Com a picareta, abriu um buraco e surpreendeu-se ao encontrar um aposento. 

Com a ajuda dos primos, alargaram a passagem e desceram com o auxílio de uma escada de madeira.

Depararam-se, surpresos, com o enorme cofre.

Entreolharam-se, já imaginando o que fazer com a possível quantia em dinheiro que poderia haver lá dentro. 

Tentaram, por muito tempo, diversas maneiras de abri-lo. Iniciaram por aleatórios números encontrar o segredo.

Depois, com o auxílio de um estetoscópio, procurando imitar o que assistiram nos filmes.

Mesmo relutantes em expor o achado a estranhos, apelaram a um chaveiro, que inutilmente tentou, por horas, abri-lo.

Já impacientes, dinamitaram o objeto, sem sucesso.

Recorreram até a um vidente e a um pai de santo, para entrar em contato com o espírito de Fiodor, em vão.

Após meses de vãs tentativas, com muito dinheiro gasto, reuniram-se e resolveram enterrá-lo e esquecer a existência desse estorvo.

Desdenharam a possibilidade do cofre conter algo interessante economicamente. Não contaram esse fato nem aos descendentes, a fim de que caísse no esquecimento para toda a eternidade.

O que nenhum deles reparou, foi em um quadro na parede do aposento, emoldurando um antigo mapa do Estado de Santa Catarina, no qual havia uma sequência de números escritos em volta do nome da cidade.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: insondáveis. 1. ed. Santos/SP: Bueno Editora, 2024. Enviado pelo autor