quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Wanda de Paula Mourthé (Trovas em preto e branco)


1
A realidade transponho
e vivo em mundo ideal...
Quero as mentiras do sonho,
não as da vida real!
2
– Barata em pinga?! Que horror!
E a garçonete “sensata”:
– Mas não pediu o senhor
a cachaça mais barata?
3
Chega bêbado… sequer
distingue um rosto e malogra:
dá alguns tapas na mulher
e muitos beijos na sogra!
4
Esta angústia indefinida,
que sempre à noite me invade,
são sombras próprias da vida
ou disfarces da saudade?
5
Forçada a escolhas na vida
- teatro que não domino
fui marionete movida
pelos cordéis do destino!
6
Gente que escolhe sem tino
as propostas da existência,
quando erra, culpa o destino
pela própria incompetência.
7
Meu diário! Em tuas folhas
morrem desejos sem fim...
Pago o preço das escolhas
que outros fizeram por mim.
8
Na feira de antiguidade,
ao ancião combalido
perguntam, não sem maldade:
-Vem comprar ou ser vendido? 
9
O destino traiçoeiro
separou-nos, sem piedade,
mas o amor fez do carteiro
o porta-voz da saudade.
10
Partiu... nem disse o motivo,
e eu, da saudade à mercê,
estou vivo, mas não vivo,
pois não vivo sem você.
11
Tanto amor e afinidade
entre nós dois, já se vê,
que perdi a identidade:
eu sou eu... ou sou você?
12
Volto à capela em que, um dia
me esperaste ao pé do altar...
E hoje a saudade, em magia,
me espera no teu lugar...

As Trovas de Wanda em Preto & Branco
por José Feldman

SIGNIFICADO DAS TROVAS; TEMÁTICA E RELAÇÃO COM LITERATOS DE DIVERSAS ÉPOCAS

Trova 1. Mundo Ideal vs. Realidade
A trovadora expressa um anseio por escapar das duras verdades da vida cotidiana, preferindo as ilusões e mentiras reconfortantes dos sonhos. Essa oposição entre o ideal e o real reflete uma busca por significado e felicidade em um mundo muitas vezes cruel.

Fernando Pessoa (Portugal): "Tabacaria" e "Autopsicografia" exploram a busca por realidades alternativas e a criação de personas.

Adélia Prado: "A Casa" e "Oração" refletem a busca por um sentido mais profundo na vida e a valorização do sonho.

Walt Whitman (EUA): "Song of Myself" celebra a liberdade e a individualidade, criando um mundo de possibilidades que contrasta com as limitações da vida cotidiana.

Charles Baudelaire (França): "A Une Passante" reflete sobre a efemeridade e a busca por beleza em meio ao desencanto da vida urbana, capturando a tensão entre ideal e real.

Trova 2. Humor e Crítica
A cena com a garçonete revela a ironia da situação com humor, destacando uma crítica social sobre as condições de vida e as expectativas de consumo. A pergunta retórica sobre a bebida mais barata expõe a absurdidade das escolhas feitas em momentos de necessidade.

Gregório de Matos: "Agradecimento" utiliza humor e crítica social.

Marcelino Freire: "Contos Negreiros" aborda a crítica social com um tom irônico.

T.S. Eliot (Inglaterra): "The Love Song of J. Alfred Prufrock" utiliza humor e ironia para criticar a sociedade e as expectativas, refletindo as absurdidades do cotidiano.

Dorothy Parker (EUA): Em seus poemas e contos, frequentemente satiriza as convenções sociais, abordando com humor as dificuldades da vida moderna.

Trova 3. Violência e Confusão
Trova humorística onde a embriaguez é um símbolo da confusão e do desespero nas relações. A imagem do homem que confunde a sogra com a esposa ilustra a desorientação emocional e a violência que pode surgir em ambientes familiares, sublinhando a fragilidade das dinâmicas pessoais.

Alberto de Oliveira: "O Último Beijo" fala sobre a confusão emocional e as consequências do amor.

Hilda Hilst: "A Obscena Senhora D" lida com a brutalidade nas relações.

Sylvia Plath (EUA/Inglaterra): "Daddy" explora a violência emocional e a confusão, trazendo à tona a complexidade das relações familiares e o impacto psicológico.

Charles Bukowski (EUA): "The Most Beautiful Woman in Town" retrata a brutalidade das relações e a autodestruição que pode surgir da embriaguez e da

Trova 4. Angústia e Saudade
A angústia é apresentada como uma presença constante, questionando se essas sombras são reflexos da vida ou da saudade. Essa dualidade sugere que a dor da ausência é intrínseca à experiência humana, revelando um estado emocional profundo.

Álvares de Azevedo: "Noite de Luar" fala sobre a melancolia e a saudade.

Marina Colasanti: "A Mulher que Aprendeu a Ver" reflete sobre a angústia e a memória.

Octavio Paz (México): "Piedra de Sol" explora a angústia e a busca por significado, ressoando com as inquietações presentes nas trovas de Mourthé.

Emily Dickinson (EUA): "I felt a Funeral, in my Brain" enfatiza a angústia e a introspecção, refletindo sobre a própria condição humana e a saudade da vida.

Paul Verlaine (França): "Chanson d'automne" expressa melancolia e saudade, capturando a passagem do tempo e a dor da perda.

Trova 5. Marionete do Destino
A metáfora da marionete sugere a falta de controle sobre os próprios destinos. A autora se sente movida por forças externas, o que gera um sentimento de impotência diante das escolhas que a vida impõe. Essa ideia ressalta a inevitabilidade das circunstâncias que moldam nossas vidas.

Luís de Camões (Portugal): "Os Lusíadas" lida com o destino e o controle sobre a própria vida.

Alice Ruiz: "A Bússola" explora o tema das escolhas e do destino.

Robert Frost (EUA): "The Road Not Taken" aborda a ideia de escolhas e como elas moldam nosso destino, refletindo a luta entre livre-arbítrio e destino.

Alfred Tennyson (Inglaterra): "The Charge of the Light Brigade" explora o tema do destino inevitável, onde os personagens são tragicamente levados a seguir caminhos que não escolheram.

Trova 6. Responsabilidade e Destino
A crítica à forma como as pessoas frequentemente culpam o destino por suas falhas revela uma reflexão sobre a responsabilidade pessoal. A autora destaca a tendência humana de transferir a culpa, sugerindo que a verdadeira competência reside na capacidade de reconhecer e aprender com os próprios erros.

Machado de Assis: "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Dom Casmurro" abordam a responsabilidade pessoal e suas consequências.

Fábio de Melo: "A Vida é uma Viagem" e "As Coisas que Perdemos" discutem a responsabilidade nas escolhas da vida.

Langston Hughes (EUA): "Harlem" questiona o que acontece com os sonhos não realizados, refletindo sobre a responsabilidade pessoal em relação ao destino.

John Keats (Inglaterra): "Ode to a Nightingale" reflete sobre a fragilidade da vida e a necessidade de aceitar as consequências de nossas escolhas.

Trova 7. Diário e Desejos
O diário se torna um espaço onde os desejos não realizados ganham vida, simbolizando a frustração e a influência das decisões alheias. A ideia de "pagar o preço" das escolhas de outros reflete a luta interna entre o desejo pessoal e as imposições externas.

Cecília Meireles: "Motivo" expressa a luta entre desejos e a realidade. "Romanceiro da Inconfidência" explora as escolhas e a busca por liberdade, semelhante ao discurso de Mourthé sobre o destino.

Jorge Luis Borges (Argentina): Em seus contos e poemas, frequentemente reflete sobre o destino, as escolhas e as consequências, alinhando-se com a crítica de Mourthé sobre a responsabilidade em relação ao próprio destino.

Anne Sexton (EUA): "The Awful Rowing Toward God" explora a confissão e os desejos não concretizados, abordando a busca por significado.

Trova 8. Antiguidade e Ironia
A feira de antiguidades provoca reflexões sobre o valor da vida e a transitoriedade das coisas. A pergunta sobre comprar ou ser vendido sugere uma crítica à condição humana, questionando o que realmente valorizamos e o que estamos dispostos a sacrificar.

Olavo Bilac: "O Caçador de Esmeraldas" discute a passagem do tempo e o que se perdeu.

Mário Quintana: "A Rua dos Cataventos" e "O Aprendiz de Feiticeiro" falam sobre a ironia da vida e suas transições.

Marcel Proust (França): "Em Busca do Tempo Perdido" Proust reflete sobre a memória e o valor do passado, dialogando com a ironia da vida e do que valorizamos.

Philip Larkin (Inglaterra): "An Arundel Tomb" aborda a transitoriedade da vida e a ironia do que permanece, questionando o valor das coisas.

Trova 9. Amor e Separação
A dor da separação é um tema central, onde o amor se transforma em saudade. A figura do carteiro como mensageiro da dor simboliza a comunicação da ausência, enfatizando como o amor pode persistir mesmo na separação física.

Vinícius de Moraes: "Soneto de Separação" e "Eu Sei Que Vou Te Amar" captura a essência da dor do amor perdido, refletindo a saudade presente em Mourthé.

W.H. Auden (Inglaterra): "Funeral Blues" expressa a dor da perda e a saudade, ressoando com a experiência do amor e da separação.

Trova 10. Saudade e Existência
A luta entre estar vivo e sentir-se vivo retrata a experiência de viver sem a presença do outro. Essa tensão entre a existência física e a conexão emocional ressalta a profundidade da saudade, que pode tornar a vida vazia.

Carlos Drummond de Andrade: "Quadrilha" e "No Meio do Caminho" abordam a saudade e a existência.

Alfonsina Storni (Argentina): Em poemas como "Peso Ancestral" fala da angústia existencial e a luta interna das mulheres.

Charles Dickens (Inglaterra): "A Tale of Two Cities" é sobre a vida e a morte, a saudade e a luta pela existência em tempos difíceis.

Robert Frost (EUA): Em "Stopping by Woods on a Snowy Evening" medita sobre a vida, a morte e o que significa realmente viver.

Trova 11. Identidade e União
A confusão entre as identidades dos amantes sugere uma união tão profunda que desafia a noção de individualidade. Essa identificação mútua reflete a intensidade do amor, onde os limites entre duas pessoas se tornam indistintos.

O Soneto de Luís de Camões "Amor é fogo que arde sem se ver" explora a fusão de identidades no amor.

Marcelino Freire, com "Luz" fala sobre a conexão entre as pessoas.

Clarice Lispector: Embora seja mais prosas, suas reflexões sobre a identidade e a subjetividade em obras como "A Paixão Segundo G.H." ecoam as preocupações de Mourthé sobre a busca por identidade nas relações.

Nicanor Parra (Chile): Com seu "antipoema," desafia conceitos tradicionais de identidade e amor, refletindo sobre a complexidade das relações.

John Donne (Inglaterra): "A Valediction: Forbidding Mourning" contém a ideia de que dois amantes são um só, refletindo a união e a fusão da identidade.

E.E. Cummings (EUA): Em "I carry your heart with me" a interconexão profunda entre amantes captura a essência da identidade compartilhada.

Trova 12. Memórias e Expectativas
O retorno à capela é carregado de nostalgia, simbolizando o espaço onde a saudade habita. A expectativa da saudade no lugar do outro sugere que a memória é uma forma de presença, onde o passado se torna um espaço emocional contínuo.

Braulio Tavares: "Inquietação" lida com a nostalgia e as memórias.

Adélia Prado: Em sua obra, explora a memória e a vida cotidiana, refletindo sobre como as experiências moldam a identidade e as relações, de maneira similar à abordagem sa trovadora.

César Vallejo: "Os Heraldos Negros" explora a dor da ausência e a memória.

Mario Benedetti (Uruguai): Em poemas como "Te Quiero" fala sobre amor e lembranças, abrangendo a essência da saudade. Suas reflexões sobre o passado se conectam com a nostalgia presente nas trovas de Mourthé.

Marcel Proust (França): Novamente, Proust é fundamental, com sua exploração da memória em "Em Busca do Tempo Perdido" onde a saudade é uma constante na reflexão sobre o passado.

Walt Whitman (EUA): Em "When Lilacs Last in the Dooryard Bloom'd" fala sobre memória e perda, refletindo a conexão entre passado e presente.

Gabriela Mistral (Chile): "Sonetos da Morte," aborda a perda e a saudade de forma tocante, semelhante à forma como Mourthé explora a ausência e a memória.

Esses poetas e suas obras ajudam a contextualizar as trovas de Wanda de Paula Mourthé, mostrando como temas universais de amor, saudade, identidade e a condição humana são explorados em diferentes tradições literárias. Essa interconexão destaca a riqueza da experiência poética e a relevância contínua de tais temas ao longo do tempo e das culturas.

INFLUÊNCIAS NAS TROVAS DE MOURTHÉ

A sensibilidade e a intensidade emocional da poesia romântica, especialmente de poetas como Álvares de Azevedo e Castro Alves, são evidentes nas suas trovas, que frequentemente abordam temas como amor, saudade e melancolia.

A ruptura com formas tradicionais e a busca por novas expressões poéticas, características do modernismo brasileiro, influenciam sua linguagem. Autores como Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade podem ser vistos como referências.

Poetas contemporâneos, como Adélia Prado e Hilda Hilst, também têm um papel significativo nas suas influências, especialmente em relação à exploração da subjetividade e das questões femininas.

A abordagem de temas de gênero e a busca por uma voz feminina forte em suas obras são influenciadas pelo movimento feminista, refletindo as lutas e experiências das mulheres na sociedade.

Elementos da música popular brasileira e do folclore influenciam a musicalidade de sua poesia, trazendo uma cadência lírica que ressoa com as tradições culturais do Brasil.

Suas vivências pessoais e emocionais, como a relação com a saudade, amor e a passagem do tempo, são fontes fundamentais de inspiração, tornando sua obra íntima e reflexiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As trovas de Wanda de Paula Mourthé constituem uma teia poética que explora as complexidades da experiência humana. Cada trova revela uma profunda introspecção sobre temas universais como amor, saudade, identidade, escolhas e a condição humana. Esses temas não apenas repercutem nas vivências individuais, mas também capturam as nuances das relações sociais e emocionais que permeiam a vida cotidiana.

As trovas abordam a dualidade entre o ideal e a realidade, revelando um desejo de escapar das duras verdades da vida por meio das ilusões do sonho. A ironia e a crítica social presentes em suas palavras lançam luz sobre os absurdos do cotidiano, enquanto a angústia e a saudade permeiam a obra, convidando o leitor a pensar sobre a passagem do tempo e as perdas inevitáveis. Também explora a vulnerabilidade humana ao se sentir controlada pelas circunstâncias, questionando a responsabilidade nas escolhas que moldam o destino.

As influências da trovadora podem ser vistas em diálogos com poetas brasileiros como Cecília Meireles e Adélia Prado, que também revelam a profundidade emocional e a experiência feminina. No contexto internacional, a obra de Mourthé encontra ecos em poetas como Pablo Neruda e Sylvia Plath, que abordam temas como amor e angústia de maneira intensa e pessoal. Esses diálogos intertextuais enfatizam a universalidade das emoções e experiências retratadas, tornando sua obra relevante e conectada a tradições poéticas mais amplas.

A relevância das trovas se estende além do âmbito literário; elas oferecem uma reflexão crítica sobre a realidade contemporânea. Em um mundo frequentemente marcado por incertezas e desconexões, suas palavras evocam a necessidade de introspecção e empatia. A forma como ela lida com a saudade, a identidade e as relações interpessoais ressoa profundamente com as experiências de indivíduos em busca de sentido e conexão.

Para as futuras gerações, a sua obra serve como um convite à exploração de emoções e à valorização da subjetividade. Em tempos de superficialidade e pressa, as trovas lembram a importância de refletir sobre a vida, as escolhas e os laços que formamos. Através de sua poesia, não apenas documenta a condição humana, mas também oferece um espaço para que leitores de todas as idades se conectem com suas próprias experiências, promovendo um diálogo contínuo entre passado, presente e futuro.

Em suma, as trovas de Wanda de Paula Mourthé são um testemunho da riqueza da experiência humana, uma obra que transcende o tempo e o espaço, convidando todos a uma profunda reflexão sobre o que significa viver, amar e lembrar.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Trovadores Homenageados no Blog e suas trovas em preto & branco até 18 de setembro

01 – Arlindo Tadeu Hagen  
EXCLUÍDO
02 – A. A. de Assis
03 – Carolina Ramos
04 – Cézar Augusto Defilippo
05 – Domitilla Borges Beltrame
06 – Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
07 – Edmar Japiassú Maia
08 – Edy Soares
09 – Fabiano Wanderley
10 – Filemon Francisco Martins
11 – Flávio Roberto Stefani
12 – Jérson Brito
13 – Jessé Fernandes Nascimento
14 – Lucília Alzira Trindade Decarli
15 – Luiz Antonio Cardoso
16 – Mara Melinni
17 – Messias da Rocha
18 – Nemésio Prata Crisóstomo
19 – Professor Garcia
20 – Renata Paccola
21 – Renato Alves
22 – Rita Marciano Mourão
23 – Therezinha Dieguez Brisolla
24 – Vanda Fagundes Queiróz
25 – Wanda de Paula Mourthé

Ao todo são 50 trovadores. Após a publicação do último haverá um link para acessar o e-book com todos os trovadores, de distribuição gratuita.

Até lá, acesse no Blog, no link

Antonio Juraci Siqueira (Ela)

Não me pergunte seu nome, quem é, de onde veio nem para onde foi. Não posso precisar nem mesmo a primeira vez que Ela apareceu. Tampouco deixou, ao partir, qualquer coisa que pudesse identificá-la. Chegava sempre sem aviso trazendo a noite nos cabelos negros e o dia na concha dos olhos claros, repletos de mar e sol. Sua visita era inconstante. Às vezes vinha dia após dia para sumir por semanas, meses até. De repente chegava. Chegava sem-mais-porquê e ficava ali, diante de mim. Indiferente a tudo, sem dizer nada. Uma palavra sequer. Ou talvez dissesse tudo através dos olhos enormes e impenetráveis. E eu, então, quedava-me mofino. Sem ação. Mundiado. Impotente. Sem forças para esboçar a menor das atitudes. Apenas ficávamos. Os dois. Um espreitando o outro. Meio de tocaia, feito caça e caçador. Às vezes Ela parecia sorrir. Sorriso de Mona Lisa. Enigmático. Nem mesmo sei se era sorriso. Parecia escárnio, fingimento, mágoa, desprezo ou sei-lá-o-quê.

Depois começou furtivamente a surrupiar pequenas coisas de mim. Um dia pegava uma palavra que eu havia acabado de rabiscar ou um verso inteiro. Outra hora, por qualquer descuido, roubava um gesto, um trejeito, um grão de voz. Eu fazia que não via para não melindrá-la, irritá-la, sei lá. Com o passar do tempo Ela foi tornando-se audaciosa e passou a bulir nos meus sentimentos. A cavoucar minha alma. Mexer no baú das minhas intimidades: das emoções vividas às empoeiradas recordações. Chegou mesmo a apropriar-se de um punhado de sonhos que eu mantinha guardados a sete chaves. E isso à luz do dia e ante meus olhos estarrecidos. E eu ia deixando. Talvez por medo de uma inesperada reação ou porque, apesar de tudo, não quisesse perdê-la. Sem mais, nem menos, amanhecia festiva, radiante, olhos brilhantes e juvenis. Anoitecia assim para alvorecer com cara de inverno. Fechava-se em si mesma como se vida ali não existisse. Estátua banhada de sombra e luz. Tudo isso foi, pouco a pouco, minando minha alma, corroendo meus pensamentos, embaralhando meus sentimentos a ponto de não mais saber ao certo o que sentia por Ela: amor, ódio, pena, temor, mágoa, desejo... É, talvez fosse desejo. Um desejo louco de possuí-la. Desejo desabrochado na manhã que a vi despida através da porta entreaberta do meu delírio. Bela! Indescritivelmente bela! Ela conhecia minhas fraquezas e, maliciadamente, alimentava minhas fantasias com migalhas de concessões. Às vezes chegava aflorando o generoso decote para que eu pudesse devorá-lo com os olhos famintos. Gostava de sentar-se diante de mim cruzando e descruzando, maliciosamente as pernas enquanto corria a língua insinuante entre os lábios carnudos como num convite. Nunca a toquei. Em sua presença ardia em febre e cio mas uma força misteriosa, na mesma proporção da que me prendia a Ela, dela me repelia. Até que um dia, da maneira que chegara, começou a partir. Começou é o termo exato. A primeira coisa a desaparecer foi o seu sorriso. Em seguida seus olhos foram, lentamente, apagando, apagando até desaparecerem por completo. Seus lábios, rosadamente belos, esmaeceram até nada mais restar além da saudosa lembrança. Por último - meu Deus! - seu decote, qual translúcido fantasma também evaporarou ante minhas retinas desgraçadamente exaustas. E foi assim: da mesma maneira que chegou, inexplicavelmente se foi. Mas não se foi sozinha: afundou-se em seus mistérios levando consigo parte de mim.

À época não atinava o porquê de sua presença. Hoje, depois de perder-me no emaranhado matagal dos seus mistérios, talvez saiba mais dEla do que de mim. Ou do pouco que restou de mim. Mas, ao contrário do que você deve estar pensando, não enlouqueci. Nunca estive tão lúcido quanto neste momento em que mal traço estas linhas. Apenas me escondo entre metáforas para que não descubras toda a verdade que permeia estes escritos. É que a verdade nem sempre é agradável aos olhos e ao coração. Mas não duvides de tudo nem te deixes seduzir pelas imagens, por mais belas que sejam. Ou como disse o poeta: “Põe tento nas ardilosas/armadilhas dos caminhos /que há mentiras que são rosas, /verdades que são espinhos” Isso posto, um aviso: não cortes a leitura ao meio pois na esquina da próxima página ou na curva da linha seguinte poderás encontrar a resposta para tuas inquietações. Ou, quem sabe, o caminho por onde Ela fatalmente te encontrará. Num instante preciso, do nada ( ou de tudo) Ela poderá aparecer. Talvez esteja agora mesmo te espreitando por detrás de uma palavra mal dita ou na entrelinha final desta insólita viagem aos confins de mim.

Dicas de Escrita (Como escrever em primeira pessoa) – 4, final

texto por Stephanie Wong Ken


MÉTODO 4 =Polindo a narrativa em primeira pessoa

1. Leia a parte em voz alta. 
Depois de completar um rascunho da história em primeira pessoa, leia-o em voz alta. 

Ouça bem cada frase da narrativa. 

Veja se você está repetindo “eu” com muita frequência. 

Preste atenção na voz do narrador em primeira pessoa e veja se parece consistente ao longo do
texto.

Preste atenção também no tempo verbal da história. A história não pode mudar do passado para o presente e vice-versa. Ela deve se manter no mesmo tempo verbal sempre.

2. Refine a escolha de palavras e linguagem. 
Conforme revisa a sua história, veja se escolheu bem a linguagem e as palavras. 

Procure palavras que possam ser substituídas por sinônimos melhores. 

Verifique se tudo é contado de maneira concisa e clara. 

Confira se a escolha de palavras faz jus ao narrador da história.

3. Mostre sua história para outras pessoas. 
Peça para as pessoas lerem e darem uma opinião. Fale com amigos e colegas e peça para dizerem o que acham que pode deixar a história melhor.

Você também pode mostrar a história para um grupo de literatura para ver quais as opiniões e críticas deles. 

Esteja aberto aos comentários para melhorar cada vez mais a sua narrativa. 

Referências
1. http://thewritepractice.com/filter-words/
2. http://thewritepractice.com/filter-words/
3. https://owl.english.purdue.edu/owl/resource/560/15/
4. http://www.nownovel.com/blog/first-person-narrative-7-tips/
5. http://thewritepractice.com/filter-words/
6. http://www.helpingwritersbecomeauthors.com/most-common-mistakes-series-isyour-2/#
7. http://examples.yourdictionary.com/examples-of-writing-in-first-person.html
8. http://www.nownovel.com/blog/first-person-narrative-7-tips/
9. http://www.nownovel.com/blog/first-person-narrative-7-tips/
10. http://www.nownovel.com/blog/first-person-narrative-7-tips/
11. http://www.nownovel.com/blog/first-person-narrative-7-tips/

Fonte: Wikihow. Acesso em 13.09.2024

Recordando Velhas Canções (Serenata do Adeus)


(canção, 1958) 

Compositor: Vinícius de Moraes

Ai, a lua que no céu surgiu
Não é a mesma que te viu
Nascer dos braços meus
Cai a noite sobre o nosso amor
E agora só restou do amor
Uma palavra: Adeus

Ai, vontade de ficar
Mas tendo que ir embora
Ai, que amar é se ir morrendo pela vida afora
É refletir na lágrima
Um momento breve
De uma estrela pura, cuja luz morreu

Ah, mulher, estrela a refulgir
Parte, mas antes de partir
Rasga o meu coração
Crava as garras no meu peito em dor
E esvai em sangue todo amor
Toda a desilusão

Ai, vontade de ficar
Mas tendo que ir embora
Ai, que amar é se ir morrendo pela vida afora
É refletir na lágrima

Um momento breve de uma estrela pura
Cuja luz morreu
Numa noite escura
Triste como eu

A Melancolia do Fim em 'Serenata do Adeus'
A música 'Serenata do Adeus', escrita pelo poeta e compositor Vinicius de Moraes, é uma obra que transborda melancolia e a dor do término de um amor. A letra utiliza a imagem da lua, um elemento recorrente na poesia lírica para falar de mudanças e ciclos, para simbolizar que o amor que existia entre os amantes já não é mais o mesmo. A lua que 'não é a mesma que te viu nascer dos braços meus' sugere uma transformação que ocorreu tanto no relacionamento quanto nos próprios indivíduos envolvidos.

A canção prossegue com a expressão da inevitabilidade da despedida, mesmo havendo o desejo de permanecer juntos ('vontade de ficar, mas tendo que ir embora'). Vinicius de Moraes explora a ideia de que amar é um processo de constante sofrimento, uma morte lenta 'pela vida afora'. A metáfora da estrela que brilha por um momento e depois morre é uma poderosa imagem para representar a efemeridade do amor e a intensidade do sentimento que, embora forte, está fadado a se extinguir.

Por fim, a música termina com uma súplica dolorosa, onde o eu-lírico pede que a amada, comparada a uma estrela, parta, mas que antes deixe uma marca indelével de dor e desilusão. A 'Serenata do Adeus' é, portanto, um lamento pela perda, uma aceitação do fim e um reflexo sobre a natureza passageira do amor, tudo isso embalado na suavidade e na profundidade lírica características de Vinicius de Moraes.

"Esta é uma das raras composições em que o Poetinha Vinícius assina também a melodia. Foi composta em 1953, quando ele trabalhava na embaixada brasileira em Paris, capital da França. Em 1958, "Serenata do adeus" surgiu em dois registros: o de Elizeth Cardoso, pela Festa, no histórico LP "Canção do amor demais", e este, de uma cantora que então estreava em disco: a paulistana Isolda Corrêa Dias (1934-2000), que, inicialmente, adotou o pseudônimo de Morgana Cintra, depois reduzido para Morgana.

Sua gravação saiu pela Copacabana, em junho de 58, no 78 rpm , com sucesso absoluto, e também abriu seu primeiro LP, "Esta é Morgana". O maestro Osmar Milani (não Oscar!), que a acompanha com sua orquestra, pertenceu durante anos ao "staff" de Sílvio Santos" (Samuel Machado Filho).

Fontes:
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção no Tempo. Vol. 1. Editora 34, 1997.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Therezinha Dieguez Brisolla (Trov’ Humor) 39

 

Cézar Augusto Defilippo (Trovas em preto e branco)


1
Ao ver-te mãe, insegura,
percebo em meio à pobreza
que o teu olhar de ternura
tem muito mais de tristeza.
 2
Canoeiro chora ao marco
da seca, drama do estio,
ao ver carcaças do barco
no leito seco do rio...
3
Leitura bem decifrada,
ciúme é momento mudo...
Voz e gestos não são nada
quando os olhos dizem tudo!
4
Luar, viola e sertão
nos mostram com harmonia
como a própria solidão
precisa de companhia...
5
Muita gente sofre e chora
porque trocou sem receio
toda certeza do agora
por um depois que não veio.
6
Na ingratidão que és capaz
tua conduta me diz:
- não passo de um “tanto faz”
para alguém que eu tanto fiz...
7
Não seja precipitado,
torne o tempo bem vivido,
mais vale um antes pensado
que um depois arrependido...
 8
O meu ontem foi mentira...
Falsos sonhos... glória vã...
Mas meu fracasso não tira
a esperança do amanhã.
9
Raízes... braços em coma
no mangue que já morreu,
buscam no barro o bioma
que o homem não protegeu.
10
Serve de exemplo na história
com grandeza habitual,
quem ao fracasso ou vitória
mantém a conduta igual!
 11
Sozinho, meu caminhar,
mostra a razão mais sincera
se vivo sem regressar
é porque ninguém me espera.
12
Tendo a plástica da Estela
pele "daquele lugar",
vira e mexe a cara dela
tem vontade de sentar.

As Trovas de Cézar Augusto Defilippo (Zé Gute) em Preto & Branco
por José Feldman

SIGNIFICADO DAS TROVAS; TEMÁTICA E RELAÇÃO COM LITERATOS DE DIVERSAS ÉPOCAS

Trova 1. Amor Materno e Tristeza
A primeira trova reflete a dualidade do amor maternal, mostrando como a ternura pode ser acompanhada de tristeza, especialmente em situações de pobreza. A mãe, símbolo de cuidado, também carrega o peso das dificuldades.

Castro Alves em "O Canto de Buarque" também retrata a dor e a luta das mães, especialmente em contextos de opressão e pobreza. 

Adélia Prado expressa, em seus poemas, a complexidade do amor materno e a tristeza que pode acompanhá-lo. Explora a relação entre mãe e filho em “A Mãe”, revelando a profundidade e a complexidade dos sentimentos envolvidos.

Sylvia Plath (poeta norte-americana, 1932 – 1963) em poemas como "Daddy", explora a complexidade do amor e a dor associada às relações familiares, refletindo a tristeza que pode coexistir com a ternura.

Trova 2. Canoeiro e a Seca
Aqui, a seca representa a devastação ambiental e a luta do povo sertanejo. O canoeiro, em sua dor, simboliza a perda não apenas de recursos, mas também de esperança. A imagem é poderosa, reforçando a resiliência humana frente à adversidade.

Gonçalves Dias, em "Canção do Exílio", fala sobre a relação do homem com a natureza e a saudade que esta provoca. 

Cecília Meireles aborda a solidão e a luta do homem em relação ao ambiente, refletindo a conexão com a terra e as dificuldades enfrentadas. No poema "A Flor e a Náusea", ela explora a beleza da natureza em contraste com as dificuldades da vida, refletindo sobre a luta e a resiliência.

Pablo Neruda (poeta chileno, 1904-1973) em "Ode ao Mar", fala sobre a relação entre o homem e a natureza. Sua obra muitas vezes aborda a luta contra a adversidade e a conexão profunda com a terra.

Trova 3. Olhos que Falam
Esta trova explora a comunicação não verbal, sugerindo que os sentimentos mais profundos muitas vezes são revelados através dos olhos. A ideia de que o que não é dito pode ser mais eloquente do que palavras ressoa fortemente nas relações interpessoais.

Fernando Pessoa, em "O Guardador de Rebanhos", através do seu heterônimo Alberto Caeiro, o explora a simplicidade da observação e a comunicação com a natureza, enfatizando a expressão que vai além do verbal. 

Marianne Moore (poetisa norte-americana, 1887–1972) enfatiza a comunicação não verbal e a expressividade dos olhos em suas obras. Em "The Fish", Moore descreve a beleza e a complexidade dos olhos do peixe, sugerindo uma comunicação que vai além das palavras. Em "To a Snail", Moore reflete sobre a observação e a percepção, sugerindo que a comunicação pode ser encontrada na delicadeza dos movimentos e na presença dos seres.

Rainer Maria Rilke (poeta austríaco, 1875 – 1926), em seus "Sonetos a Orfeu", explora a comunicação profunda que vai além das palavras, revelando como os olhos podem expressar emoções intensas.

Trova 4. Solidão e Companhia
A relação entre solidão e a necessidade de conexão é central. A trova sugere que, mesmo na solidão, há um desejo intrínseco por companhia, refletindo a natureza social do ser humano e a importância das relações.

Álvares de Azevedo trata da solidão em muitos de seus poemas, refletindo sobre a busca por conexão. "Noite de Luar" reflete a solidão do eu lírico diante da beleza da noite, capturando a melancolia e a busca por companhia.

Mário Quintana fala sobre a solidão e a busca por companhia, abordando o tema com uma leveza poética. "Oração do Tempo" aborda a passagem do tempo e a solidão que pode acompanhar as reflexões sobre a vida, sugerindo a importância das memórias. Em "A Rua dos Cataventos", o poeta evoca a solidão em meio à cidade, destacando a busca por companhia em um ambiente muitas vezes desolador.

A solidão é um tema central na obra de Emily Dickinson (poetisa norte-americana, 1830 – 1886). Seus poemas frequentemente refletem a busca por conexão em um mundo isolante, ressoando com a temática da solidão e da companhia. No poema “I felt a Funeral, in my Brain", Dickinson explora a solidão e a percepção de um estado mental isolado, simbolizando a busca por conexão. 

Trova 5. Expectativas e Desilusões
Esta estrofe aborda a troca de certezas por esperanças incertas, refletindo a desilusão que muitos enfrentam ao buscar futuros ideais. É uma crítica à falta de gratidão pelo presente e à propensão a idealizar o que ainda não existe.

Olavo Bilac em "O Caçador de Esmeraldas" reflete sobre a desilusão e a busca por ideais inatingíveis.

Adriana Falcão explora a frustração e as expectativas em suas narrativas poéticas. "O Mundo de Tinta" aborda as expectativas sobre a vida e a desilusão que pode ocorrer quando a realidade não corresponde aos sonhos. 

Charles Baudelaire (poeta francês, 1821 – 1867) em "As Flores do Mal", aborda a desilusão e a busca por ideais, refletindo a frustração que pode surgir quando as expectativas não são atendidas.

Trova 6. Ingratidão e Sacrifício
A dor da ingratidão é expressa com intensidade, revelando a decepção de quem se sacrifica por amor. Essa troca desigual ressalta a fragilidade das relações e a importância de reconhecer o valor das contribuições alheias.

Cláudio Manuel da Costa escreve sobre a ingratidão e o amor não correspondido em suas obras, refletindo a dor do sacrifício. "O Louco" reflete sobre a ingratidão e a incompreensão da sociedade em relação aos que se sacrificam por amor ou por ideais.

Hilda Hilst também toca na ingratidão e na complexidade das relações humanas em seus poemas. Em "Ode aos Ratos", Hilst aborda a ingratidão e a traição nas relações, utilizando metáforas para expressar a dor emocional. 

William Wordsworth (poeta inglês, 1770 – 1850) fala sobre a ingratidão da sociedade em relação à natureza e aos que sacrificam suas vidas pelo bem comum, refletindo a dor do sacrifício não reconhecido. "The Prelude" explora a ingratidão da sociedade em relação à natureza e ao papel do indivíduo, refletindo sobre os sacrifícios feitos por uma vida de introspecção. 

Trova 7. Reflexão e Arrependimento
A sabedoria de agir com prudência é o foco aqui. A ideia de que um planejamento cuidadoso é mais valioso do que a ação impulsiva é um ensinamento essencial, especialmente em tempos de decisões rápidas.

Tomás António Gonzaga, reflete sobre escolhas e arrependimentos, especialmente em contextos de amor. "Marília de Dirceu" expressa a solidão do eu lírico em sua busca por amor e sentido, refletindo sobre a dor da ausência. "Cartas Chilenas" aborda a solidão e a busca por liberdade, questionando a vida e suas angústias.

Carlos Drummond de Andrade frequentemente aborda a reflexão sobre a vida e as consequências das escolhas em seus poemas. "No Meio do Caminho" reflete a solidão e a inevitabilidade dos obstáculos na vida, simbolizando a busca por sentido. "A Máquina do Mundo" aborda a complexidade da existência e a solidão que acompanha a busca por compreensão no mundo. Em "Quadrilha" o eu lírico expressa a solidão e a desilusão nas relações amorosas, revelando a busca por conexão e sentido.

T.S. Eliot (poeta norte-americano radicado na Inglaterra, 1888 – 1965), em "The Love Song of J. Alfred Prufrock" explora a reflexão e o arrependimento, abordando as escolhas da vida e as consequências que elas trazem.

Trova 8. Esperança no Fracasso
Esta trova traz uma mensagem de otimismo, ressaltando que os fracassos não anulam a esperança. A ideia de que o passado não define o futuro é inspiradora e encoraja a resiliência.

Vinicius de Moraes, em muitos de seus poemas, fala sobre a esperança mesmo em meio ao fracasso amoroso e existencial. "Soneto de Fidelidade" reflete sobre o amor e a inevitabilidade da passagem do tempo, enfatizando a transitoriedade das experiências. "Eu Sei que Vou Te Amar" expressa a intensidade do amor, mesmo sabendo que tudo é passageiro, destacando a busca por momentos significativos. Em "Soneto de Separação", Vinicius aborda a dor da separação e a transitoriedade das relações, refletindo sobre o que permanece após o fim de um amor.

Alice Ruiz expressa a transformação e a esperança que surgem após períodos de dificuldade. Podemos citar poemas como "A Vida É Uma Tarde", onde ela reflete sobre as dificuldades da vida e a capacidade de renovação que surge após momentos difíceis. Em "O Coração É Um Caçador", através da metáfora do coração, Ruiz fala sobre a busca por amor e a esperança que se renova mesmo após desilusões.

A poesia de Langston Hughes (poeta norte-americano, 1901 – 1967), especialmente em "The Negro Speaks of Rivers", aborda a resiliência e a esperança que surgem mesmo após fracassos históricos e pessoais.

Trova 9. Natureza e Descuido
A crítica ao descaso humano em relação ao meio ambiente é evidente. As raízes e o mangue simbolizam a conexão com a natureza, enquanto o "bioma que o homem não protegeu" denuncia a responsabilidade que temos sobre o mundo natural.

Guilherme de Almeida faz críticas sociais e ambientais, refletindo sobre a relação do homem com a natureza. "Oração do Fogo" reflete sobre a força renovadora do fogo, simbolizando a esperança que surge da transformação. Em "A Flor de Lis" o poeta utiliza a imagem da flor como símbolo de renascimento e esperança, abordando a beleza que pode emergir das dificuldades.

Marcos de Andrade aborda a degradação ambiental, alertando sobre a responsabilidade humana. "Renovação" explora a ideia de recomeços e a força da esperança diante das dificuldades da vida. No poema "Esperança", o poeta fala sobre a luz que a esperança traz, mesmo em momentos sombrios, ressaltando a importância de acreditar em um futuro melhor.

William Blake (poeta inglês, 1757 -1827), em obras como "Songs of Innocence and Experience", critica a relação do homem com a natureza e a degradação que resulta do descaso humano.

Trova 10. Manutenção da Conduta
A igualdade de conduta diante do sucesso e do fracasso é um valor essencial. A estrofe sugere que a verdadeira grandeza está em manter a integridade, independentemente das circunstâncias.

Machado de Assis frequentemente explora a moralidade e a integridade humana. No romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas", Machado de Assis critica a sociedade do século XIX, abordando a hipocrisia e as injustiças sociais através da perspectiva de um narrador defunto. "O Alienista" através da figura do Dr. Simão Bacamarte, explora a loucura e a crítica social, revelando as injustiças na forma como a sociedade trata os que são diferentes.

Ruth Escobar fala sobre a importância da conduta ética em tempos de adversidade. “A Revolução de Outubro" fala sobre a luta por justiça e igualdade, refletindo as desigualdades sociais e a necessidade de mudança. "Canto da Liberdade" aborda a busca por liberdade e justiça, enfatizando a luta contra a opressão e a desigualdade.

Robert Frost (poeta norte-americano, 1874 – 1963) em "The Road Not Taken" reflete sobre a manutenção da integridade diante de escolhas difíceis, enfatizando a importância da conduta em momentos decisivos.

Trova 11. Caminhada Solitária
A solidão escolhida é um tema profundo, refletindo sobre a ausência de expectativas de retorno. Essa escolha revela uma busca por autenticidade e a liberdade que vem com a independência emocional.

Fernando Pessoa, frequentemente aborda a solidão e a busca por identidade. No "O Livro do Desassossego", o narrador reflete sobre a solidão e a busca por um sentido na vida, explorando a complexidade da identidade.

Marcelino Freire explora a solidão e a busca por autenticidade em suas narrativas poéticas. "Contos Negros" é uma coleção de contos que explora a solidão e a busca por identidade em contextos marginalizados, abordando a vida de personagens em situações difíceis. "Nossos Ossos" reflete sobre a solidão da existência humana e a luta interna por reconhecimento e identidade.

Henry David Thoreau (poeta norte-americano, 1817 – 1862), em "Walden" aborda a solidão e a procura por autenticidade, refletindo sobre a vida simples e a conexão com a natureza.

Trova 12. Beleza e Identidade
A leveza desta trova contrasta com as temáticas mais pesadas anteriores. A referência à beleza e à identidade sugere uma busca por aceitação e a complexidade das relações humanas, misturando humor e reflexão.

Olavo Bilac também trata da beleza e da identidade em sua poesia, refletindo sobre a estética e o eu, em "O Caçador de Esmeraldas", Bilac reflete sobre a busca pela beleza nas coisas simples e a relação com a natureza, simbolizando a identidade e a essência do ser; em "Saudade" ele explora a beleza da lembrança e o impacto das experiências passadas na formação da identidade. 

Ana Cristina Rodrigues fala sobre a beleza e a busca pela identidade em um mundo em transformação. "Poesia para Quem Não Gosta de Poesia" aborda a memória de forma lúdica e reflexiva, destacando a importância das vivências passadas na construção da vida. "As Coisas que Perdemos no Fogo", embora não seja exclusivamente dela, Ana Cristina contribui com textos que dialogam sobre a memória e a perda, ressaltando a carga emocional das recordações.

Walt Whitman (poeta norte-americano, 1819 – 1892), em "Leaves of Grass" celebra a beleza da individualidade e da identidade, promovendo uma aceitação da diversidade humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As trovas de Zé Gute, com sua simplicidade e profundidade, refletem uma variedade de temas que dialogam com a experiência humana, como amor, solidão, natureza e as sutilezas do cotidiano. Sua linguagem acessível, marcada por um tom coloquial, aproxima o leitor de uma reflexão íntima, tornando suas mensagens universais e atemporais.

Ele se insere em uma tradição de poetas brasileiros que valorizam a oralidade e a musicalidade, como Carlos Drummond de Andrade e Adélia Prado, que também exploram a relação entre o indivíduo e o mundo que o cerca. Além disso, suas trovas estabelecem conexões com poetas estrangeiros, como Pablo Neruda, cujas obras também abordam a condição humana com lirismo e sensibilidade.

A importância das trovas de Zé Gute para a sociedade atual e para futuras gerações reside na sua capacidade de ressoar com as emoções e as inquietações contemporâneas. Em tempos de incerteza e desassossego, suas palavras oferecem consolo e esperança, incentivando uma reflexão crítica sobre a vida e a convivência. Ao perpetuar a tradição da trova, ele não apenas mantém viva uma forma poética rica, mas também convida novas vozes a se expressarem, garantindo que as futuras gerações possam encontrar na poesia um espaço de diálogo e identificação.

Assim, suas trovas se afirmam como um patrimônio cultural, essenciais para a construção de uma sociedade mais sensível e conectada às suas raízes, ao mesmo tempo em que projetam um olhar esperançoso para o futuro.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Renato Frata (Marcas do ontem)

Há momentos em que o inusitado tira o sorriso da boca para lhe colocar um palavrão. Foi assim que logo pela manha, ao sair da garagem, fui literalmente atropelado por um pardal que, espaventado, trombou no vidro e plof., caiu agonizando.

Como é fofo, tem pouca força e a velocidade do carro era mínima, ele não morreu, mas ficou estrebuchando, tontinho da silva. Peguei-o e o levei sob o jato de água fria da torneira à mercê de restabelecimento, momento em que fui tomado por uma lembrança guardada no baú de memórias.

Vi-me de calça curta, camisa aberta no peito e com um embornal cheio de pombinhas mortas a estilingue. 

As mãos segurando agora o pequeno pardal sob o jato frio para lhe dar vida, eram as mesmas que depenavam, estripavam, cortavam, lavavam e salgavam corpos e corpos de aves, para levá--los à cozinha e se transformarem em complemento da indefectível polenta do dia a dia.

Era maldade? Não, necessidade. Combatia a fome, dava abrigo. A pobreza exige que se eliminem princípios! E até se pode dizer que a miséria animaliza.

Sorte que a consciência nos põe em pé para contar, arrepender e ao mesmo tempo se desculpar. Ninguém refaz o passado, apenas o lamenta. Quando pode.

Um fio de sangue aflorou entre os bicos do pardal, o que me trouxe mais apreensão, todavia, em alguns instantes ele se mexeu, tentou bater asas, mas o mantive: não há quem não reaja sob uma ducha gelada.

Depois ele abriu os olhos e piou, sacudiu a cabeça e forçou novamente como se dissesse estar pronto para outra aventura. Seu coraçãozinho esticava e retraía, da mesma forma como batia o meu quando, nos almoços regados a caldo de pombinhas, a polenta ganhava novo sabor.

Tirei-o da sufocação da água, saí ao sol, sequei-o e, notando que melhorara, abri as mãos. Ele se foi, para cair logo a uns seis, sete metros e voltar a se bater. Tentava se levantar, mas caía. Corri, peguei-o de volta, conversei amenidades, aninhei-o na toalha e o pus sobre o banco do carro para que só saísse quando sentisse que era hora.

Ele se mexeu, recuperou-se, se levantou, voou com segurança e, como se nada houvera, pousou sobre o muro onde se esticou, estendendo ao sol as penas. Piou duas ou três vezes, como se nada de estranho houvesse, e voou. Não sei como funciona a memória de um pardal, se ele é capaz de se lembrar ou se existe um limite, mas esse episódio serviu-me para reflexão: o passado - bom ou mau - deve ser visto como aquela bolha que se forma na sola dos pés depois de longa caminhada. Ela dói, murcha, seca, descasca a pele e até esquecemos dela sem nos preocupar com a marca, mas sempre estará ali.

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

Vereda da Poesia = Carolina Ramos (Santos/SP)



Dicas de Escrita (Como escrever em primeira pessoa) – 3

texto por Stephanie Wong Ken
MÉTODO 3 = Evitando as armadilhas da primeira pessoa

1. Evite começar todas as frases com “eu”. 
Embora você esteja escrevendo na perspectiva de primeira pessoa, as frases não podem começar somente com “eu”, senão, sua narrativa ficará repetitiva e cansativa. Tente variar as frases para não começar sempre com dessa forma.

Em vez de escrever duas frases seguidas, como “Eu desci as escadas com o coração acelerado. Eu podia ouvir a aranha descendo a parede atrás de mim”, você pode escrever “Eu desci as escadas com o coração acelerado. Atrás de mim, descia a aranha pela parede”.

2. Não reporte a ação usando “eu”. 
Permita que o narrador em primeira pessoa descreva a cena ou momento a partir do próprio ponto de vista.

Não use a voz passiva ao descrever uma cena ou momento através do narrador em primeira pessoa, senão, o texto vai parecer apenas um relatório ou resumo dos eventos, em vez de permitir que o leitor compreenda os eventos conforme eles se desenrolam.

Por exemplo, em vez de escrever “Eu encontrei a Márcia e ela me disse que havia deixado a lição em casa. Eu me senti mal por ela e disse que ela não deveria se sentir tão mal”, você pode colocar o leitor diretamente na cena. 

Escreva: “Quando entrei no ginásio, me deparei com Márcia. ‘Esqueci minha lição em casa’, ela reclamou. Coloquei minha mão sobre o ombro dela e tentei confortá-la. ‘Não fique triste’, disse.”

3. Tente não estabelecer uma distância entre o leitor e o “eu”. 
Usar “pensei”, “vi” ou “senti” pode criar uma distância entre o leitor e a narração entre primeira pessoa. Evite usar esses verbos quando for escrever, pois podem enfraquecer a narrativa.

Por exemplo, em vez de escrever “Eu fiquei triste por tê-la perdido como uma amiga”, escreva “A tristeza encheu meu coração quando percebi que estava perdendo-a como amiga”.

Você também pode simplesmente remover o “eu pensei” ou “eu vi” em uma frase para deixar a perspectiva de primeira pessoa mais forte. Por exemplo, em vez de escrever “Eu passei por ela no corredor e quase parei para falar com ela, mas pensei “Por que me incomodar? Ela vai me rejeitar mesmo!”, remova o “pensei” e deixe a ação mais concisa.

Escreva “Eu passei por ela no corredor e quase parei para falar com ela, mas continuei andando. Por que me incomodar? Ela vai me rejeitar mesmo!”
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continua…
Fonte: