domingo, 15 de novembro de 2009

Gilmar Cardoso (A Verdadeira Origem do Carneiro no Buraco)


Esta história começou já se vai quase um século. Eu mesmo confesso que desconhecia a verdadeira origem do prato típico do Município de Campo Mourão-PR, até colidir meu carro em outro onde viajavam dois nobres anciãos: o Tenente Soares e seu fiel escudeiro Benevides, ambos na casa dos seus noventa anos, bem vividos, diga-se de passagem. Isto aconteceu no ano passado no litoral do Estado de Santa Catarina, durante as férias mais controvertidas que já tive.

Quebrei vários ossos, mas não corri risco de morte, ao contrário dos velhinhos. Ficamos os três em uma só enfermaria, e como não podia ser de outra forma, conversávamos, ou seja, entre os “ais” de dor, falávamos sobre os mais diversos assuntos, até mesmo sobre o Carneiro no Buraco e a história de que ambos presenciaram a primeira vez que essa iguaria foi consumida.

Abre aspas: Viajava nossa caravana em busca da Água da Fonte de São João Maria de Jesus, que segundo se sabia, ficava cerca de doze léguas a oeste do povoado de Campos do Mourão num lugarejo batizado por Pinhalão. – disse o oficial. Vínhamos da já frondosa Guarapuava, a qual era matrona de toda essa região, cujo percurso fazíamos em lombos de mulas. Se me lembro bem, o Zizinho e o Cacique vinham a pé. Um burro forte carregava a cozinha, que era composta dos víveres, uma chaleira de ferro para esquentar a água do chimarrão, talheres de pau, e um tacho de cobre com tampa. A água carregávamos nas cabaças.

Estávamos já há muitos dias andando por uma estrada conhecida como Caminho Pisado, uma antiga via que possuía cerca de oito palmos de largura, uma profundidade de 0,40cm e forrado por gramíneas que impediam o crescimento do mato. Esse histórico ramal era popularmente conhecido como caminho das tropas ou Peabiru; e naquele tempo ainda era bem delineado.

Nossas provisões estavam no fim, assim como a pólvora. Sem comida e sem jeito para caçar, a situação começou a ficar insustentável. Mas Deus nunca havia sido tão generoso para conosco como naquele dia.

Num final de tarde, Zizinho e o Cacique afastaram-se um pouco do acampamento para ver se encontravam alguns frutos que se pudesse amenizar a fome. Mas adivinha o que encontraram? Dois carneiros gordos!

Um deles eles conseguiram pegar. E como bons mateiros que eram, o trouxeram destripado ao acampamento. O animal pesou cerca de 30 quilos, depois de limpo e cortado em pedaços. — Não deixa o animal balir, meu pai dizia que dá azar e é sinal de que o próximo a morrer é você! — ouvia-se por ali como influência da cultura popular.

O japonês, nosso mestre-cuca, ativou o fogo, juntou tudo o que restava da dispensa: tomate, cebola, batata doce, batata salsa, chuchu, abobrinha, cenoura, vagem, pimentão, mandioca e maçã; e foi logo botando tudo para cozinhar no tacho de cobre com tampa.

Chegava o crepúsculo daquele dia distante. Estávamos todos ansiosos para saborear o cozido, que naquele instante começava a ferver. Mas a alegria do pobre dura pouco, e não demorou mais um minuto que ouvimos tiros, seguidos por berros: “ladrões de carneiro, vou cobri-los de chumbo!”

Mais do que depressa Zizinho, Cacique e o Japonês trataram de se livrar dos vestígios do animal roubado. A opção foi o buraco deixado pelo tronco de um pé de jaracatiá apodrecido. Nele colocaram o tacho, juntamente com o material incandescente: brasas vivas do nó de pinho; e depois o cobriram com a terra de um cupinzeiro abandonado que havia nas imediações. Além disso, cobriram também a terra removida com folhas para não gerar nenhuma suspeita de que ali havia um jantar sendo preparado.

De repente apareceu no acampamento um homem baixinho, tez clara e nariz afilado. Trazia às costas uma enorme espingarda, cuja boca do cano ainda saía um pouco de fumaça. Fedia mais que as mulas.

De véspera, olhou para uma botija que havia sobre os arreios, e foi logo perguntando se era vinho. Eu disse que era e ele poderia bebê-lo todo se pudesse.

Nem precisei insistir. Não demorou nem meia hora e o baixinho estava mais bêbado que gambá de alambique. Falando mole ele dizia que os carneiros não sobreviveriam mesmo naquelas condições. A bicharada iria comê-los mais dia, menos dia.

Não demos o braço a torcer nos entregando de que havíamos surrupiado o animal, talvez fosse uma estratégia do tal baixinho.

Escureceu profundamente. A fome aumentava e nosso convidado não ia embora.

Lá pela meia noite ele adormeceu. Podíamos até desenterrar o tacho se quiséssemos, pois naquelas condições o homem da espingarda não iria perceber, já que dormia sua total embriaguez.

Num verdadeiro ritual, aos poucos fomos retirando as folhas que estavam sobre o buraco em que havíamos colocado o tacho, até o descobrir totalmente. Enquanto isso os outros estavam a acender um novo fogo que de fato serviria para terminar de cozinhar o carneiro, nossa única opção do jantar daquele dia.

Mas tão grande fora a surpresa quando o japonês retirou a tampa do tacho, o carneiro estava totalmente cozido, tenro, macio e delicioso!

Não sabíamos, mas naquela noite nascia uma iguaria exótica. Nossa viagem terminou e por muitas outras vezes cozinhamos carneiros daquele modo, só que juntando a ele outros temperos, tais como: pimenta do reino, alho, ajinomoto, cebolinha, salsinha, vinagre de vinho, óleo e sal.

Certa ocasião, na década de 60, eu estava em São Paulo e como você já percebeu, gosto de contar histórias e contei essa passagem a um grupo de americanos. Alguns anos depois fiquei sabendo que eram eles cineastas e que até utilizaram minha receita num daqueles filmes de bang-bang.

Naquele instante percebi que Benevides estava muito quieto e o chamei por várias vezes. Ele não respondeu. Havia morrido enquanto seu companheiro me contava a história.

No dia seguinte o Tenente já não tinha mais forças, falava entre longas pausas já com voz sumida. Mas antes que desse o último suspiro, chamou-me para perto de si e disse: “você pode ter duvidado da história que lhe contei, mas se quiser saber certeza, pergunte ao falecido Nereu e o finado Deodato, eles também estavam lá”. Fecha aspas.

Essa foi a história que o valente tropeiro militar Tenente Soares me contou, antes de ter o corpo encomendado por um padre coadjutor de Guarapuava, da Congregação do Verbo Divino, que lhe aspergiu água benta sob o “olhar” vigilante da imagem de São José, que adornava o oratório daquele hospital. Ao longe soou um berrante...

Fonte:
Conto de abertura do livro "Enquanto conto, encanto o conto" - contos, lendas e rumores, Organizado pela Fundaçao Cultural de Campo Mourao.1ª. ed. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2004. v. 5000. 100 p.
Imagem = montagem de José Feldman

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