terça-feira, 24 de novembro de 2009

Alberto Peyrano (Uma noite Memorável)



Uma reunião à beira de um lago, na Suiça, marcou a mudança fundamental de quatro escritores e ao mesmo tempo surgiria, projetando-se desde as sombras do inconsciente para a noite dos tempos futuros, um dos mais famosos monstros da literatura moderna de terror: “Frankenstein”.

Lago Le Man, Genebra, Suíça.

Na fria e tempestiva noite de 16 de junho de 1816, começo de um verão atípico (os efeitos da erupção de um vulcão da Indonésia tinha dado uma queda na temperatura, no centro da Europa).

Junto ao lar aquecido, uma jovem lê em voz alta, pausada e acentuadamente, as passagens de um conto de terror. Em frente a ela, três homens e uma mulher escutam atenciosamente.

O jogo de luzes aludia demonstrando as chamas, que realçando o grande ambiente quase em penumbras, colocava em movimento as sombras aleatórias que incorporadas aquele momento, deixava o cenário com toque de realidade.

Parecia um contexto completo, como se parte de uma fantasmagórica cenografia fosse de fato a história contada, daquele local, ou seja, dentro da enorme e antiga mansão.

A tensão aumenta. Eles se acomodam em seus assentos, cruzam e movem as pernas impacientes, numa evidente demonstração automaticamente nervosa. A jovem ouvinte, olha para atrás pois tem a impressão de ver algo se mover na escuridão, o mais jovem deles repetidamente reconta os dedos sobre o braço que apoiado ao sofá.

A atenciosa leitora, que não tem mais do que 18 anos, ininterruptamente, mantém sua leitura, totalmente compenetrada na história traduzindo com ênfase perfeita sua narrativa.

Ao concluí-la, o silêncio é total, cada um impressionado e calado, refletindo o que acabara de escutar. O ambiente tenso, deixa no ar a presença do medo que sob o clima do local, chega a demonstrar o efeito perturbador que de todos se apossa.

Rompendo a lassidão, um dos homens levanta-se lentamente, e veste uma longa bata de veludo vermelho. Seu olhar é profundo, o cabelo, ondulado e escuro, toma matizes dourados à luz das aludidas chamas.

Caminha mancando e em passos vagarosos, aproxima-se da jovem narradora lentamente.

Observando-a para a sua frente e fixando o olhar naqueles olhos grandes e claros, agarra o livro que esta apoiado em seu colo e se voltando aos demais brada com autoritarismo, seriedade e firmeza:

-“Escrevamos uma história de fantasmas cada um de nós”.

Afora, a tormenta desata-se, os céus derrubam-se sobre o mundo numa catarata eletrizada que continuamente e de forma aterrorizante, quebra a escuridão. O rugido da tempestade põe sua nota grave nesse apocalíptico concerto de fúria e destruição. Sem o poder de locomoção em razão do tempo e suas consequências, evidencia-se que sair dali é inviável. Assim, nossos quatro amigos, a mercê do tempo e das condições ficam confinados naquele lugar ermo, sem referências nem previsões do tempo exato que por lá, se manterão.

(No verão de 1816, o casal formado pelo poeta Percy Shelley e a escritora Mary Wollstonecraft (posteriormente conhecida como Mary W. Shelley), acompanhado por Claire, irmã de Mary, decidiu viajar desde Londres até o lago Le Man, na Suíça.

Ali contactaram-se com o poeta Lord Byron, que achava-se temporariamente na área, e com John Polidori, o médico pessoal de Byron. Não demoraram em fazer amizade e surgiu entre eles uma relação amistosa que foi-se acentuando com o correr dos dias.

Suas reuniões noturnas chegavam até altas horas ou, as vezes, até a saída do sol. Os quatro discutiam e trocavam idéias sobre filosofia, literatura, política.

Mas antes de continuar com esta história, é preciso localizar-nos em suas respectivas pessoalidades e vidas, para se ter uma melhor aproximação e um maior entendimento sobre a gênese de “Frankenstein”.

John Polidori nasceu em Londres, em 1795. Seu avô tinha sido um médico que escrevia seus tratados em forma de poemas, e seu pai –quando vivia na Itália- desempenhou-se como secretário do poeta Antonio Alfieri. De um modo ou outro, Polidori tinha contato com poesia já desde sua própria genealogia.

Daí que suas vocações se dividiam entre o Humanismo e a Medicina.

Graduou-se como médico aos 19 anos e sua tese doutoral versou sobre sonambulismo. Admirava profundamente a Lord Byron e cumpriu um de seus sonhos quando o poeta o nomeou médico pessoal e convidou-o a acompanhá-lo à Suíça. Conquanto ao começo a relação entre ambos foi muito boa e de muita cordialidade, não demorou Byron em prejudicar o jovem galeno, humilhando-o quanto podia, burlando-se ironicamente dele e especialmente do que escrevia.

Lord Byron, um dos maiores poetas de fala inglesa, dono de uma excêntrica personalidade e perseguido desde sempre pelos escândalos, tinha nascido em Londres em 1788 e passou sua infância na Escócia.

Era coxo de nascimento. Aos 10 anos regressa a Londres e recebe, como herança de um tio avô, o título de nobreza e umas quantas propriedades. Aos 20 anos consegue uma cadeira na Câmara dos Lores e começa a viajar pela Europa ao mesmo tempo que sua fama poética se estendia por todo o continente. Em 1815 casou-se – talvez para dar por terra com os rumores de uma relação incestuosa com sua irmã- e foi abandonado por sua esposa ao ano seguinte. Dessa união nasceu uma filha que nunca conheceu. Em poucos meses, abrumado pelos escândalos, abandona para sempre sua Inglaterra, não sem antes levar-se com ele a seu médico, dada sua débil natureza enfêrma.

Percy Bisshe Shelley, nascido em 1792 em Sussex, pertencia à nobreza. Desde muito jovem germinaram nele idéias sobre ateísmo e amor livre, que levava para seus versos ironicamente. Isto lhe valeu a expulsão de um dos melhores colégios de Oxford. Contava então 19 anos. Apaixonado de Harriet Westbrook, fuga-se com ela à Escócia. Persistindo em suas idéias sobre o amor livre, convida a seu camarada Hogg a compartilhar com ele sua casa e sua mulher, mas Harriet negou-se.

Voltam a Londres, têm dois filhos, e a crescente infelicidade em seu casal faz que o poeta, ao freqüentar a livraria de Mr. Godwin, apaixone-se da filha do livreiro, Mary. Quatro anos depois daquela primeira fuga, Percy volta a repetir o fato, abandonando sua família e levando-se à Mary e sua irmã Claire com ele. Os três viajam para a França e depois se estabelecem na Suíça. Mas não demoram em voltar a Londres. Novamente ali, Claire tem amores com o poeta Byron, quem aos poucos perde interesse por ela e parte para a Suíça. É então que Claire pede a Mary e Percy partir novamente para o continente a seguir da pista de seu amante. Os três, no verão de 1816, chegam ao lago Le Man.

Nascida em Londres em 1797, Mary Wollstonecraft Godwin tinha ficado órfã de mãe aos poucos dias de nascer. Posteriormente seu pai voltou a casar-se e brindou à menina uma esmeradísima e enciclopédica educação que faria de Mary uma mente brilhante. Desde pequena contata-se com literatura e com toda a magia das terras altas escocesas onde passava seus verões. Sua união com Shelley lhe facilitou o aprofundamento em Poesia e Filosofia. Amava profundamente ao jovem poeta, ainda que não cedeu aos mesmos requerimentos que Shelley tinha feito com sua primeira esposa: compartilhá-la com seu amigo Hogg. Frente aos desencontros amorosos de sua irmã, decide ajudá-la e os três partem para Suíça.)

A partir daquela noite nada voltaria a ser igual. Byron e Shelley, sem decidir-se a escrever o consignado conto, preferiram fazer longas caminhadas, realizaram curtas viagens até pontos próximos nos Alpes franceses e saíam a navegar numa embarcação pelo lago. Durante o dia, os dois poetas foram afiançando pontos de vistas sobre amor livre, sexualidade e moral, fortificando laço afetivo.

Durante a noite, Shelley se retirava a seus aposentos junto com sua esposa e Byron dormia com a jovem Claire. Esta notável amizade entre Shelley e Byron fez que um fosse influindo no outro, conseguindo ambos mais maturidade em suas futuras produções (assim, nota-se a influência de Shelley no poema “Manfred” e na última parte da peregrinação “de Child Harold” de Byron e, inversamente, vemos um enorme vôo byroniano no poema “Mont Blanc” de Shelley).

Não obstante, a proposta literária de Byron não tinha passado despercebida nem para Polidori nem para Mary. Depois de várias tentativas que causaram os risos e burlas de Lord Byron, Polidori apelou às antigas lendas da Europa Central e esboçou o rascunho de seu famoso conto “O Vampiro” (que depois de sua morte foi atribuído a Byron, mas atualmente os biógrafos e estudiosos de Polidori e de Byron devolveram ao primeiro a autêntica autoria deste relato). Desde a ótica da literatura de terror, “O Vampiro” é o antecessor direto de uma famosíssima novela que Bram Stoker escreveria oitenta anos depois. Este escritor irlandês, inspirado no relato de Polidori e na figura histórica do caudilho romeno do século XV, Vlad Tepes, conseguiu quase ao final do século (1897) um dos pilares fundamentais do horror com “Drácula”.

Antes de avançar sobre o acontecido com a figura central deste encontro, Mary, não podemos deixar de referir-nos à casa que essa noite os albergava e que tinha alugado Byron por essa temporada, a Vila Diodati. Na mesma e duzentos anos antes, tinha-se hospedado o poeta Milton, autor de “O Paraíso Perdido”, e também tinham incursionado por ela os filósofos Rousseau e Voltaire. Se nos pusermos a pensar um pouco além do que ali se gerou, nossa história se desenvolvia dentro de um marco cênico apropriado, que contava com a impregnação de toda a energia mental e espiritual de seus sucessivos visitantes, somada à dos moradores desse momento. Localizada no coração dos Alpes, a Vila Diodati foi considerada como o ponto de arranque da literatura moderna de terror.

Algo muito diferente de seus colegas passava pelo interior de Mary, como ela mesma o expressara na introdução de sua obra mor:
-“Dediquei-me a pensar num conto, um conto que pudesse rivalizar com os que nos tinham impulsionado a essa tarefa. Um conto que falasse dos misteriosos terrores de nossa natureza, e acordasse medos estremecedores, que deixasse ao leitor com temor de olhar para seu arredor, que paralisasse o sangue e acelerasse os latidos do coração. Se não conseguisse esses resultados, meu conto de fantasmas seria indigno de seu nome”.

Observamos o enorme compromisso interior que a consigna de Byron tinha engendrado em Mary. Não desejava inventar uma história “rápida” ou passageira, que depois de ler-se fora esquecida para sempre. Almejava que sua leitura mexesse com o leitor de forma intensa penetrando em seu mais íntimo interior, a fim de que alguma maneira, pudesse se enfrentar. Revelando sua própria natureza sinistra, escondida, temida e recusada. E foi este o principal objetivo, que norteou Mary, para que dirigisse os passos de sua pluma.

Não foi tarefa fácil, para Mary Shelley, compor a complicada, profunda e transcendente estrutura, argumentativa e de conteúdo, de sua obra cume. Felizmente tinha a seu favor um valioso recurso: seu mundo interior. Ela mesma relata-o desta maneira:
“Quando menina morei no campo e passei muito tempo na Escócia. As vezes fazia visitas às regiões mais pitorescas, mas minha residência habitual estava nas terras tristes e nuas que se estendem ao norte de Tay, perto de Dundee. Tristes e nuas as acho agora, ao recordá-las, mas não eram então para mim, porque resultavam-me um refúgio de liberdade e uma agradável região onde eu podia, longe de toda vigilância, bater papo com as criaturas criadas por minha fantasia.(...) Depois, minha vida se fez mais ativa e apareceu a realidade para recomeçar à ficção”.

Não há dúvida que a consigna de Lorde Byron fez ressoar nela o cordame de uma harpa longamente silenciada e, como marcada por um desígnio superior, respondeu à necessidade de tanger novamente o instrumento que, desde algum lugar de seu passado, reclamava seu atendimento.

É um fato conhecido que a Grã-Bretanha tem um clima mágico grávido de lendas, com uma mitologia própria que não pôde ter passado despercebida para a sensibilidade de Mary. Incubado em seu interior, o cosmos lendário da Inglaterra e Escócia bulia por projetar-se para a pena da escritora quem, ao receber o estímulo lançado por Byron, aciona o disparador fazendo-se cargo de uma tarefa a cumprir que coroou de glória seu propósito. Mas este fato teve todo um processo que poderíamos descrever como obsessivo e angustiante no espírito da moça. É óbvio que quando uma alma está chamada a transcender, a missão se incrusta nela, conscientemente, como uma cruz à que há que carregar até o fim.

Perseguida e controlada pelos colegas de veraneio, Mary não podia tolerar a vergonha de demonstrar seu fracasso os primeiros dias, pois a história requerida não aparecia e tudo o que se lhe ocorria era ao fim desprezado por ela mesma por considerá-lo vulgar, infantil ou passado de moda. “Eu sentia a vazia incapacidade de invenção, a maior desgraça que pode afetar um autor quando à suas ansiosas invocações responde só o nada. (...) Todas as manhãs vía-me obrigada a responder com uma mortificante negativa”.

Nos seus momentos de solidão, enfrentada ao portentoso desafio que carcomía seu cérebro, Mary desenvolveu pensamentos filosóficos que levaram-a se perguntar sobre a origem das coisas, eludindo os supostos e as carências explicativas das causas primeiras dos acontecimentos, numa tentativa por dar um armado lógico a seu trabalho. Somou seus agitados pensamentos ao que ouvia das conversas entre Shelley e Byron, quem passavam longas horas discutindo e trocando idéias sobre “a natureza do princípio da vida e das possibilidades de que chegue alguma vez a ser descoberto e dado a conhecer”. Assim, foram-se embaralhando sobre a mesa interessantes cartas de um naipe maravilhosamente ilustrado com imagens de Darwin, o galvanismo, a eletricidade e os últimos avanços da Física.

Talvez foi este o “clic” que Mary precisava para voltar àquele mundo da infância, quando a fantasia reinava em seu espírito. Essa noite, enquanto todos dormiam, a insônia lhe acordou imagens nas quais ela viu um “estudante de ciências ímpías ajoelhado junto de algo que tinha reunido. Vi elevar-se um horrível fantasma com figura de homem e depois, por obra de algum motor poderoso, dar sinais de vida e agitar-se com um movimento intranqüilo, quase como de um ser vivo”. Ao instante reflexionou sobre o Homem emulando a Deus, gerador de uma criatura a sua imagem e semelhança, e pensou no sentimento de terror que deve invadir àquele que tenha conseguido essa consciência, mediante a qual, o humano criador “fugiria horrorizado de sua horrível obra, desejando que, abandonado a si só, apagasse-se a ligeira luz de vida por ele comunicada. (...) Dorme, mas não demora em acordar e vê que aquilo está em pé junto ao leito, abre as cortinas e o olha com olhos amarelos e aquosos mas investigantes”.

Na manhã seguinte, Mary anunciou que tinha pensado um conto. As primeiras palavras desse relato foram transladadas depois ao capítulo V de sua famosa novela: “Numa lúgubre noite de novembro...”. Completou o livro durante todo o ano de 1817 e foi publicado em janeiro de 1818.

Antes de abordar o comentário sobre a ópera prima desta escritora inglesa, é necessário agregar, para arredondar a nossa história, o final destes quatro destinos que uma vez reuniram-se para se encontrar com outra dimensão humana.

John Polidori foi deixado sem trabalho por Lorde Byron e sua vida entrou em decadência, até que decidiu envenenar-se ingerindo ácido prússico em 1821, quando só contava 26 anos. Seu romance “O Vampiro” surgido do desafio byroniano, é considerado o pioneiro no gênero na Inglaterra e, posteriormente, foi a fonte de inspiração do irlandês Bram Stoker para escrever sua famosa obra “Drácula”, quem depositou na figura histórica do líder romeno Vlad Tepes as condições do não-morto que admiravelmente tinha descrito primeiro Polidori.

Lorde Byron continuou sua amizade com Shelley até a inesperada morte deste em 1822, ao ano seguinte do suicídio de Polidori. Depois, viajou a Grécia para lutar contra os turcos e morreu nesse país, doente de malária, aos 36 anos de idade.

Percy Shelley, pouco antes dos 30 anos, faleceu em um naufrágio. Seu corpo foi devolvido pelo mar dez dias depois e a mesma Mary o fez incinerar na praia onde foi encontrado.

Quanto a Mary, depois de casar-se com Shelley, teve três filhos dos quais apenas sobreviveu um. Quando ela enviuvou dedicou-se a editar e publicar a obra do seu marido, escreveu mais duas novelas e levou uma vida muito calma até sua morte, ocasionada por câncer cerebral, aos 53 anos.

O tema central do romance “Frankenstein” é a criação de um humanóide por um cientista. Isto resultaria muito simplista, se nos atemos literalmente ao exposto, enquanto não indagamos nas causas que levaram a esse fato, explicadas pelo mesmo protagonista do relato, o Dr. Víctor Frankenstein, quem criticando à ciência de sua época e aprofundando nos estudos alquímicos de Cornelius Agrippa, Paracelso e Alberto Magno, declara:
Quanto mais tenha-se feito, mais, bem mais tenho de fazer eu. Seguindo as impressões já marcadas, abrirei novos caminhos, explorarei poderes desconhecidos e revelarei ao mundo os mistérios mais profundos da Criação”.

Há um contínuo ir e vir pelo conhecimento no caminho do Víctor, aparecem assim seus professores aliados e aqueles detratores que não aceitam a antiga ciência, suas lutas internas por não acatar os mandatos de seus maiores mestres e, boiando em todo este palco, seu arremesso ao segredo mais ansiado: a chave que lhe permitirá abrir a porta da vida num ser inerte. Mas, para alcançar com sucesso esta meta, não podia ignorar um passo:
“Para conhecer as causas da vida devermos travar conhecimento primeiro com a morte. Aprofundei a anatomia, mas não bastava com ela, e devi observar também a ruína e a corrupção do corpo humano”.

Localiza-se assim na metade de um eixo perigoso cujos pólos faziam parte de um mesmo fato: a vida mesma.

A partir destes preliminares e quase consumando sua obra, a sensatez do Víctor vai dando passo para uma idéia obsessiva: ser ele, na sua obra, como Deus mesmo.

“A vida e a morte me pareciam objetivos ideais, aos que chegaria sendo eu o primeiro para derramar um toque de luz sobre nosso escuro mundo. Uma nova espécie adoraria-me como seu criador, muitas pessoas felizes e boas deveriam-me seu ser, nenhum pai poderia reclamar a gratidão de seus filhos como eu a deles. Continuando com estas reflexões, pensei que podia-se dar vida à matéria inerte, e assim poderia (...) renovar a vida nos corpos aos que a morte tinha condenado à podridão”.

Mas esse “Deus”, uma vez consumado o fato de sua criação única, arrepende-se de sua ação, ainda que tarde: a criatura cobrou vida e já nada pode controlá-la. É “Frankenstein” um remedo do mito bíblico? Tentou Mary Shelley trazer à consciência dos homens sua finitude perante um deus que não pensava o que fazia, nem suas conseqüências, em um soberbo ato de criação?

Não pode chamar-se a “Frankestein” de romance gótico ou de terror, como habitualmente se tem classificado, senão que poderíamos aproxima-lo de algo como se fosse um antecipo do que atualmente seria o gênero da ficção científica. Mas pensar em um romance com este argumento, de conteúdos tão profundos, nascido de uma mente de dezoito anos como a de Mary quando a escreveu, fazem-nos reflexionar mais profundamente ainda do que ela quis dizer-lhe ao homem de seu tempo com este livro. “Frankenstein” leva como subtítulo “O moderno Prometeu” que, a meu entender e compreensão, deveu ser este o verdadeiro nome do livro por toda a sobrecarga implícita que tem e que conforma o núcleo central da mensagem.

Há como um acordar de Mary perante sua obra mesmo, anos mais tarde, quando a corrige para outra edição. Talvez por ter crescido, por ter sofrido, por ter amadurescido em pensamento e idéias, em 1831 assombra-se do que escreveu e pregunta-se a si mesma, no prólogo:
“Como a mim, então tão novinha, criei –e cheguei a desenvolver- uma idéia tão horrível?”.

De fato, causa assombro a perfeição com que Mary enlaçou o sobrenatural e horrendo com o científico, mas em realidade o que ocorreu é que convergiram nela dois modelos de pensamento: por um lado o empirismo científico do século XVIII e pelo outro a reação ao mesmo, criativa, que se deu no século XIX. Daí que o resultado, a simples vista, além de gerar horror ou pânico, acorda um sentido de alarme e reflexão diante da possibilidade que o Homem, num futuro, possa ficar submetido pela tecnologia, como realmente está acontecendo neste presente do século XXI que devemos viver. E se a mesma Mary asombra-se de seu resultado, é que ela não era consciente que estava dando, com sua obra, uma mensagem à Humanidade que escapava às suas possibilidades de entendimento.

Os dois personagens principais de “Frankenstein” – Víctor e o monstro- resultam só um, fortemente unidos para sempre. Portanto são seres opostos e complementares. O mesmo subtítulo também leva este duplo jogo de interpretação, pois se considerarmos como Prometeu ao Víctor, tendo em suas mãos o fogo da Vida ou do Conhecimento, o Monstro mesmo assume também sua condição de Prometeu desde o momento mesmo que começa a existir, quando começa a se sentir “só, miseravelmente só” e rebela-se contra seu criador.

Há diálogos memoráveis entre Víctor e o monstro, que transcendem a mera história argumentável e depositam-se na condição humana mesmo:
“Acusas-me de assassinato –reprocha-lhe o monstro ao seu criador- e no entanto destruirias, com a consciência calma, tua própria criatura”.

Também podemos observar ao longo de toda a ação, que a mesma é uma contínua perseguição entre ambas partes, carreira que se torna vertiginosa, contínua, que não permite perder o atendimento sobre o que está acontecendo mas ao mesmo tempo gerando um recurso assombroso em mãos de sua autora de dezoito anos: quem fora, num princípio, desmembrado e depois unido em nova vida por seu criador, resulta ser, como perseguidor e acusador, quem desmembra ao Víctor mentalmente conduzindo-o para um fatídico final. Loucura e vingança, ódio e ressentimento, desespero e angústia, são as emoções básicas que vão dando vida ao relato, emoções que quando estouram e se precipitam no duplo protagonista, atentam contra a lógica, o raciocínio, a sensatez e o equilíbrio intelectual.

Se Mary Shelley conseguiu que Víctor Frankenstein resultasse um símbolo da miséria humana e, como tal, um objeto de ódio, também é verdadeiro que ele foi vítima dessa mesma miséria humana e, como tal, objeto de compaixão. Por outro lado, Mary submete ao leitor a um jogo de alternâncias inevitáveis pois se sua curiosidade se enlaça com todos os avanços que Víctor vai tendo em seus objetivos e depois em suas desgraças na primeira parte do livro, o mesmo leitor se solidariza depois com o monstro, quando este conta a história de suas lutas e de seus progressos.

Não poderíamos deixar de aplaudir o intenso final com que Mary fecha definitivamente seu livro: a morte do Víctor e o pranto desconsolado da sua criatura, como se esta cena fosse um final operístico grandioso, no meio do ermo, da paisagem imensa, fria e branca das Ilhas Orcadas, final magistralmente descrito em breves palavras pela escritora escocesa Muriel Spark, biógrafa e crítica de Mary Shelley:
“...a estrutura fecha-se só com a morte natural de Víctor Frankenstein e a representação do monstro se inclinando com imensa dor sobre ele. Vão-se convertendo o um no outro, se ligando estreitamente em uma submissão definitiva”.

Fonte:
News Elizabeth Misciasci http://www.eunanet.net/beth/

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