quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Walflan de Queiroz (1930 – 1995)


Francisco Walflan Furtado de Queiroz nasceu em São Miguel, uma pequena cidade situada na Serra do Camará, no Rio Grande do Norte, a 31 de maio de 1930, filho de Raimunda Furtado de Queiroz e do farmacêutico Letício Fernandes de Queiroz. Pouco se sabe sobre a sua infância, mas a sua família tinha recursos suficientes, o que lhe propiciou uma sólida educação.

O poeta Walflan de Queiroz foi contemporâneo da geração pós-45 e, portanto, integrava um extraordinário grupo de artistas e poetas talentosos em Natal, tais como Newton Navarro, Zila Mamede, Sanderson Negreiros, Deífilo Gurgel, Luis Carlos Guimarães, Berilo Wanderley, Dorian Gray, Celso de Silveira e Myriam Coeli, entre outros que vão surgindo ao longo dos anos, como, por exemplo, um poeta igualmente expressivo dessa geração, refiro-me a Miguel Cirilo, figura refratária à mídia local, mas que apareceu sob os auspícios de uma grande revelação poética como o livros Os elementos do caos, publicado na década de 60.

De 1960 a 1977, ou seja, durante praticamente duas décadas, Walflan de Queiroz publicou oito livros de poesias. No final dos anos 70, com o agravamento de sua esquizofrenia, o poeta passou a freqüentar as clínicas para o tratamento adequado do seu estado mental.

Os poemas de O testamento de Jó constituem-se em sua maioria num convite e, ao mesmo tempo, num desafio que nos afasta para longe de nossas experiências corriqueiras da vida cotidiana e nos conduz paulatinamente ao mundo bíblico, mítico e lírico.

Esta leitura do livro O testamento de Jó (1965), do poeta Walflan de Queiroz (1930-1995), realizada por João Antônio Bezerra Neto, dá nova visibilidade a uma escrita que emerge das sombras para compor o quadro ainda incompleto da história da literatura brasileira que aconteceu no Rio Grande do Norte na segunda metade do século XX.”
Humberto Hermenegildo de Araújo

Fonte:
Antonio Miranda

Rosangela Trajano (Mamãe e a Máquina de Lavar Roupas)


À mamãe, com carinho.

Ela vivia sonhando com aquele presente, e no dia que recebeu quase morreu de tanta alegria, iniciou um soluço que só veio parar às tantas horas da madrugada. Fiquei tão assustada que pensei que ela fosse morrer, mas era só emoção, disse meu irmão mais velho. Finalmente, mamãe tinha ganho uma máquina de lavar roupas. Não era nova, mas já iria tirá-la do velho tanque de cimento.

O mais engraçado dessa história é que mamãe levou cerca de dois meses para usar a máquina, pois nos primeiros dias deliciava-se em apreciá-la. No dia em que resolveu ligá-la vestiu até vestido novo, parecia que ia passear. Só faltava ela dar nome aquela máquina. De repente chego em casa, certo dia, tá lá mamãe sentada numa cadeira de frente a máquina de lavar roupas com a cara bem tristonha. Perguntei o que estava acontecendo, e ela me disse que a máquina não funcionava. Foi só girar o botão para o lado correto, e pronto. A roupa estava sendo lavada pela máquina. Eu vi mamãe sorri como uma criança ao ver seu trenzinho elétrico andar nos trilhos pela primeira vez.

Mas mamãe começou a se aborrecer com a máquina, e as duas travaram uma batalha tremenda. De um lado mamãe dizia que a máquina não estava funcionando bem ou então não lavava a roupa direito. Chamamos um técnico; depois de mexer pra lá e pra cá o homenzinho disse que tudo estava em ordem. Só que mamãe continuava sem saber usar os botões, e vez por outra ela desligava a máquina no meio da lavagem. Era a maior confusão. O pobre do técnico foi chamado três vezes, pois ela insistia que tinha um defeito na máquina. Foi difícil convencê-la de que aquele modelo trabalhava diferente das que ela conhecia, era mais moderna.

Todos os dias quando chegava em casa, via mamãe sentada de frente a máquina. Aquela cena já era comum, eu nem ligava mais. A panela do feijão queimava, o telefone tocava, tocava e ela não estava nem aí. Só queria saber da sua máquina. Aos poucos as duas foram fazendo as pazes, e graças a Deus vi mamãe sair daquela cadeira.

Como se não bastasse mamãe ficar sentada esperando a roupa ser lavada, ainda tinha o meu cachorro para acompanhá-la. Ai, eu juro que aquela situação parecia irônica demais. Um dia a máquina parou. Mamãe ficou desesperada, depois de mexer em tudo quanto era botão ela percebeu que tinha faltado energia. Peguei há alguns dias mamãe no tanque de lavar roupas, e fiquei sem entender aquela cena; cuidou logo de me explicar que estava dando um descanso a máquina. Assim seguiram-se os dias de mamãe com a sua máquina de lavar.

Fontes:
http://www.rosangelatrajano.com.br/maquina.html
Imagem =http://cronicasurbanas.wordpress.com/

Júlia Lopes de Almeida (Conventos)


A tarde agonizava em reflexos brancos de prata polida, que davam à superfície do mar um tom de aço, espelhento. Num banco do convés da barca, uma senhora afogada em lãs pretas, de luto, sussurrava queixas das filhas que a queriam trocar por um convento. Era um desabafo, entre as amigas, que todas se debruçavam para aquela angústia...

Pelos farrapos dos comentários percebi que as donzelas não levariam ao claustro contingente que o exalçasse... Uma delas faria versos místicos, a outra rezaria ladainhas, sem que das suas genuflexões ou dos seus arroubos viesse benefício ao mundo.

A mãe não sabia explicar aquele fervor súbito. Supunha que a mais velha, poetisa, procurasse na religião os ideais que não via realizados na terra; mas a outra? Debatia-se ante o enigma da outra. Optaram as amigas por uma paixão. Algum amor mal correspondido...

Pobre criança, pensava eu de mim para mim, o véu de freira não tem por certo a magia que ela espera... Se o mal de que ela sofre é esse que dizem, levá-lo-a consigo, que para a fatalidade do amor não há amuletos nem cilícios que valham.

O convento excitará no principio a sua fantasia, vinculará a sua saudade, sem lhe trazer a pacificação, a vida saborosa, que é o preparo do Paraíso. Houve tempo em que o convento tinha, com todos os rigores, certos atrativos, como tudo que é forte e que domina. Tempos houve também em que ele era menos um lugar de reclusão que de galanteio; então bilhetes amorosos e versos dos torneios perpassavam por entre aquelas paredes severas, como revoadas das mariposas tontas; e havia freiras, como a freira Serafina, que, escrevendo a respeito da abadessa de Santo André, deixava transparecer a convicção de que não é o amor divino, mas o humano, a melhor e a maior preocupação de toda a gente, tanto de lá de dentro como de cá de fora. Dizem mesmo crônicas velhas e cronistas modernos que nem sempre os conventos foram santuários de castidade. Fossem lá o que fossem, a verdade é que tinham vida própria e o enorme prestígio que facilita e sugere os grandes devotamentos. Depois, a mulher não tinha outros destinos; ou ele ou o casamento. Hoje não é assim; o pulso paterno já não tem o poder de aferrolhar filhas insubmissas, e a poesia, que naqueles tempos o hábito pudesse ter, foi substituída no nosso tempo — por uma fúnebre idéia de mortalha. Hoje os conventos parecem túmulos.

Imagino a melancolia desses casarões enormes. Que silêncio de corredores, onde as sandálias já não batem de minuto a minuto; que ar de mofo nas celas sem dono, fechadas há anos e em que as aranhas tecem irreverentes a rede da sua prole; que abandono nos palcos, onde as fontes choram, sem o consolo de ver as suas lágrimas suspensas pelas mãos macias de umas freiras bonitas; que aspecto frio o do refeitório, onde na imensa mesa conventual meia dúzia de freiras sorumbáticas trocam receitas de pasteis e benzem distraidamente o pão, e o comem depois sem alegria, a bela alegria, que a tão citada Santa Tereza de Jesus aconselhava às freiras da sua comunidade, a par de trabalho ativo, vassouradas, costuras, roupas limpas e polimento de metais! Essa feição salutar da santa modificou a imundice do convento, mas não lhe tirou a grandeza austera e a soturnidade doentia.

Dirão: os nossos conventos têm uma feição mais modesta e mais acanhada; estão pintadinhos de fresco e assoalhados de novo. Tanto pior. Não haverá ao menos espaço para uma evocação. Do lagedo largo e quebrado de um claustro, de onde surja um tufo de verdura; de um nicho abandonado, ou de um pergaminho sujo pelo manusear de mil dedos desconhecidos, pode nascer uma reflexão, uma curiosidade, um estudo ou um devaneio. Mas uma parede caiada e um pátio semeado de fresco, para as necessidades práticas da vida, que podem sugerir à freira moça?

Talvez saudades da graça, do riso travesso e das confidências das amigas abandonadas; seu quarto, em que a sua imagem se reproduzia faceira e linda; das fitas, do vestido profano; de uma volta de valsa; de um aperto de mão fugitivo; de um olhar, de um pensamento de amor com ou sem pecado, em todo o caso sem medo de excomunhão; de coisas pueris e de coisas divinas, que enfeitam a vida a intervalos, como as papoulas nos campos de trigo.

A verdade, sempre repetida, é que quem tem fé melhor serve a Deus nos lugares onde por ele se vive ou por ele se morre, que atrás dos grossos ferrolhos de uma portaria. Esses lugares, a que a mulher com proveito levara a doçura da sua crença e o ardor do seu sacrifício, são as cidades empestadas, as ruas cheias de mendigos e de crianças; as prisões, as ambulâncias, todo o sítio onde há dor, fome ou rancores; são a escola onde ensina; a própria família, que a sua influência alegre e pacífica; hospital, onde consola; o pedaço de terra, onde planta a árvore, que dará sombra a quem vier mais tarde e ramos para as ninhadas entoarem hinos ao Criador.

Podemos ser úteis e ser religiosas sem fugir da sociedade; podemos amar o Senhor, sem desprezar os irmãos, que mais ou menos carecem do nosso amparo, ou da nossa presença.

Este egoísmo de esconder as feridas da paixão em lugar imperscrutável ao olhar humano não é digno deste tempo, em que as almas se desnudam para o combate, porque hoje não há santos, há heróis; não há milagres, há virtudes. Os eleitos de Deus são os eleitos da humanidade, somos nós, as mães, que criamos os filhos para a glorificação do mundo; são os homens, que cultivam a terra em paz abençoada, ou morrem por uma idéia generosa.

A religião tem com certeza melhores serviços nos hospitais, nos púlpitos, nas missões, em todas as suas formas de expansão, que nos conventos mudos, abafados pelo rumor que os cerca...

A irmã de caridade tem ao menos a sublimidade, a abnegação de viver para os outros. Essa é a sua doutrina. A freira para quem vive?

A barca atracou à ponte, e a senhora de luto, puxando para o queixo o véu do toucado, saiu, levando consigo o mistério daquele romance apenas entrevisto…

Fontes:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).
Imagem =http://agvtorrao.drealentejo.pt/

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 362)


Uma Trova Nacional

Chorando à beira da estrada,
num coral de fome e medo,
a criança abandonada
faz do lixo o seu brinquedo!
–DELCY CANALLES/RS–

Uma Trova Potiguar

A Senhora Aparecida,
por ser nossa padroeira,
se faz ser compadecida
da família brasileira.
–TARCÍSIO FERNANDES/RN–

Uma Trova Premiada

2005 - Niterói/RJ
Tema: ENCONTRO - Venc.

Na mesma rua onde os nobres
desfilam pompa e capricho,
se encontram crianças pobres
entre montanhas de lixo.
–ÉLEN DE NOVAIS FÉLIX /RJ–

Uma Trova de Ademar

Um sonho que me extasia
e me traz muita esperança,
é ver livros de poesia
nas mãos de toda criança.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Quando criança eu queria
crescer dez anos num mês,
e, agora, o que eu não daria
pra ser criança outra vez...
–ELTON CARVALHO/RJ–

Simplesmente Poesia

Padroeira consagrada,
a Senhora Aparecida,
batizou por toda vida:
Caicó, terra adorada.
Onde toda criançada
na trova mostra os valores,
nos versos já são doutores
com mestrado em poesia;
Caicó é hoje em dia
celeiro de Trovadores.
–ADEMAR MACEDO/RN–

Estrofe do Dia

Quando a criança adormece,
a mãe cansada do parto,
nos quatro cantos do quarto
Deus em pessoa aparece,
o espírito santo desce
distribuindo alegria,
vem aquela mão macia
do punho, a rede balança,
a casa que tem criança,
Deus visita todo dia.
–JÔ PATRIOTA/PE–

Soneto do Dia

Glória à Padroeira.
–CAROLINA RAMOS/SP–

Gloriosa Virgem Mãe Aparecida,
nossa Nação quer luzes e padece!
E se a teus pés se curva, enternecida,
de joelhos canta e o seu cantar é prece!

Virgem Morena, mais tranquila é a vida
de quem a bênção tua acalma e aquece.
E este Brasil, tão grande, Mãe querida,
feliz menino, ao te louvar, parece!

Teu manto azul – de beijos relicário –
que nos cerca de paz a ampla fronteira,
é esperança estendida ao mundo hostil!

Cada lar seja sempre o teu santuário,
ó Virgem Santa, perenal padroeira
da imensa realidade que é o Brasil!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Ialmar Pio Schneider (A Leitura e os Livros)

12/10/11 - Dia Nacional da Leitura. (A partir de 2009 - Lei nº 11.899)

Quase deveria escrever “como nasce um cronista”, não fossem as páginas anteriores ao conselho abaixo, do ilustre literato paulista. Devo confessar que o mesmo muito me ajudou a superar certa indecisão neste sentido. Se mais não fiz até o momento, não me faltaram boa vontade nem aplicação. É claro que dei continuidade a leituras diversas de todo o gênero literário, quer em poesia, quer em prosa, levando em conta o tempo disponível e a disposição de ânimo.

Lanço mão de um opúsculo Sonhando com o Demônio, crônicas de Ignácio de Loyola Brandão - edição da Mercado Aberto (Pequenas Grandes Obras), na prateleira de uma estante, e me deparo com o autógrafo do autor, como segue: “Ialmar. A poesia também está na crônica. Abraço do companheiro de letras. Ass. - 7.11.98”.

De fato, sabedor de que eu escrevia versos, apesar de iniciante na crônica, quis incentivar-me ou confirmar que era possível continuar nesta última sem abandonar a arte poética. Vindo de quem veio estas palavras tão gentis e amenas, senti-me na obrigação de prosseguir tentando alcançar meu objetivo de modesto escriba de aldeia. Já vai para dois anos e não parei mais. Às vezes os assuntos se tornam escassos e a inspiração tarda. Mas daí vem o velho ditado me sacudir: “comer e coçar, é questão de começar”. Assim é também para escrever.

A par disso, a leitura é fundamental para o conhecimento deste ofício de transmitir o que pensamos e sentimos. Com acerto se tem afirmado que são os livros os nossos melhores amigos. Estão sempre prontos a nos dar a resposta que necessitamos. Acrescentam algo ao espírito que anseia o infinito, apesar de “… tu és pó e ao pó tornarás.” Gênese, 3.19. Eles nos transportam aos lugares mais fascinantes e longínquos da terra e despertam nossa imaginação até para o que não existe. É o milagre da literatura e da contemplação.

Há poucos dias, percorrendo as barracas da 16ª Feira do Livro de Canoas, pensava na quantidade de ensinamentos que continham todos aqueles volumes ali expostos, até que uma senhorita que atendia a uma das bancas, querendo ser gentil, começou a oferecer-me diversos livros, ressaltando suas qualidades e preços. Disse-lhe, então, que estava apreciando-os e sentia certa ansiedade de não conseguir ler todos eles, mesmo que vivesse mil anos. Mas não é por isso que se deva deixar de fazê-lo aos poucos, à medida do possível. Afinal, uma boa leitura diária só poderá nos trazer os melhores benefícios, tanto no aperfeiçoamento profissional, quanto num salutar passatempo na existência fugaz. Desta maneira a considero, sinceramente.
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Publicado em 05 de julho de 2000 - no Diário de Canoas.

Fontes:
Texto enviado pelo autor
Imagem = Portoweb

As Mil e Uma Noites (As-Sámet: O Barbeiro Calado) Parte 3


Como todas as histórias das Mil e uma noites, esta surge encadeada a outra. Numa cidade da China, numa residência de gente fina, prepara-se uma festa em homenagem aos principais membros das corporações: alfaiates, sapateiros, comerciantes, barbeiros, carpinteiros e outros. Quando tudo está pronto para o início da festa, entra o dono da casa acompanhado de um adolescente estrangeiro, trajado à moda de Bagdá, bem constituído e belo, mas coxo. Mal esse jovem senta e olha em volta, algo perturba-o visivelmente. Levanta-se com a disposição de partir. O dono da casa pede-lhe que pelo menos explique este comportamento estranho.

Responde: “Há entre vós alguém cuja presença me obriga a sair. Se insistirdes em saber quem é, é aquele barbeiro ali.”

O dono da casa comenta:
“Como pode alguém que acaba de chegar de Bagdá ser incomodado pela presença de um barbeiro desta cidade?”

Todos pedem uma explicação, e o jovem acaba cedendo:

“Este barbeiro, que tem um aspecto de alcatrão e alma de betume, foi a causa de uma tragédia que nunca deveria ter ocorrido e que acabou por danificar uma das minhas pernas, como vedes. Jurei nunca mais viver na mesma cidade que ele, nunca me sentar onde ele estiver. Deixei Bagdá, minha cidade natal, por causa dele, e viajei até este país remoto. E eis que o encontro à minha frente na primeira reunião social de que participo. Sairei logo desta cidade, e espero estar bem longe deste parvo abominável antes do fim do dia.”

O barbeiro ouve essas imprecações de olhos baixos e sem adiantar uma palavra. Os outros convencem o coxo a contar sua história. Diz:

“Meus senhores, eu era filho único de um dos mais ricos mercadores de Bagdá. Apesar das solicitações de meu pai, não constituí família porque Alá havia plantado em mim uma aversão invencível pelas mulheres. Um dia, porém, uma jovem, vista à janela de um palácio, inverteu essa aversão numa paixão irresistível. Fiquei doente por não saber quem era e por não encontrar alguém que me pusesse em contato com ela. “Mas Alá teve pena de mim e, um dia, uma velha conhecida me disse: “Meu filho, aquela jovem é a filha do cádi de Bagdá. Conheço pessoas capazes de te arrumar um encontro com ela. Prepara-te.””

Curei-me na hora e readquiri as cores e o vigor da juventude. Antes de ir ao hammam, quis cortar o cabelo. Mandei um de meus escravos trazer um barbeiro, recomendando-lhe: “Escolhe alguém que tenha a mão ágil, mas sobretudo que seja discreto, educado, de poucas palavras e sem curiosidade para que não me venha atormentar com a loquacidade e a impertinência próprias à gente daquela profissão.” “Meu escravo trouxe-me um barbeiro que não era outro senhores, que este sinistro velho que vedes sentado entre vós.

Cumprimentou-me e disse: “Trago-te boas notícias, meu mestre, muito boas notícias. Aliás, não são boas notícias, mas bons votos para que recuperes a saúde e a força. Todavia, negócio é negócio. Que queres exatamente quem faça? Que te corte o cabelo ou te submeta à sangria? Não podes ignorar que o grande Ibn Abbas disse: “Quem mandar cortar o cabelo às sextas-feiras concilia-se com a graça de Alá, que afastará dele setenta tipos de pragas.” Por outro lado, não podes esquecer que o mesmo Ibn Abbas disse numa outra oportunidade: “Quem ousar sangrar-se ou fazer aplicações de ventosas as sextas-feiras, correrá o risco de tornar-se cego e sujeito a todas as doenças.”

“- Meu velho, respondi, peço-te que pares com esta conversa e me cortes o cabelo tão rapidamente quanto puderes, porque estou ainda fraco em conseqüência da doença e cansa-me tanto falar como ouvir.

“O barbeiro levantou-se, pegou um embrulho similar aos que os homens de sua profissão carregam, abriu-o e tirou dele, não os utensílios de seu trabalho como navalhas, tesouras, mas um astrolábio de sete facetas. Carregou-o até o centro do pátio, olhou o sol de frente e voltou para dizer-me:

“Deves saber que esta sexta-feira é o décimo dia do mês de Safar do ano 763 da Hégira de nosso santo profeta, que as bênçãos do céu estejam sobre ele! Coincide assim, segundo a ciência dos números, com o momento preciso em que o planeta Marrikh se encontra com o planeta Mercúrio, à altura de sete graus. Isso significa que hoje é um dia auspicioso para cortar o cabelo. ““Os mesmos cálculos revelam-me que tens a intenção de visitar hoje uma jovem senhora, e que essa visita pode trazer-te ou bem ou mal. Não digo que preciso de minha ciência para profetizar o que se passará exatamente quando tu e a jovem senhora estiverem juntos, mas isso pouco importa. Pois há coisas que é melhor calar. “

- Por Alá, explodi, sufocas-me com tua verbosidade. Acabarás por me matar. “Trouxe-te para que me cortes o cabelo. Corta-o já sem mais uma palavra.” “-Farei exatamente como desejas, replicou, embora não possa deixar de pensar que, se conhecesses a verdade, pedirias que te dê mais informações e conselhos. ““Pois, deves saber que, embora barbeiro - o mais célebre desta cidade - não sou apenas barbeiro. Possuo na ponta dos dedos as ciências da medicina, das plantas, da química, da geometria, da álgebra. Além delas, conheço a astronomia, a astrologia, a filosofia, a literatura, a história, o folclore de todos os povos e muito mais.”

“E o barbeiro prosseguiu assim, falando e falando e falando, até que o interrompi violentamente, gritando: “Irá me enlouquecer e me matar com este transbordamento interminável de palavras, velho assassino?” “-Aí está o ponto em que te enganas, mestre, replicou. Todo mundo me conhece como As-Sámet, o homem calado, pela parcimônia com que uso as palavras. “Essa afirmação pôs-me completamente fora de mim mesmo. Senti meu fel prestes a romper-se. Gritei a um de meus criados:

“Dá um quarto de dinar a este homem e manda-o embora. De qualquer forma, nunca me cortará o cabelo.”

“Ao ouvir a ordem dada, disse o barbeiro: “Eu poderia chamar essas palavras, palavras rudes, meu mestre. Sim, acho que qualquer um teria o direito de chamá-las palavras rudes. Permite-me dizer que não te dás conta de que desejo ter a honra de atender-te sem pensar em dinheiro. E já que me ofereço para cortar-te o cabelo sem retribuição, como podes imaginar que aceitaria dinheiro sem te ter prestado um serviço correspondente? Não , não, nunca poderia conceber uma coisa dessas. Considerar-me-ia desonrado por toda a vida se aceitasse a menor retribuição. Vejo claramente que não fazes justiça a meu valor. Isso não me impede de ter uma idéia exata de teu próprio valor. “Asseguro-te que te considero digno em tudo de teu grande e lamentado pai, para quem peço a compaixão de Alá. Ele era mesmo um fidalgo. Sim, teu querido velho pai era um fidalgo. Tenho para com ele uma dívida. Por algum motivo, ele sempre me cumulou com favores. Nunca houve homem mais generoso, nunca houve homem igual na sua grandeza se me permites falar assim; e por algum motivo, ele me estimava muito. Lembro-me, como se fosse ontem, do dia em que teu bondoso pai me fez chamar. Achei-o cercado por visitantes ilustres; mas deixou-os assim que cheguei e veio até mim e cumprimentou-me, dizendo: “Meu bom amigo, peço-te que me sangres hoje.” ““Aí abri meu astrolábio, medi a altura do sol e descobri que, naquela hora exata, a sangria não era aconselhada, mas que o seria momentos depois. Comuniquei minhas conclusões a teu pai - que pena que tal patrão tenha ido para a eternidade! Acreditou em mim sem fazer uma pergunta, e ficou batendo papo comigo como se fosse meu amigo e não meu amo, até que soou a hora certa para a operação. Sangrei-o então. Ele sangrou bem, pois era sempre um bom paciente, e agradeceu-me calorosamente. E não apenas ele. Seus amigos se juntaram a ele e me agradeceram também.

Agora, estou me lembrando de um fato que esquecia quando comecei esta história: teu honroso pai, satisfeito com a sangria, deu-me cem dinares de ouro.”“

O adolescente interrompeu sua narração e, olhando para todos os presentes, disse: “Estaria assassinando-vos como este malvado barbeiro me assassinou se continuasse a repetir aquela enxurrada de palavras enfadonhas, ocas, irritantes com que este patife me torturou. Não havia meio de livrar-me dele, nem de levá-lo a me cortar o cabelo, nem de obrigá-lo a calar-se. A certa altura, fez um grande descobrimento: descobriu que era um chato! Disse-me: “Receio estar irritando-te, ó jovem.” Mas logo acrescentou uma frase que o retratava definitivamente. Disse: “Contudo, sou sábio demais para me importar com detalhes como este.” E recomeçou a falar, falar, falar.

“Por fim, começou a cortar-me o cabelo. Mas parava a cada movimento para falar, falar, falar. Eu estava desesperado para livrar-me dele e de sua horrível presença, pois a hora de meu encontro com a filha do cádi se aproximava. Em desespero de causa, disse-lhe: “Estou com pressa porque vou a uma festa na casa de um amigo.” “Mal ouviu a palavra festa, quis acompanhar-me. Para fazê-lo desistir, dei-lhe todas as provisões de minha casa para que fosse festejar com seus amigos. Mas nem isso me libertou dele. Mandou um escravo levar as provisões para sua casa e seguiu-me secretamente na rua para me espionar. Quando entrei na casa do cádi para ver a filha antes da chegada do pai, este canalha postou-se em frente à casa e quando viu o cádi chegar, armou um escândalo desastroso. Tentando passar de um esconderijo a outro na casa do cádi, caí e quebrei a perna, e tornei-me coxo pela vida toda. Lavrei então meu testamento, legando meus bens a minha família e deixei Bagdá, minha cidade natal, decidido a ir viver em qualquer lugar onde não pudesse encontrar-me face a face com este parasita calamitoso. Percorri as sete partes do mundo e estabeleci-me nesta terra longínqua, pensando estar aqui a salvo deste mastim.

“Mas eis que, ao atender ao primeiro convite social que recebo, encontro o mesmo horrendo barbeiro sentado num lugar de honra entre os convidados. Todos os gastos que fiz, a vida errante que me impus, a desgraça de ser coxo são devidos a este demônio de cabelo branco, a esta relíquia perversa e assassina.

Possa Alá amaldiçoá-lo, a ele e à sua posteridade até o fim do tempo. E agora, não terei paz até que abandone este país como abandonei o meu.” Tendo falado
assim, o jovem levantou-se e partiu. Ficamos olhando para o barbeiro que se conservava calado e cabisbaixo. “O jovem tem razão ou não?” perguntou-lhe um
de nós.

- Por Alá, eu sabia o que fazia ao proceder como fiz. Pois assim evitei-Ihe desgraças maiores. Que agradeça a Alá e a mim por ter ficado estropiado de uma perna só quando podia ter perdido as duas. Eu não sou nenhum indiscreto ou linguarudo. Ao contrário, sou um homem útil, cauteloso e, sobretudo, calado, como vereis ao ouvir minha história. Por isso, meus amigos me chamam As-Sámet, o homem calado.

(Na sua história, esse homem calado fala ao longo de vinte e três páginas da edição original árabe para passar em revista o comportamento de seus seis irmãos, cada um dos quais mais horrendo que o outro.)

Fonte:
Domínio Público

Casimiro de Abreu (As Primaveras) Parte 3


PRIMAVERAS

I

A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.
Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores,
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.
Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.
A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.
Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: - Como é linda a veiga!
Responde a rosa: - Como é doce o orvalho!

II

Mas como às vezes sob o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.
São flores murchas; - o jasmim fenece,
Mas bafejado s’erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite, quando o orvalho desce.
Se um canto amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe entumece o seio.

Na primavera - na manhã da vida -
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
À voz mimosa da mulher querida.
Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida - mocidade é crença,
E alma virgem nesta festa imensa
Canta, palpita, s’extasia e goza.
1° de Julho - 1858

CENA ÍNTIMA

Como estás hoje zangada
E como olhas despeitada
Só p’ra mim!
- Ora diz-me: esses queixumes,
Esses injustos ciúmes
Não tem fim?
Que pequei eu bem conheço,
Mas castigo não mereço
Por pecar;
Pois tu queres chamar crime
Render-me a chama sublime
Dum olhar!
Por ventura te esqueceste
Quando e amor me perdeste
Num sorrir?
Agora em cólera imensa
Já queres dar a sentença
Sem me ouvir!
E depois, se eu te repito
Que nesse instante maldito
- Sem querer -
Arrastado por magia
Mil torrentes de poesia
Fui beber!
Eram uns olhos escuros
Muito belos, muito puros,
Como os teus!
Uns olhos assim tão lindos
Mostrando gozos infindos,
Só dos céus!
Quando os vi fulgindo tanto
Senti num peito um encanto
Que não sei!
Juro falar-te a verdade...
Foi decerto - sem vontade -
Que eu pequei!

Mas hoje, minha querida,
Eu dera até esta vida
P’ra poupar
Essas lágrimas queixosas,
Que as tuas faces mimosas
Vêm molhar!
Sabe ainda ser clemente,
Perdoa um erro inocente,
Minha flor!
Seja grande embora o crime
O perdão sempre é sublime,
Meu amor!
Mas se queres com maldade
Castigar quem - sem vontade -
Só pecou;
Olha, linda, eu não me queixo,
A teus pés cair me deixo...
Aqui ‘stou!
Mas se me deste, formosa,
De amor na taça mimosa
Doce mel;
Ai! deixa que peça agora
Esses extremos d’outrora
O infiel.
Prende-me... nesses teus braços
Em doces, longos abraços
Com paixão;
Ordena um gesto altivo...
Que te beije este cativo
Essa mão!
Mata-me sim... de ventura,
Com mil beijos de ternura
Sem ter dó,
Que eu prometo, anjo querido,
Não desprender um gemido,
Nem um só!

JURAMENTO

Tu dizes, ó Mariquinhas,
Que não crês nas juras minhas,
Que nunca cumpridas são!
Mas se eu não te jurarei nada,
Como há de tu, estouvada,
Saber se eu as cumpro ou não?!
Tu dizes que eu sempre minto,
Que protesto o que não sinto,
Que todo poeta é vário,

Que é borboleta inconstante;
Mas agora, neste instante,
Eu vou provar-te o contrário.
Vem cá, sentada ao meu lado
Com esse rosto adorado
Brilhante de sentimento.
Ao colo o braço cingido,
Olhar no meu embebido,
Escuta o meu juramento.
Espera: - inclina essa fronte...
Assim!... - Pareces no monte
Alvo lírio debruçado!
- Agora, se em mim te fias,
Fica séria, não te rias,
O juramento é sagrado:
“- Eu juro sobre estas tranças,
“E pelas chamas que lanças
“Desses teus olhos divinos;
“Eu juro, minha inocente,
“Embalar-te docemente
“Aos som dos mais ternos hinos!
“Pelas ondas, pelas flores,
“Que se estremecem de amores
“Da brisa ao sopro lascivo;
“Eu juro por minha vida,
“Deitar-me a teus pés, querida,
“Humilde como um cativo!
“Pelos lírios, pelas rosas,
“Pelas estrelas formosas,
“Pelo sol que brilha agora,
“- Eu juro dar-te, Maria,
“Quarenta beijos por dia
“E dez abraços por hora!”
O juramento está feito,
Foi dito co’a mão no peito
Apontando ao coração:
E agora - por vida minha,
Tu verás, oh! moreninha,
Tu verás se o cumpro ou não !...
Rio - 1857

PERFUMES E AMOR – NA PRIMEIRA FOLHA DUM ÁLBUM

A flor mimosa que abrilhanta o prado
ao sol nascente vai pedir fulgor;
E o sol, abrindo da açucena as folhas,
Dá-lhe perfumes - e não nega amor.
Eu que não tenho, como o sol, seus raios,

Embora sinta nesta fronte ardor,
Sempre quisera ao encetar teu álbum
Dar-lhe perfumes - desejar-lhe amor.
Meu Deus! nas folhas deste livro puro
Não manche o pranto da inocência o alvor,
Mas cada canto que cair dos lábios
Traga perfumes - e murmure amor.
Aqui se junte, qual num ramo santo,
Do nardo o aroma e da camélia a cor,
E possa a virgem, percorrendo as folhas,
Sorver perfumes, respirar amor.
Encontre bela, caprichosa sempre,
Nos ternos hinos d’infantil frescor
Entrelaçados na grinalda amiga
Doces perfumes - e celeste amor.
Talvez que diga, recordando tarde
O doce anelo do feliz cantor:
- “Meu Deus! nas folhas do meu livro d’alma
Sobram perfumes - e não falta amor!”
Junho - 1858

SEGREDOS

Eu tenho uns amores - quem é que os não o tinha
Nos tempos antigos? - Amar não faz mal;
As almas que sentem paixão como a minha
Que digam, que falem em regra geral.
- A flor dos meus sonhos é moça bonita
Qual flor entr’aberta do dia ao raiar,
Mas onde ela mora, que casa ela habita,
Não quero, não posso, não devo contar!
Seu rosto é formoso, seu talhe elegante,
Seus lábios de rosa, a fala é de mel,
As tranças compridas, qual livre bacante,
O pé de criança, cintura de anel;
- Os olhos rasgados são cor da safiras,
Serenos e puros, azuis como o mar;
Se falam sinceros, se pregam mentiras,
Não quero, não posso, não devo contar!
Oh! ontem no baile com ela valsando
Senti as delícias dos anjos do céu!
Na dança ligeira qual silfo voando
Caiu-lhe do rosto seu cândido véu!
- Que noite e que baile! - Seu hálito virgem
Queimava-me as faces no louco valsar,
As falas sentidas que os olhos falavam
Não posso, não quero, não devo contar!

Depois indolente firmou-se no meu braço
Fugimos das salas, do mundo talvez!
Inda era mais bela rendida ao cansaço
Morrendo de amores em tal languidez!
- Que noite e que festa! e que lânguido rosto
Banhado ao reflexo do branco luar!
A neve do colo e as ondas dos seios
Não quero, não posso, não devo contar!
A noite é sublime! - Tem longos queixumes,
Mistérios profundos que eu mesmo não sei:
Do mar os gemidos, do prado os perfumes,
De amor me mataram, de amor suspirei!
- Agora eu vos juro... Palavra! - não minto:
Ouvi-a formosa também suspirar;
Os doces suspiros que os ecos ouviram
Não quero, não posso, não devo contar!
Então nesse instante nas águas do rio
Passava uma barca, e o bom remador
Cantava na flauta: - “Nas noites d’estio
O céu tem estrelas, o mar tem amor!”-
- E a voz maviosa do bom gondoleiro
Repete cantando: - “viver é amar!”-
Se os peitos respondem à voz do barqueiro...
Não quero, não posso, não devo contar!
Trememos de medo... a boca emudece
Mas sentem-se os pulos do meu coração!
Seu seio nevado de amor se entumece...
E os lábios se tocam no ardor da paixão!
- Depois... mas já vejo que vós, meus senhores,
Com fina malícia quereis me enganar.
Aqui faço ponto; - segredos de amores
Não quero, não posso, não devo contar!
Rio - 1857

CLARA

Não sabe, Clara, que pena
Eu teria se - morana
Tu fosse em vez de clara!
Talvez... Quem sabe?... não digo...
Mas refletindo comigo
Talvez nem tanto te amara!
A tua cor é mimosa,
Brilha mais da face a rosa,
Tem mais graça a boca breve,
O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
És clara da cor da neve!
A morena é predileta,

Mas a clara é do poeta:
Assim se pintam arcanjos.
Qualquer, encantos encerra,
Mas a morena é da terra
Enquanto a clara é dos anjos!
Mulher morena é ardente:
Prende o amante demente
Nos fios do seu cabelo;
- A clara é sempre fria,
Mas dá-me licença um dia
Que vou arder no teu gelo!
A cor morena é bonita,
Mas nada, nada te imita
Nem mesmo sequer de leve.
- O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
És clara da cor da neve!
Rio - 1857

Fonte:
ABREU, Casimiro de. As Primaveras. São Paulo: Livraria Editora Martins S/A co-edição Instituto Nacional do Livro, 1972. Texto-base digitalizado por Raquel Sallaberry Brião.

Ivan Carlo (Manual de Redação Jornalística) Parte 6


CAPÍTULO 5
O JORNAL NÃO PRODUZ INFORMAÇÃO, ELE A DIVULGA

Alguém forneceu a informação ao jornal. Essa fonte deve ser citada. Quando uma matéria diz O consumo de energia elétrica em Macapá nunca foi tão alto, temos de lembrar que alguém repassou essa informação ao jornal. Deve-se citar o autor da fonte. A informação ficaria assim:

Segundo o Presidente da Companhia Elétrica, o consumo de energia elétrica em Macapá nunca foi tão alto. Nem sempre se usa “segundo”.

Há outras maneiras de identificar a fonte. Veja:
“O Consumo de energia elétrica em Macapá nunca foi tão alto”, diz o Presidente da Companhia Elétrica.

Outra maneira de citar a fonte:
O Presidente da Companhia Elétrica diz que “o consumo de energia elétrica em Macapá nunca foi tão alto”.

Se a citação for mais longa, a identificação do seu autor pode vir no meio do texto. Veja:
“O Consumo de energia elétrica nunca foi tão alto”, afirma o Presidente da Companhia Elétrica. “Estamos aumentando a produção para evitar um blecaute”.

Citar a fonte dá mais credibilidade à notícia.

Se o jornal não a cita, o leitor pode considerar que a informação não é confiável. O uso de citações dão à matéria maior verossimilhança. Além disso, há um outro motivo para a citação literal do que a pessoa disse.

A citação literal da fala dos personagens é fator importante da retórica do jornalismo. Ela permite ao leitor se identificar com a pessoa e com seu drama, ou compreender melhor seu ponto de vista. A fala também serve para demonstrar aspectos do personagem que sejam importantes, caracterizando-o.

COMO FAZER A CITAÇÃO

Veja no exemplo abaixo como repórter organizou as citações. Tudo que expressa o ponto de vista do personagem foi colocado entre aspas:

Sem definir o que é uma vida "honrada", Buchanan disse aos repórteres que gays e lésbicas em sua administração precisariam manter sua sexualidade "privada", e não defenderem direitos para os homossexuais. "Não vou analisar a vida das pessoas", disse. "Se passarem pelo crivo do FBI, para mim é o bastante." Buchanan disse que, no passado, trabalhou com pessoas que ele "achava que eram gays", e que trabalhavam "muito bem". As citações mostram para o leitor o preconceito do personagem. Ao colocar entre aspas o texto, o jornalista deixa bem claro que aquele é o ponto de vista de Buchanan, e não seu. Por outro lado, embora qualquer um possa perceber o preconceito implícito na situação, em nenhum momento o texto diz que Buchanan é preconceituoso. Ele simplesmente citas as falas do mesmo e deixa a cargo do leitor essa compreensão.

Atenção: O fato de você fazer uma entrevista com uma pessoa, não significa que isso vá sair no texto na forma de entrevista, com perguntas e respostas.
––––-
continua…

Fonte:
Virtualbooks

Ialmar Pio Schneider (Soneto a Nossa Senhora Aparecida)


Dia de Nossa Senhora de Aparecida - 12 de outubro

RAINHA DO CÉU

Nossa Senhora, baixai vosso olhar
Pra mim que sou um pobre pecador,
Enchei o meu caminho de fulgor,
Levai-me sempre pelo bom andar...

Mãe do Céu, deposito em vosso altar
Consagrado todo meu pobre amor,
Enchei-o para sempre de esplendor
Para que nunca cesse de brilhar.

E quando a chama desta minha vida
Aos poucos, devagar, ir se apagando,
Vinde com vossa vela, mãe querida,

Me levar por estes ares voando
Para aquela bela mansão florida
Onde os anjos estão sempre cantando...

- em agosto de 1959 - Sertão - RS

Fontes:
Soneto enviado pelo autor
Imagem = http://www.igrejacatolica.com

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XV – Vésperas do Pleito


CAPITULO XV
Vésperas do Pleito


No próximo domingo voei mais cedo ao castelo, ansioso pela continuação das revelações de miss Jane.

Encontrei-a triste.

— Aconteceu-lhe alguma coisa? inquiri inquieto.

— Nada! respondeu-me num suspiro. Saudades de meu pai apenas. Estive ontem no cemitério e minha dor reavivou-se. Como ainda sinto pungente o desfalque sofrido pela sinfonia do universo com a perda de sua nota mais bela!...

A tristeza de minha amiga contagiou-me de tal modo que quando dei por mim uma lágrima me descia pelo rosto.

Miss Jane, comovida, apertou-me a mão. Irmanavamo-nos dia a dia, á medida que as nossas afinidades se iam revelando. Afinidades mentais e de sentimento. Apesar da aparente divergência das nossas ideias, eu sentia que no fundo pensávamos da mesma forma. Quem ali nos visse a conversar da vida futura, juraria sermos amigos velhos ou parentes muito próximos — e outra não era a minha impressão. Parecia-me conhece-la de séculos, e nunca ter convivido com outra pessoa. A menor sombra que passasse pela sua alma logo se refletia na minha. Suas alegrias eram as minhas e minhas as suas tristezas.

Como me punha feliz aquela doce convivência...

Mas a nuvem passou afinal e pude ve-la de novo entregue aos acontecimentos do ano 2228.

— Na véspera da 88.a eleição presidencial, prosseguiu miss Jane, o país apresentava o grave aspecto desses instantes de imobilidade precursores de tormenta. Como que a armazenar forças para uma explosão trágica, todos os homens permaneciam silenciosos, num estado de repouso muito semelhante a cansaço por antecipação. Só nos arraiais femininos era intenso o rebuliço. Estavam as sabinas seguras da vitoria e lá com as diretoras do movimento já repartiam os despojos da batalha.

Devo dizer que a presidência de uma elvinista não inquietava grandemente os homens de espirito filosófico. Sabiam muito bem como o poder modifica as ideias dos que lhes galgam as cumeadas. E havia até curiosidade pela vitoria sabina por parte dos homens de temperamento artístico — dos que só encaram o mundo através de prismas estéticos. Já a massa masculina enxergava na vitoria de miss Astor o fim do tradicional predomínio do homem na terra.

– Eram ainda as eleições ao nosso sistema de hoje?

– As eleições do século 23 em nada lembravam as de hoje, consistentes na reunião dos votantes em pontos prefixados e no registro dos votos. Tudo mudara. Os eleitores não saíam de casa — radiavam simplesmente os seus votos com destino á estação central receptora de Washington. Um aparelho engenhosissimo os recebia e apurava automática e instantaneamente, imprimindo os totais definitivos na fachada do Capitólio.

De há muito se havia eliminado as hipóteses de fraude, não só porque a seleção elevara fortemente o nivel moral do povo, como ainda porque a mecanização dos trâmites entregava todo o processo eleitoral ás ondas hertzianas e á eletricidade, elementos estranhos á política e da mais perfeita incorruptibilidade.

Mas só os habitantes de Washington gozavam do privilegio de ler no Capitólio os números decisivos. O resto da população americana tambem os lia e na mesma hora, mas em suas próprias casas.

Certo que estava da vitoria, o partido feminino delirava no antegozo de um prazer inédito: bater o macho em seu reduto supremo — a Presidência da Republica!

Na antevéspera das eleições miss Elvin organizou em Washington uma passeata memorável.

– Ainda havia disso? perguntei.

– Já não havia disso, respondeu miss Jane. Miss Elvin apenas ressuscitou a velha praxe a titulo de curiosidade estética. Como vemos hoje exposições de arte retrospectiva, teve ela a ideia de organizar coisa semelhante — uma passeata á nossa moda, com discursos em
rançoso estilo retórico, nos quais se expusessem á luz do dia caducas imagens há muito aposentadas. Reuniu um lote de dez mil correligionárias para um desfile diante do Capitólio. Cada qual traria uma bandeirola ou cartaz onde se caricaturassem de maneira cruel os homens ou se inscrevessem legendas insultantes — Abaixo o macaco glabro! Morram os raptores! Viva o sabino! Basta de gorilas evoluídos!

Essa manifestação realizou-se á noite — e por falar em noite... como imagina que eram as noites desse tempo, senhor Ayrton?

– Como as de hoje, ora essa! Talvez com menos grilos, respondi.

– Pois saiba que nenhum espetáculo futuro me surpreendeu tanto como as noites das cidades americanas. A noite urbana que temos hoje não passa da noite natural picada de focos luminosos — um jogo, portanto, de sombra e luz. O que lá vi não recordava essa alternativa. Sofrera completa mudança a iluminação artificial — tamanha como a do transporte depois da vinda do rádio. Inventara-se a luz fria. Por dentro e fora eram pintadas as casas de uma tinta de luar, que dava ás cidades o aspecto de emersas de um banho de fósforo. Paredes, muros, telhados, todas as superfícies emanavam um palor uniforme de sonho. Mas o escuro é tão necessário ao homem como o luminoso, de modo que todas as casas possuíam cômodos não revestidos de luar ou apenas aquarelados de leve. Que deliciosas penumbras vi no Oblivion Park, em Eropolis!…

– Quê? Havia Eropolis, a cidade do Amor?

– Sim. Uma cidade das Mil e Uma Noites erguida no mais belo recanto dos Adirondacks e exclusivamente dedicada ao Amor. Para lá iam os enamorados, os casados em lua de mel, nela só permanecendo durante o período da ebriedade amorosa. O senhor Ayrton com certeza já amou e sabe como o amor desabrocha as criaturas em flores e perfumes. Pois imagine um éden criado pela fantasia de todos os grandes amorosos — Dante, Petrarca, Romeu, Leandro, de colaboração com todas as grandes amorosas, Julieta, Hero... Imagine a rainha Mab a provocar sonhos nesses inebriados, e Ariel a realiza-los com o carinho que punha nas comissões de Prospero. O bafo de Caliban nem de leve embaciava os mármores de Eropolis — a maravilha suprema das artes humanas ao serviço do Amor.

Nada lembrava ali o organismo que é uma cidade comum — mixto de órgãos nobres e vísceras de funções humilhantes. Em vez de ruas geométricas, meandros irregulares, ganglionados magicamente de pelouses e moitas nupciais. Sumiam-se nelas os amorosos passeantes e em tais ninhos de doçura trocavam o beijo que elabora o porvir. Tudo fora planejado em Eropolis com o intento de dar ás criaturas as mais finas sensações estéticas, de modo que os seres ali concebidos já se plasmassem em beleza e harmonia desde o contacto inicial dos gametos. Os filhos de Eropolis passaram a constituir uma elite na América — a nova aristocracia dos filhos do Amor e da Beleza.

Suspirei. Vi-me em Eropolis de mãos dadas a miss Jane, olhos nos seus olhos e em tal enlevo amoroso que todas as maravilhas da nova ilha de Calipso eram como se não existissem para mim…

– Mas deixemos em paz a cidade do Amor, disse minha amiga fechando o delicioso parenteses. Trepada a uma estátua fronteira ao Capitólio espera-nos a irrequieta miss Elvin com o seu discurso flamante, perfeitamente vieux jeu.

– "Eis", dizia ela apontando para o Capitólio com ademanes dos nossos oradores mitingueiros, "eis o símbolo da Bastilha masculina que será amanhã tomada de assalto! É a casa-mestra da força, a odiosa cabina das manivelas que dirigem tudo. Ali têm habitado os
piores monstros da humanidade. Moraram ali Gengis-Kan, Cesar, Luis 14, Frederico da Prussia, Pedro o Grande, Cromwell, todos os gorilas cesáreos que através dos séculos vêm trazendo preso ao seu carro de triunfo um ser de espécie diferente, arrancado ao companheiro natural por um gesto de violência e rapina!" e por aí além...

O presidente Kerlog ouviu pelo seu receptor de bolso a curiosa arenga e disse com muita filosofia ao ministro da Equidade:

– "Parece grotesco tudo quanto ela diz, no entanto a história mostra que nós homens temos sido arrastados por fábulas ainda mais grosseiras".

– "Isso só prova", retrucou Berald Shaw, "que miss Elvin está errada. Homens e mulheres somos positivamente da mesma espécie..."

E enquanto a passeata de miss Elvin barulhentamente prosseguia no seu percurso, voltaram os ministros á conferência, retomando-lhe o fio no ponto em que a arenga da sabina os interrompera.

– "Dentro de 48 horas tudo estará resolvido, disse o Presidente, e conto com a reeleição. Apesar de não haver obtido de Jim Roy promessa formal, estou absolutamente certo de que ele nos dará os votos negros. Deve neste momento estar apreensivo, o pobre Jim, com
o discurso de miss Elvin. Se ela nos trata a nós brancos de gorilas, que expressões reservará para os pretos de Jim?”

– "Mas miss Astor tambem conta com os votos negros", disse o ministro da Seleção Artificial.

– "Engano. Miss Astor espera de Jim uma traição. Ora, a traição para miss Astor significa não votar em seu nome. Logo, está convencida de que Jim Roy nos dará os votos negros.”

– "E nesse caso derrogaremos a lei seletiva?”

– "Sem duvida. O pigmento reclama contra o rigor excessivo da Lei Owen. Isso aliás pouco importa, porque antes dos maus efeitos da derrogação dessa lei já teremos solvido o problema. Os ultimos estudos tecnicos da exportação dos negros para a Amazonia já se acham conclusos. Jim é hábil e domina como déspota a massa negra. Havemos de nos entender. Havemos de impor-lhe por bem ou por mal a solução branca. No momento o caso se resume em obtermos dele o concurso eleitoral, pois quem lá pode saber que rumo tomarão os acontecimentos caso vençam as elvinistas? É impossível protelar por mais tempo com paliativos ilusórios a solução do binômio racial. Ou expatriamos os negros já, ou dentro de meio século seremos forçados a aceitar a solução negra, asfixiados que estaremos pela maré montante do pigmento.”

– "Destruído, aliás…

– "Oh, antes o não fosse! A mim chega a me repugnar o aspecto desses negros de pele branquicenta e cabelos carapinha. Dão-me a ideia de descascados ...”

– E miss Astor? perguntei. Continuava perplexa?

Miss Jane respondeu:

— A poucos passos da Casa Branca tambem miss Astor conferenciava com varias sumidades do seu partido.

— "Estás ministra, minha cara Dorothy Glynor, se vencermos..." dizia ela a uma linda criatura candidata ao Ministerio da Educação Social.

– "Se?..." fez. Dorothy Glynor. "Pois ainda admite duvidas depois da entente com Jim Roy?”

– "Tudo me leva a crer que Jim Roy não perderá a oportunidade de ajudar-nos a apear o macho branco inimigo tradicional da sua raça. A lógica me conduz a esse raciocínio, mas acima da lógica há em mim uma voz interna, uma ressonância que raro falha — e essa voz me diz que Jim vai trair...”

– "A nós?”

– "Não sei. Sinto no ar a traição, e sinto-a tão forte que ando presa de um estranho mal estar. É com esforço que procuro conter os meus nervos. O entusiasmo com que me apresento em campo não passa de mera atitude. O que há em mim — e cada vez mais angustiante — é uma profunda depressão nervosa..."

Miss Evelyn Astor estava á sua mesa de trabalho, em permanente comunicação com todos os distritos do país. Recebia de minuto em minuto informações animadoras, mas ouvia-as quasi desatenta. O imenso entusiasmo reinante nos arraiais femininos — entusiasmo que ela mesma acendera com suas famosas irradiações — só não contagiava a sua autora. Miss Astor metia os olhos do pressentimento pela fachada do Capitólio e não lia lá o seu nome...

Bem outra se apresentava a situação nos arraiais de Jim Roy. A população negra permanecia numa espécie de calma fatalista, aguardando com insidiosa quietude de pântano a senha que o grande lider ficara de irradiar uma hora antes do pleito. Até esse momento a formidável massa de cinquenta e tantos milhões de votantes conservar-se-ia neutra. Tinham compreendido as imensas vantagens da coesão e delegação de todas as vontades numa só, além de que depositavam em Jim Roy uma fé que nem Moisés merecera do povo hebraico. Qualquer coisa de majestade havia naquele oceano submisso — escravo de novo, escravo como sempre, mas desta vez escravo por heróico e livre consentimento.
---------------
continua… XVI – O Titã Apresenta-se

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Trova 199 - Nemésio Prata Crisostomo (Fortaleza/CE)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 361)

Ademar Macedo sendo premiado em Caicó/RN pelas trovadoras Mara Garcia e Ieda Lima

Uma Trova Nacional

Que alegria te encontrar,
que prazer te conhecer,
ó meu irmão Ademar...
Poeta do Amanhecer.
–VANDA FAGUNDES QUEIROZ/PR–

Uma Trova Potiguar

Ao chegar neste recinto
das terras de Caicó,
com todo fervor eu sinto
que aqui não me sinto só.
–MANOEL CAVALCANTE/RN–

Uma Trova Premiada

2011 - “Relâmpago“ Caicó/RN
Tema: CAICÓ - Venc.

Ah! Caicó, acabou-se,
foram três dias... Amei!
Tanta alegria que eu trouxe,
quanta saudade levei!
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE–

Uma Trova de Ademar

Com a brilhante chegada
dessa geração mais nova,
Caicó será chamada:
“Berço Sagrado da Trova!”
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Na conquista de troféus,
um só, quero merecer:
chegar às portas dos céus
e a mão de Deus me acolher.
–AUROLINA DE CASTRO/AM–

Simplesmente Poesia

Aos Irmãos Trovadores...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Nas competições de trovas
feitas por nós, Trovadores,
não nos importa diplomas,
troféus, medalhas, valores.
Em Caicó e em Natal
eu vi no mais alto astral
um grupo de Vencedores...

Estrofe do Dia

Oito e nove de outubro, certamente,
vão ficar nos arquivos da memória,
Caicó e Natal, juntas fizeram,
da poesia a mais linda trajetória;
tanta gente feliz e abraçada
numa festa que vai ficar guardada
nos mais lindos registros desta história!
–PROF. GARCIA/RN–

Soneto do Dia

Colheita
–HAROLDO LYRA/CE–

Aquelas árvores que nós plantamos
na lavoura dos sonhos conjugais,
cresceram como crescem os vegetais
que dão bons frutos quando os cultivamos.

Punhos fortes romperam matagais,
sulcando a terra onde por lá deixamos
sementes em que ambos preservamos
o vigor das raízes paternais.

Arrostando galhaças perigosas,
muitas vezes, as mãos silenciosas
removeram espinhos que encontramos.

Hoje vamos, na idade já provecta,
à sombra que das frondes se projeta,
colhendo os frutos que nós dois plantamos.

Fonte:
Textos e foto enviados pelo Autor

Iara (O Telefonema)


Ela estava sentada no sofá com o namorado vendo um filme de amor.

Era uma noite gostosa de primavera, uma brisa fresca entrava pela janela e trazia o perfume gostoso das folhas de laranjeira. Na melhor parte do filme o telefone toca, ela dá uma pausa e vai atender.

-Alo.

Do outro lado uma voz ansiosa, apressada.

-Amanda, é o Fernando, não desligue desta vez por favor.

-Não tem....

-Amanda, não diga que não tens tempo pra falar comigo, hoje não, já tentei tantas vezes falar contigo, já perdi a conta das vezes que te liguei.

-Olha, não tem....

-Por favor Amanda, me escute, eu só quero saber se algum dia você me amou, eu sei que não fui o cara que deveria ter sido pra você, eu sei que te magoei, mas é só isso que preciso, saber se algum dia você me amou. Preciso saber para encerrar tudo isto de vez, e aproveitar para pedir desculpas, eu me arrependo tanto Amanda, das vezes que eu não disse que te amo, mesmo amando. Eu deveria ter te dado mais atenção, te beijado mais, te abraçado mais vezes, te pedido mais desculpas e te escutado, eu devia.

-Mas aquela mania de ser homem, de não se abrir, de falar pouco, se achar sempre certo e não confessar o sentimento.

-Olha, só deixa eu dize....

-Não Amanda, não diga nada, me escute, e depois só responda se algum dia tu me amou. Só isso. Lembro que tu reclamavas, pedia que eu dissesse mais vezes que sentia saudades, que senti tua falta, eu dizia uma ou duas vezes e depois voltava ao meu silêncio. Sabe o que é pior Amanda, eu agia assim e temia te perder, mas não queria me mostrar inseguro, não queria me mostrar carente, na verdade não queria me mostrar. Eu sei que não tem volta, mas eu sinto tanta saudade, tu me faz tanta falta. Me arrependo tanto de não ter aproveitado a paciência que tinhas comigo e mudado, três anos Amanda, não se fica tanto tempo com alguém por nada, eu sei que havia amor, mas queria que me dissesse. Era amor de verdade, aqueles que tu chegou a pensar que não acabaria? Desculpe, mas eu precisava tanto saber, só por isso te ligo hoje, porque é o único jeito de eu acreditar que vale a pena Amanda, que eu posso mudar e também encontrar alguém e ser feliz. Assim como tu encontrou, porque eu sei que sim Amanda, que hoje és feliz, com certeza ele te escuta, te pede desculpas, fala que sente saudade, que sente tua falta. Sei que esse babaca que hoje te abraça te trata bem, faz tudo que esse babaca aqui não fez. E por isso é feliz, porque ter você Amanda, é ser feliz.

-Amanda me responde só isso, só pra eu acreditar que posso ser feliz de verdade. Tu me amou Amanda?

-Fernando, te amei sim, e muito, todos os dias, todas as horas, te amei de verdade, e pensei sim que era pra sempre. Não foi porque cansei Fernando, de falar e não ouvir, de sentir necessidade de um abraço, de querer um beijo e você com esse medo todo de te entregar. Mas te amei sim, e sei que podes amar, e fazer alguém feliz, e ser feliz. Te amei muito Fernando,muito mesmo.

-Obrigado Amanda, por me ouvir, por dizer que me amou. Adeus Amanda, adeus.

Ela volta para o sofá, ao lado do namorado, ele olhando para ela, desconfiado pergunta.

-Quem era Mariana?

-Um Fernando que amava muito uma Amanda e precisava saber se ela tinha amado ele também.

-Quem é Fernando, quem é Amanda?

-Não sei, mas ele só precisava saber que ela tinha amado ele um dia, porque eu diria que não.

Fonte:
http://www.iarapoesias.com.br/2011/10/o-telefonema.html

Eduardo White (Poesias Avulsas)


A PALAVRA

A palavra renova-se no poema.
Ganha cor,
ganha corpo,
ganha mensagem.

A palavra no poema não é estática,
pois, inteira e nua se assume
no perfeito,
no perpétuo movimento
da incógnita que a adoça.

A palavra madura é espectáculo.
Canta.
Vive.
E respira. Para tudo isso
basta
uma mão inteligente que a trabalhe,
lhe dê a dimensão do necessário
e do sentido
e lhe amaine sobre o dorso
o animal que nela dorme destemido.

A palavra é ave
migratória,
é cabo de enxada,
é fuzil, é torno de operário,
a palavra é ferida que sangra,
é navalha que mata,
é sonho que se dissipa,
visão de vidente.

A palavra é assim tantas vezes
dia claro
sinal de paisagem
e por isso é que à palavra se dá,
inteiramente,
um bom poeta
com os seus sonhos,
com os seus fantasmas,
com os seus medos
e as suas coragens,
porque é na palavra que muitas vezes está,
perdido ou escondido,
o outro homem que no poeta reside.

ASSUME O AMOR COMO UM OFÍCIO

Assume o amor como um ofício
onde tens que te esmerar,

repete-o até à perfeição,
repete-o quantas vezes for preciso
até dentro dele tudo durar
e ter sentido.

Deixa nele crescer o sol
até tarde,

deixa-o ser a asa da imaginação,
a casa da concórdia,

só nunca deixes que sobre
para não ser memória.

HÁ VEZES EM QUE NEM É A MORTE QUE SE TEME,

Há vezes em que nem é a morte que se teme,
o seu sossego de cinza,
a sua solidão escura,
mas como se morre.

Quando morrer
quero fazê-lo sem rumor algum,
sem ninguém que me chore
ou a quem doa.

E queria a morte uma ave,
nocturna ave
sigilosamente partindo
para outro tempo.

Para morrer, fá-lo-ia
em total silêncio,
severo
e lúcido.

POEMAS DA CIÊNCIA DE VOAR

Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca Troveja.
Procura um claro instante para a aparição.

Pode-se vê-la correr pelo dorso do papel,
deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,
pode-se vê-la provando o ruminante delírio das palavras,
a sua rasante arrumação,
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,
rítmica, latejante
ou um nervo animal que faz lembrar
a textura pedestre do papel.
Mas a mão voa, explosiva,
e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.

Voar é um fervoroso recolhimento.
E no que é quase a medida elementar do esquecimento
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias tubulantes,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro."
...
Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.

Voar é poder amar uma criança.
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.

Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.

Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.

POEMA DA PERGUNTAÇÃO

Não somos todos, os envergonhados, os verdadeiros culpados?

Não somos nós, os indignados, os verdadeiros carrascos?

O que antes e agora julgamos, não foi apenas uma pequena evidência? O que nós prendemos não foi a mão obscura de uma consciência? E mesmo o que matamos, não foi tão somente uma ínfima parte da verdade?

E procuramos grades? E procuramos muros altos e seguros? E procuramos homens obtusos para que os possamos vigiar? E procuramos armas para os tornarmos intransponíveis? De nada nos valerá, de nada nos adiantará. Não há ferro, nem betão, nem servilismo nenhum que nos possam salvar da luz da verdade.

Uma mentira não tem sempre sede de liberdade? Uma mentira não é a cela da verdade? E quantas vezes a pretendemos prender? E com quantas grades a desejamos ocultar? E com quantas mãos a ameaçamos estrangular?

Não vale a pena. Desistamos. Em nenhum maciço de betão podemos esconder o que a nossa consciência sabe. Em nenhuma anedota, em nenhum boato, em nenhuma suposição, em nenhuma imparcialidade e em nenhum juiz e em nenhum desmentido nos jornais e em nenhum país. Nem de nós, nem dos outros.

Somos todos nós os verdadeiros culpados, são nossos os muros e as grandes onde escondemos a verdade. E deles ninguém se evadiu, somos todos nós os verdadeiros evadidos.

Fonte:
– Revista Literatas. Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona. ano 1. n. 13. 11 outubro 2011. Maputo: Movimento Literário Kuphaluxa. Gentilmente cedida por Amosse Mucavele.
– ma-schamba
– As Tormentas

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco (Eduardo White: A «Grande Viagem,» na e Para Além da Língua...)


Para o Poeta Fernando Couto, cujos versos e os olhos deslumbrados também navegam e fazem a língua navegar.

«O navio na língua. O navio e a língua. (...) O navio está num caminho e a língua está para além dele. Olho pelas redondas vigílias da máquina tudo isto e descubro que a língua tem essa sede de viajar caminhos. Não de sê-los mas de conhecê-los, de os sonhar, de os evocar.»

Assim se inicia Dormir com Deus e um navio na língua, sexto livro de poesia do moçambicano Eduardo White. Singrando a memória e a escrita, o eu-lírico embarca na nave e na língua, zarpando em uma viagem introspectiva e metapoética pelos meandros de si, da história e de sua poesia. A imagem do navio, metaforicamente, traz a idéia da "travessia difícil", do convite à «grande viagem»(2) , rumo ao Eros primordial, centro irradiador da vida, e aos sentidos sacralizados da criação. «Ancorado na saliva», esse navio se faz evocação, espuma seminal, voz, imaginação. Viabiliza, dessa forma, a trajetória interior do poeta que se move por entre reminiscências do outrora e sombras que «entardecem o presente de seu país»(3), por entre a magia cósmica das palavras e os eróticos rumores da língua.

«E a língua, essa, poderá rumorejar?» (4) A poesia de White demonstra, na prática, que sim e Roland Barthes, teoricamente, confirma: «o rumor denota um ruído limite, um ruído impossível, o ruído daquilo que, funcionando na perfeição, não tem ruído; rumorejar é fazer ouvir a própria evaporação do ruído; o tênue, o confuso, o fremente são recebidos como os sinais de uma anulação sonora.» (5) O rumor da língua é frêmito, «fulguração da desordem» (6) que só a linguagem poética é capaz de produzir, pois, se afastando dos significados desgastados pelo uso ordinário e denotativo, alcança sentidos outros, inusitados.

E fugindo do retórico e do lugar comum que é supor que tudo isto se pensa, resultar-me nas perguntas e nas respostas que jamais fiz com a finalidade única de as pensar.(7)

Ousadia constante, «assombro amilagrado» (8) , o ato poético não almeja respostas prontas e fechadas: só se quer canto e rumor. Este, portanto, «é o ruído da fruição plural» (9) , a musicalidade própria da poesia, cujo discurso filigranado, prenhe de metáforas dissonantes, leva a língua, suavemente, a deslizar leve como um navio em sonho pelos mares de sentidos «nunca dantes navegados».

Para Barthes, «o rumor da língua forma uma utopia: a de uma música do sentido «(10). Segundo o referido teórico, somente em "seu estado utópico, a língua pode ser alargada, desnaturada»(11), atingindo a plenitude polissêmica do verbo poético.

Em White, cada palavra, cada metáfora e cada imagem criam tremores de sentidos, que, amplificados, possibilitam à língua um sonoro e musical rumorejar, resultante do embate de suas encapeladas vagas de encontro às quilhas que vão sulcando as oceânicas trilhas percorridas através dos séculos: um navio na língua, a língua e o navio... Metapoeticamente, o eu-lírico de Dormir com Deus e um navio na língua reflete sobre o próprio itinerário, absorvendo sons, ruídos e sonoridades que emanam de sua criação: A música aprofunda-nos, eleva-nos para dentro, para os ilimites que somos e não nos apercebemos. Azul e quente, amarela e doce, verde e fresca. A música a arder toda como se vinda de tudo. Da língua na música e da música da língua.(12)

É uma poiesis que mergulha na melodia própria da linguagem lírica, traçando um percurso de interiorização capaz de penetrar os abismos do ser, ao mesmo tempo que se eleva em direção a longínquas heranças da língua, «flor inicial», ampliada por infinitas trocas e diálogos: «Esse é o longe de onde vos fala a minha língua. O lugar onde a amo e a sonho para todos os outros lugares.» (13)

O poeta está só. Inicialmente, se encontra sentado à mesa de um restaurante chinês, voltado aos silenciosos traços de um Oriente que tanto marcou sua pátria e a língua portuguesa nessas margens índicas de onde se interroga, angustiado, e em sobressalto, acerca de seu próprio ofício e de sua escrita. Mas a angústia que o toma, entretanto, não interdita inteiramente a erótica que lhe anima o caminho. Intui que é necessária a inquietação para o prosseguimento da travessia. Sabe que «sonhar exige uma língua» e esta, metaforicamente transformada em navio, o transporta pelos desvãos dos tempos, trazendo-lhes memórias antigas, insuflando-o à imaginação de distantes futuros:

Agora até posso deitar-me sob ela. Refestelar-me na possibilidade de ali estar sem utilidade nenhuma. Ouvir-lhe a música, pedir-lhe absurdos. Ler um livro como um exercício e resultar, depois, no exercício de ter lido. Sentir os sonhos que se sonharam nela, as vagas que quebrou até chegar a mim. A minha língua com especiarias dentro e tecidos e bijuterias. Os sabores etílicos dos vinhos. O arroz da China. As missangas coloridas dos dromedários. O cheiro triste e ácido dos porões negreiros, os seus fatídicos destinos, o reluzente dos aços das espadas e dos elmos, a profunda nostalgia dos poetas e dos versos deportados. Esta é minha língua e não tenho outra. E sinto-me feliz de falá-la e de estar de pé no que isso significa.(14)

Um erotismo, permeado de remotos odores, sabores e cores, perpassa suas recordações e a história de seu país emerge como um híbrido mosaico de intercâmbios múltiplos que deixaram na pele do idioma e da sociedade moçambicana vestígios de diversas culturas. O poeta sorve a bebida e a memória. Entristece-se com a lembrança dos «fatídicos destinos» da diáspora negra. Delicia-se com certas minúcias e delicadezas chinesas que, esparsamente, Moçambique guardou como reminiscências do antigo comércio de porcelanas em seu litoral índico, «janela aberta ao Oriente»... Outras presenças, ao ritmo da vitrola, «girando em sua caixa convexa»(15) , se entrecruzam em seu imaginário. Ao ouvir uma canção cubana de Pablo Milanês, nostalgicamente, o eu-lírico relembra os tempos da sonhada liberdade defendida por líderes socialistas, entre os quais Fidel e Mandela. Procura, então, evocar, pelo exercício da linguagem criadora, o «outro lado da vida», «o outro lado das palavras», o outro lado da língua o além ilimitado da própria poesia, onde, sempre, «cada reverso esconde uma nova descoberta» (16) . Distraído, contempla a foto de um relógio em uma revista. A imagem do cronômetro desafivela-lhe reflexões, mas o tempo em que está inserido é outro. Como poeta, compreende que «o tempo ontológico da poesia está fora e liberto do tempo do relógio, embora possa habitá-lo e penetrá-lo nos momentos de epifania». (17)

O leve tecido da escritura poética se cruza, então, com a imagem de uma aranha no teto. A fragilidade da teia se confunde com a da diáfana caligrafia dos sonhos engendrados. Senhora da fiação e da tecelagem, a aranha se revela uma alegoria do próprio tecer poético. Criadora cósmica, aracne representa a interioridade, sendo, em muitas lendas africanas, a tecelã por excelência, a intermediária entre os deuses e os homens. Comparando-se a ela, no poder de trepar e escorregar pelos próprios fios tecidos, o poeta se vale da língua que rumoreja, galgando metafóricos sentidos por intermédio de um jogo erótico com a linguagem:

A minha língua dá-me esta visão meio enloucada que me faz supor subir as paredes da casa e buscar os seus cantos mais altos, os pensamentos que aí pousaram para os habitarem, talvez, até, os ouvidos empedrados do betão, sonoros para dentro de si e mudos para onde se exteriorizam. (...) A casa tem aranhas das quais não me quero separar que são as do texto que flutuam e as da própria vida que me procura. (18)

O texto e a teia. O poeta e a aranha. Tecidos aéreos de sonho e poesia que aprisionam e libertam. No emaranhado de reflexões, a consciência do real; no deslumbramento da criação, a sede de liberdade. Num dos mais belos trechos de Dormir com Deus e um navio na língua, ouve-se o grito social do poeta que, simultaneamente, se extasia com a beleza estética e se choca com a miséria circundante:

Atordoam-se as palavras todas e voam sobre a língua. (...) Minhas palavras luzidias, frescas, algas lentas que de rompante são pelas minhas mãos o ar onde se querem existidas. Palavras que lavram a beleza da língua e me despem quando as visto. Aqui ocorre-me pensar que vivo no país da nudez, da miséria absoluta, das crianças com suas grandes barrigas cheias de vazio, esquálidas, frágeis e tristes (...) Que palavras haveriam de dizer este quadro trágico, estes meninos sepultos por sobre o chão mas a viver para que a esperança os acredite e os ame e os furte ao desespero, estes anjos absurdos, este disforme séquito dos párias e dos canalhas, da luxúria e da trivialidade a arrotar pelos palácios. Não, não haveria nunca poesia na minha língua que pudesse ser demasiadamente bela sem chorar o grito e a revolta(19)

Ante à trágica condição dos meninos famintos de Moçambique, o sujeito lírico se desnuda e, atordoado, se questiona: «Que razões moverão a liberdade a cantar isto? Porque a liberdade aspira-se enquanto conceito e assusta como pura e profunda realidade?«(20) A consciência de ter como presente o mórbido espetáculo da fome faz o poeta sangrar. Errando, agora, solitário, em outro espaço o do quarto em que escreve , assume «a voz da tristeza» a recobrir-lhe as próprias memórias. A inquietação inerente ao poético converte-se em desencanto e dor. Porém, se indaga: «a escrita e o escritor como podem crescer (se não for) de tal modo?» (21) Intertextualizando-se com Fernando Pessoa, reafirma que o «pensar embacia tudo». Todavia, está ciente de que a poesia amadurece o ser e quanto mais dói, maior lucidez gera. Com a clareza de que «estar lúcido não é ver luzes, é ter» , passa, então, a empreender a «grande viagem» na e para além da língua. Vai à procura da cintilação divina e decide dormir com Deus. Porém, sabe que precisa se despojar de todos os luxos, alcançar a delicadeza de uma sexualidade indizível, abraçar o mais humano de si, provando a humildade «do milagre real de ser pequeno». (23) Semelhante mensagem de despojamento e humanidade traz a letra da canção brasileira Se Eu Quiser Falar com Deus, do compositor Gilberto Gil: I

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós dos sapatos
Da gravata, dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

II

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

III

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas para segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar(24)

É também nu, sentado a sós dentro de seu sonho, que o sujeito poético de Dormir com Deus e um navio na língua, após «abrir as aspas de sua angústia» e «estender as asas das alegrias», se prepara para deitar com Deus, expondo seu lado mais humilde, mais humano. «Deus é um lugar para estremecer, mapa do arrepio». Deus é «perturbadora desordem», «subversiva febre» a queimar as entranhas do poeta. É fulguração de infindas significâncias que ultrapassam os convencionais limites dos significados, é o rumorejar da linguagem da poesia no coração dos homens. É o mistério da arte e da criação instaurado no âmago do ser. Deus é a língua infinita, é a respiração emotiva do desconhecido. É a fruição plural do rumor da língua. É o além, a margem suplementar dos sentidos, a «grande viagem» do verbo e do texto em direção ao Nada:

E tendo a noite como única certeza, rebolo-me no sono e pouso a cabeça na imensidão humana do colo Dele. (...) O colo de Deus não é quente. É fundo e único, é uma vontade, um músculo inacabado e expressa-se com dignidade quando nele rimos ou choramos. Cresço para dentro reatado a mim mesmo, ao conhecimento do desconhecimento, à honra da ingenuidade porque não existem caminhos aqui para a ignorância, para o desconfiado, para o ambicionado e tão somente para a profundidade inteira e indivisível do Nada.(25)

Em Dormir com Deus e um navio na língua, a memória poética reintegra o tempo humano e histórico à eternidade cósmica da criação artística. O sonho acordado dos devaneios poéticos se situa entre o sono e a vigília, espaço limítrofe entre imaginação e realidade. É «o volante brilhante a conduzir o poeta para os caminhos de si mesmo»(26) .O percurso trilhado, contudo, fica em aberto: fora realmente vivenciado ou apenas escrito por um «eu de papel»? «Só Deus julgará isso»(27) , porque foi dormindo com Ele que o sujeito lírico se despiu das defesas e máscaras e, semi-adormecido, conseguiu vislumbrar o que totalmente deperto seria incapaz de enxergar. Neste entrelugar, ingressou no tempo Aion, na atemporalidade da arte, no Alfa, realizando a epifânica redescoberta da própria humanidade que, desvencilhada da materialidade mundana, logrou tangenciar os territórios do divino.

Configurando esse ilimitado alcançado pelo discurso lírico de Dormir com Deus e um navio na língua, os versos se dilatam e transgridem os contornos tradicionais do poema e da retórica, esgarçando as fronteiras entre poesia e prosa, entre Poesia e Filosofia. A viagem do navio na língua se transforma, assim, na travessia do próprio texto, desvelando-se como um exercício (meta)poético que, além de se tecer como pura poesia, discute semiológica e filosoficamente os caminhos da língua, da história, da linguagem, da criação literária e do próprio Homem.
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Notas
(1) WHITE, Eduardo. Dormir com deus e um navio na língua. Braga: Ed. Labirinto, 2001. p. 9.
(2) CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. RJ: José Olympio, 1999. p. 632.
(3) WHITE, E.(2001), p. 29.
(4) BARTHES, Roland. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1984. p.76.
(5) Idem, . p.75.
(6) SECCHIN, Antônio Carlos. Poesia e desordem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 18.
(7) WHITE, E.(2001), p. 28.
(8) Idem, p. 24.
(9) BARTHES, R. (1984). p.76.
(10) Idem, p. 76.
(11) Idem, p. 76.
(12) WHITE, E.(2001), p. 27.
(13) Idem, p. 14.
(14) Idem, p. 13.
(15) Idem, p. 15.
(16) Idem, p. 16.
(17) BOSI, A. In: NOVAES, A . Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 29.
(18) WHITE, E.(2001), p. 20.
(19) Idem, p. 21.
(20) Idem, p. 21.
(21) Idem, p. 21.[Grifo do autor]
(22) Idem, p. 24.
(23) Idem, p. 31.
(24) GIL, G. Se Eu Quiser Falar com Deus. (25) WHITE, E.(2001), p. 46 e p.47. [Grifos nossos]
(26) Idem, p. 49.
(27) Idem, p. 49.


Fonte:
Críticas e Ensaios

Eduardo White (1963)


Escritor moçambicano, Eduardo Costley White nasceu em Quelimane (Moçambique), a 21 de novembro de 1963.

Após uma formação durante três anos no Instituto Industrial, o escritor exerceu funções diretivas numa empresa comercial, foi membro do Conselho de Coordenação da revista “Charrua” e dirigente da Associação de Escritores de Moçambique.

Recebeu vários prémios literários e foi considerado, em 2001, pela Associação de Imprensa Moçambicana, a Figura Literária do ano.

Livros publicados

Amar sobre o Índico (1984)
Homoíne (1987)
“País de Mim (1990); Prémio Gazeta revista Tempo
Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave (1992); Prémio Nacional de Poesia
Os Materiais de Amor Seguido de O Desafio à Tristeza (1996)
Janela para Oriente (1999)
Dormir com Deus e um Navio na Língua (2001); bilingue português/inglês; Prémio Consagração Rui de Noronha (Editora Labirinto)
As Falas do Escorpião (novela; 2002)
O Homem a Sombra e a Flor e Algumas Cartas do Interior (2004).

Numa preocupação com as origens, Eduardo White tenta na sua poesia refletir sobre a sua história e sobre Moçambique, numa tentativa de apagar as marcas da guerra e de dignificar a vida humana. Para isso, escreve através de um amor diversificado que pode ser pela amada, pela terra ou mesmo pela própria poesia, sempre num tom de ternura, de onirismo, de musicalidade e, por vezes, de erotismo.

Moderníssimo, kafkiano, os seus textos apontam para uma leitura poética metalinguística, ou seja, em que os poemas, ao engendrarem a si mesmos, contam, paralelamente, a história de seu povo (amores, sofrimentos, opressões, miséria, estigmas das guerras, etc.) e a história da própria linguagem literária. (Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante , 2005)

Empenhado em cantar o Amor, a fim de que a paz se consolidasse nos âmagos individual e nacional, White desenvolveu uma escrita poética que almejou erotizar uma terra acometida pelas degradantes conseqüências de sucessivas guerras. Exaltando a vida e tudo o que dela pulsasse, o poeta exibiu um eu-lírico marcadamente otimista, embora, muitas vezes, melancólico e indignado. […]

Os versos de Eduardo White ultrapassaram o raio de visão do senso comum. Sem perder de vista os escombros, os cadáveres, os mutilados e a miséria, a poética do autor se propôs apontar caminhos e motivações para alcançar uma estabilização social. Nesse sentido, aprendemos com White que Amor e Poesia não significam instituições alienadas ou alienantes, visto que a própria mensagem poética, em O país de mim, nos tenha advertido: “ao amor não ponhas vendas, nunca, nem sequer aos poemas” (WHITE, 1989, p. 20).

“Como explicar que um jovem escritor dê tanta importância ao tema lírico [do amor] num país tão marcado pela violência?” – questionou Michel Laban numa entrevista que integra o livro Moçambique: encontro com escritores. White justificou a seleção de seu material poético, grifando o canto subjetivo como um discurso de resistência e persistência da memória: “Antes de mais nada gostaria de ressaltar que a temática que eu usei nos dois livros11 é acima de tudo uma temática de protesto e também de relembrança. A minha geração é uma geração de guerra: da guerra colonial [...] e agora e sempre a guerra com a Renamo. O que eu procurei é levar ao leitor uma relembrança do que afinal está em nós ainda vivo, do que a gente acredita como sendo possível, como sendo real, que é o amor.” (WHITE, in: LABAN, 1998, p. 1179 apud ALMEIDA, 2006

Fontes:
– Revista Literatas. Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona. ano 1. n. 13. 11 outubro 2011. Maputo: Movimento Literário Kuphaluxa. Gentilmente cedida por Amosse Mucavele.
– http://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_White
– http://lusofonia.com.sapo.pt/white.htm