Como todas as histórias das Mil e uma noites, esta surge encadeada a outra. Numa cidade da China, numa residência de gente fina, prepara-se uma festa em homenagem aos principais membros das corporações: alfaiates, sapateiros, comerciantes, barbeiros, carpinteiros e outros. Quando tudo está pronto para o início da festa, entra o dono da casa acompanhado de um adolescente estrangeiro, trajado à moda de Bagdá, bem constituído e belo, mas coxo. Mal esse jovem senta e olha em volta, algo perturba-o visivelmente. Levanta-se com a disposição de partir. O dono da casa pede-lhe que pelo menos explique este comportamento estranho.
Responde: “Há entre vós alguém cuja presença me obriga a sair. Se insistirdes em saber quem é, é aquele barbeiro ali.”
O dono da casa comenta:
“Como pode alguém que acaba de chegar de Bagdá ser incomodado pela presença de um barbeiro desta cidade?”
Todos pedem uma explicação, e o jovem acaba cedendo:
“Este barbeiro, que tem um aspecto de alcatrão e alma de betume, foi a causa de uma tragédia que nunca deveria ter ocorrido e que acabou por danificar uma das minhas pernas, como vedes. Jurei nunca mais viver na mesma cidade que ele, nunca me sentar onde ele estiver. Deixei Bagdá, minha cidade natal, por causa dele, e viajei até este país remoto. E eis que o encontro à minha frente na primeira reunião social de que participo. Sairei logo desta cidade, e espero estar bem longe deste parvo abominável antes do fim do dia.”
O barbeiro ouve essas imprecações de olhos baixos e sem adiantar uma palavra. Os outros convencem o coxo a contar sua história. Diz:
“Meus senhores, eu era filho único de um dos mais ricos mercadores de Bagdá. Apesar das solicitações de meu pai, não constituí família porque Alá havia plantado em mim uma aversão invencível pelas mulheres. Um dia, porém, uma jovem, vista à janela de um palácio, inverteu essa aversão numa paixão irresistível. Fiquei doente por não saber quem era e por não encontrar alguém que me pusesse em contato com ela. “Mas Alá teve pena de mim e, um dia, uma velha conhecida me disse: “Meu filho, aquela jovem é a filha do cádi de Bagdá. Conheço pessoas capazes de te arrumar um encontro com ela. Prepara-te.””
Curei-me na hora e readquiri as cores e o vigor da juventude. Antes de ir ao hammam, quis cortar o cabelo. Mandei um de meus escravos trazer um barbeiro, recomendando-lhe: “Escolhe alguém que tenha a mão ágil, mas sobretudo que seja discreto, educado, de poucas palavras e sem curiosidade para que não me venha atormentar com a loquacidade e a impertinência próprias à gente daquela profissão.” “Meu escravo trouxe-me um barbeiro que não era outro senhores, que este sinistro velho que vedes sentado entre vós.
Cumprimentou-me e disse: “Trago-te boas notícias, meu mestre, muito boas notícias. Aliás, não são boas notícias, mas bons votos para que recuperes a saúde e a força. Todavia, negócio é negócio. Que queres exatamente quem faça? Que te corte o cabelo ou te submeta à sangria? Não podes ignorar que o grande Ibn Abbas disse: “Quem mandar cortar o cabelo às sextas-feiras concilia-se com a graça de Alá, que afastará dele setenta tipos de pragas.” Por outro lado, não podes esquecer que o mesmo Ibn Abbas disse numa outra oportunidade: “Quem ousar sangrar-se ou fazer aplicações de ventosas as sextas-feiras, correrá o risco de tornar-se cego e sujeito a todas as doenças.”
“- Meu velho, respondi, peço-te que pares com esta conversa e me cortes o cabelo tão rapidamente quanto puderes, porque estou ainda fraco em conseqüência da doença e cansa-me tanto falar como ouvir.
“O barbeiro levantou-se, pegou um embrulho similar aos que os homens de sua profissão carregam, abriu-o e tirou dele, não os utensílios de seu trabalho como navalhas, tesouras, mas um astrolábio de sete facetas. Carregou-o até o centro do pátio, olhou o sol de frente e voltou para dizer-me:
“Deves saber que esta sexta-feira é o décimo dia do mês de Safar do ano 763 da Hégira de nosso santo profeta, que as bênçãos do céu estejam sobre ele! Coincide assim, segundo a ciência dos números, com o momento preciso em que o planeta Marrikh se encontra com o planeta Mercúrio, à altura de sete graus. Isso significa que hoje é um dia auspicioso para cortar o cabelo. ““Os mesmos cálculos revelam-me que tens a intenção de visitar hoje uma jovem senhora, e que essa visita pode trazer-te ou bem ou mal. Não digo que preciso de minha ciência para profetizar o que se passará exatamente quando tu e a jovem senhora estiverem juntos, mas isso pouco importa. Pois há coisas que é melhor calar. “
- Por Alá, explodi, sufocas-me com tua verbosidade. Acabarás por me matar. “Trouxe-te para que me cortes o cabelo. Corta-o já sem mais uma palavra.” “-Farei exatamente como desejas, replicou, embora não possa deixar de pensar que, se conhecesses a verdade, pedirias que te dê mais informações e conselhos. ““Pois, deves saber que, embora barbeiro - o mais célebre desta cidade - não sou apenas barbeiro. Possuo na ponta dos dedos as ciências da medicina, das plantas, da química, da geometria, da álgebra. Além delas, conheço a astronomia, a astrologia, a filosofia, a literatura, a história, o folclore de todos os povos e muito mais.”
“E o barbeiro prosseguiu assim, falando e falando e falando, até que o interrompi violentamente, gritando: “Irá me enlouquecer e me matar com este transbordamento interminável de palavras, velho assassino?” “-Aí está o ponto em que te enganas, mestre, replicou. Todo mundo me conhece como As-Sámet, o homem calado, pela parcimônia com que uso as palavras. “Essa afirmação pôs-me completamente fora de mim mesmo. Senti meu fel prestes a romper-se. Gritei a um de meus criados:
“Dá um quarto de dinar a este homem e manda-o embora. De qualquer forma, nunca me cortará o cabelo.”
“Ao ouvir a ordem dada, disse o barbeiro: “Eu poderia chamar essas palavras, palavras rudes, meu mestre. Sim, acho que qualquer um teria o direito de chamá-las palavras rudes. Permite-me dizer que não te dás conta de que desejo ter a honra de atender-te sem pensar em dinheiro. E já que me ofereço para cortar-te o cabelo sem retribuição, como podes imaginar que aceitaria dinheiro sem te ter prestado um serviço correspondente? Não , não, nunca poderia conceber uma coisa dessas. Considerar-me-ia desonrado por toda a vida se aceitasse a menor retribuição. Vejo claramente que não fazes justiça a meu valor. Isso não me impede de ter uma idéia exata de teu próprio valor. “Asseguro-te que te considero digno em tudo de teu grande e lamentado pai, para quem peço a compaixão de Alá. Ele era mesmo um fidalgo. Sim, teu querido velho pai era um fidalgo. Tenho para com ele uma dívida. Por algum motivo, ele sempre me cumulou com favores. Nunca houve homem mais generoso, nunca houve homem igual na sua grandeza se me permites falar assim; e por algum motivo, ele me estimava muito. Lembro-me, como se fosse ontem, do dia em que teu bondoso pai me fez chamar. Achei-o cercado por visitantes ilustres; mas deixou-os assim que cheguei e veio até mim e cumprimentou-me, dizendo: “Meu bom amigo, peço-te que me sangres hoje.” ““Aí abri meu astrolábio, medi a altura do sol e descobri que, naquela hora exata, a sangria não era aconselhada, mas que o seria momentos depois. Comuniquei minhas conclusões a teu pai - que pena que tal patrão tenha ido para a eternidade! Acreditou em mim sem fazer uma pergunta, e ficou batendo papo comigo como se fosse meu amigo e não meu amo, até que soou a hora certa para a operação. Sangrei-o então. Ele sangrou bem, pois era sempre um bom paciente, e agradeceu-me calorosamente. E não apenas ele. Seus amigos se juntaram a ele e me agradeceram também.
Agora, estou me lembrando de um fato que esquecia quando comecei esta história: teu honroso pai, satisfeito com a sangria, deu-me cem dinares de ouro.”“
O adolescente interrompeu sua narração e, olhando para todos os presentes, disse: “Estaria assassinando-vos como este malvado barbeiro me assassinou se continuasse a repetir aquela enxurrada de palavras enfadonhas, ocas, irritantes com que este patife me torturou. Não havia meio de livrar-me dele, nem de levá-lo a me cortar o cabelo, nem de obrigá-lo a calar-se. A certa altura, fez um grande descobrimento: descobriu que era um chato! Disse-me: “Receio estar irritando-te, ó jovem.” Mas logo acrescentou uma frase que o retratava definitivamente. Disse: “Contudo, sou sábio demais para me importar com detalhes como este.” E recomeçou a falar, falar, falar.
“Por fim, começou a cortar-me o cabelo. Mas parava a cada movimento para falar, falar, falar. Eu estava desesperado para livrar-me dele e de sua horrível presença, pois a hora de meu encontro com a filha do cádi se aproximava. Em desespero de causa, disse-lhe: “Estou com pressa porque vou a uma festa na casa de um amigo.” “Mal ouviu a palavra festa, quis acompanhar-me. Para fazê-lo desistir, dei-lhe todas as provisões de minha casa para que fosse festejar com seus amigos. Mas nem isso me libertou dele. Mandou um escravo levar as provisões para sua casa e seguiu-me secretamente na rua para me espionar. Quando entrei na casa do cádi para ver a filha antes da chegada do pai, este canalha postou-se em frente à casa e quando viu o cádi chegar, armou um escândalo desastroso. Tentando passar de um esconderijo a outro na casa do cádi, caí e quebrei a perna, e tornei-me coxo pela vida toda. Lavrei então meu testamento, legando meus bens a minha família e deixei Bagdá, minha cidade natal, decidido a ir viver em qualquer lugar onde não pudesse encontrar-me face a face com este parasita calamitoso. Percorri as sete partes do mundo e estabeleci-me nesta terra longínqua, pensando estar aqui a salvo deste mastim.
“Mas eis que, ao atender ao primeiro convite social que recebo, encontro o mesmo horrendo barbeiro sentado num lugar de honra entre os convidados. Todos os gastos que fiz, a vida errante que me impus, a desgraça de ser coxo são devidos a este demônio de cabelo branco, a esta relíquia perversa e assassina.
Possa Alá amaldiçoá-lo, a ele e à sua posteridade até o fim do tempo. E agora, não terei paz até que abandone este país como abandonei o meu.” Tendo falado
assim, o jovem levantou-se e partiu. Ficamos olhando para o barbeiro que se conservava calado e cabisbaixo. “O jovem tem razão ou não?” perguntou-lhe um
de nós.
- Por Alá, eu sabia o que fazia ao proceder como fiz. Pois assim evitei-Ihe desgraças maiores. Que agradeça a Alá e a mim por ter ficado estropiado de uma perna só quando podia ter perdido as duas. Eu não sou nenhum indiscreto ou linguarudo. Ao contrário, sou um homem útil, cauteloso e, sobretudo, calado, como vereis ao ouvir minha história. Por isso, meus amigos me chamam As-Sámet, o homem calado.
(Na sua história, esse homem calado fala ao longo de vinte e três páginas da edição original árabe para passar em revista o comportamento de seus seis irmãos, cada um dos quais mais horrendo que o outro.)
Fonte:
Domínio Público
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