quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XIX – Burrada


CAPITULO XIX
Burrada

Para descanso do meu espírito miss Jane passou a falar do movimento feminino, tema que muito me interessava.

— O partido elvinista, disse ela, desapareceu do cenário nacional como neve exposta ao fogo. Poderosíssimo na véspera, tão poderoso que batera seu adversário, o partido masculino, por meio milhão de votos, achava-se agora reduzido a uma só partidária: miss Elvin. Todas as mais haviam aderido aos homens escandalosamente, como se lá no intimo nunca tivessem ansiado por outra coisa.

O tempo ia passando e miss Elvin não se recompunha do formidável trambolhão sofrido. Para o encontro marcado em sua casa no dia das eleições não aparecera ninguém, e atirada a uma poltrona do salão deserto a irredutível sabina permaneceu até tarde da noite, furiosa, com os olhos cravados no aparelho por onde irradiara a ultima proclamação do Remember Sabino!

– Ultima, miss Jane?

– Ultima, sim, porque esse jornal havia morrido de súbito colapso. Todas as assinantes haviam cortado a ligação, e se miss Elvin tentasse radiar uma só palavra que fosse vê-la-ia perder-se virgem de ouvidos pelos intermundios siderais.

A um canto da sala havia um enorme gorila empalhado, com um dístico insultante: "O avô do ladrão". Era olhando para aquela bestial carcaça avoenga que miss Elvin compunha as suas terríveis catilinárias contra o Homo sapiens, ao qual jurara descer da sua posição de macho natural da mulher,

– Mas haveria sinceridade nisso? perguntei.

– Sinceridade estética evidentemente, forma de sinceridade tão legitima como outra qualquer.

– Não entendi muito bem. Miss Jane dizia ás vezes coisas um tanto acima da minha débil compreensão…

— Essa teoria, prosseguiu ela, fez carreira e exerceu uma função muito curiosa na América: congregar todas as fêmeas que por uma circunstância ou outra se desavinham com os machos — esposos, noivos ou namorados, e foi com esses elementos que se constituiu o partido elvinista. Partido instável, aliás, e sempre renovado. Diariamente nele se inscreviam milhares de adeptas e se eliminavam outras tantas. Entravam as brigadas com o homem e saiam as reconciliadas...

Mesmo assim miss Elvin elevou muito alto as suas construções, chegando até, como já disse, a criar ciências novas, adaptadas á mentalidade das mulheres.

A Universidade Sabina fez furor. Não tinha sede ao sistema de hoje, como aliás a maioria dos estabelecimentos de ensino da época. As lições eram radiadas diretamente para a residência das alunas. A ciência elvinista possuía seus métodos próprios, nada semelhantes aos da velha ciência dos homens. Em aritmética, por exemplo 2 + 2 não era forçosamente igual a quatro. Era igual ao que no momento conviesse.

— Vejo, disse eu, que é bem verdade o "nada há de novo debaixo do sol". Para quanta gente hoje a verdadeira matemática não é essa! Mas como era a ciência sabina, miss Jane? Fale-me dela.

Miss Jane explicou que o grande principio da ciência sabina era admitir como base de tudo a veneta; e como a veneta é de si feminina e instável nenhuma das ciências novas, inclusive as matemáticas, possuía base fixa. Tudo ondeava, como o mar donde procediam as sabinas. E por absurdo que isto nos pareça, a nós deste presente educado na rigidez da velha ciência de Aristóteles e Bacon, as teorias de miss Elvin trouxeram ao espírito humano a sua contribuição de beleza. Foi a vitoria do furta-cor, da onda, do reflexo fugidio do loie-fulerismo, contrapostos á cor fixa., á rigidez do cubo, á constância equacional dos termos. Isso se adaptava maravilhosamente á agilidade do pensamento mulheril, e foi justamente essa feição sedutora, amável e libérrima da teoria que determinou o enlace de todas as mulheres para o terreno político, operando a cisão branca.

– Qualquer coisa como o futurismo de hoje, não acha?

– Isso. Teorias de repouso, com base num sutil malabarismo de lógica, que servem para romper o monótono de certeza, de verdade, da coisa tida e havida como justa. O espirito humano nelas se recreia e se esponja, como se esponja na poeira o cavalo cansado.

Miss Elvin, entretanto, ao invés de mostrar-se desolada com as consequências do seu movimento só via o lado pessoal do desastre. Fora violenta demais a sua queda. O sonho maravilhoso erguera-a ás nuvens e a sabina acabou convencida de que era de fato messiânica. E como tinha o gênio impulsivo, não podia conter o furor diante da deserção até das amigas mais próximas.

Em certo momento, no dia do grande meeting, miss Elvin olhou para a cara bestial do gorila empalhado como quem olha para um inimigo de carne. O monstro, de dentes á mostra, parecia sorrir-lhe ironicamente.

— "Venceste ainda uma vez, meu celerado! Mas a crise passará e ajustaremos contas..." disse ela atirando-lhe á cara uma veneranda Origem das Especies de Charles Darwin.

Estava plenamente convicta de que quando o país reentrasse na normalidade ressurgiria o partido sabino. A onda fora-se. Mas o próprio da onda é ir e vir.

— "She is false as water..." repetiu miss Elvin por sua vez, espraiando o olhar para o futuro.

E assim foi. Quando o país recaiu na paz de sempre, o Remember Sabino! reapareceu e houve um perfeito da capo do elvinismo, como nas músicas...

Miss Jane fez pausa. Notou talvez que eu estava inquieto, em luta com alguma ideia. E não errara. Qualquer coisa me dizia que era o momento de declarar a minha sopitada paixão. O sangue estuava-me nas veias e por fim a palavra de amor que romperia a barreira assomou-me á boca. Mas ao chegar á boca transformou-se, e o que saiu foi uma filha da timidez disfarçada em curiosidade:

— E miss Astor? perguntei.

— Essa irradiava de contentamento, como se o reatar relações com o difamado Homo lhe houvesse correspondido a um secreto anelo do coração. Durante o período agudo da agitação elvinista operara-se uma completa ruptura entre os membros dos dois partidos, e miss Astor chegou a zombar de Kerlog, por quem possuia uma séria inclinação sentimental. O desfecho inesperado das eleições, entretanto, viera romper a frieza e aproximara-os de novo, fato que a enchia de secretas esperanças. As demais elvinistas, já saudosas do macho tradicional, tambem aproveitaram o ensejo para uma reconciliação — e é de crer que nunca houvesse maior safra de beijos na América.

Remexi-me na poltrona. Tanto beijo lá longe e uma criatura humana a definhar ali por falta de um só...

— Isso explicava, continuou a desentendida miss Jane, o estranho fenômeno de só as ex-adeptas de miss Elvin demonstrarem uma clara e inquieta alegria justamente na hora mais pressaga da nação. Enquanto todos se entregavam a penosas cogitações, colhidos pela angustia do momento, as ex-sabinas vogavam em pleno mar de uma doce lua de mel.

A crise de ternura não passou desapercebida ao ministro da Seleção Artificial.

— "Vai altear-se o índice dos nasciturnos brancos, disse ele a um colega no momento em que subiam os degraus da Casa Branca para a reunião do ministerio. Prevejo o congestionamento de Eropolis..."

Kerlog já lá estava no salão do conselho, mais sereno do que na véspera; embora ainda cheio de rugas na fronte. A conferência com Jim Roy abalara-o profundamente. Sentira que não era o negro um ambicioso vulgar, como tinha suposto. Via agora em Jim uma nobre alma de patriota, capaz do supremo heroísmo de sacrificar-se pela América. E graças a seu concurso podia o governo estudar com a necessária calma a gravíssima situação.

Reunidos todos os secretários, quem primeiro falou foi o ministro da Paz, antigo juiz cujo respeito pela Constituição tinha algo de supersticioso.

– "Refleti durante a noite sobre o caso, disse ele, e cheguei á conclusão de que a nós só compete uma coisa: mostrar-nos fiéis á memória dos instituidores da nação. A lei básica existe e a nossa missão suprema é fazê-la cumprir. Foi eleito um cidadão americano tão elegível como o senhor Kerlog ou miss Astor. Governo que somos, a lei nos obriga a aceitar o fato, mantendo a ordem e empossando Jim Roy no dia que a lei manda.”

– "Perdão! interveio o ministro da Equidade. Creio que o senhor Kerlog não nos convocou para o exame formal do problema. Seria inútil, sobre infantil. O problema transcende a esfera politica e torna-se racial. Neste momento não estamos aqui como secretários de estado e sim como brancos afrontados pelos negros. Acima das leis políticas vejo a lei suprema da Raça Branca. Acima da Constituição vejo o Sangue Ariano. O negro nos desafia. Cumpre-nos aceitar a luva e organizar a guerra."

Kerlog sorriu. Via o seu ministro despender as mesmas razões que ele lançara contra Jim. A voz do Sangue, sempre...

A discussão foi breve. Tirante o ministro da Paz, todos apoiaram o ponto de vista do ministro da Equidade — e Kerlog encerrou a audiência com estas palavras:

— "Possuímos uma delegação politica e com os poderes que ela nos outorga não podemos resolver um problema de sangue. Meu pensamento é que se convoque a convenção da Raça Branca. Como há razões de estado, tambem há razões de raça que nos cumpre ouvir e atender."

A ideia foi unanimemente aprovada.

– O que admiro, comentei eu, é a concisão e firmeza dessa gente da América futura. Se fosse entre nós hoje, que barulheira, que discurseira de não acabar mais!

– Tem razão, senhor Ayrton. A uma criatura de hoje que assistisse aos acontecimentos do ano de 2228 nos Estados Unidos, nada espantaria tanto como o alto controle de si próprio que o homem revelava. Nada de tumulto, de anarquia individualista, de desnecessárias violências na linguagem e nos atos. É que os processos seletivos tinham banido da sociedade os tarados,
inclusive os retóricos. Todas as perturbações do mundo vinham da ação anti-social desses maus elementos. Até á vitoria pratica do eugenismo, a desordem humana raiara pelo destempero e não podia deixar de ser assim, visto como um alcoólatra, um retórico ou um burocrata tinham tanta liberdade de encher o mundo de futuros pensionistas das prisões, dos prostíbulos e das câmaras de deputados como um homem são de o povoar de silenciosos homens de bem. A má semente humana gozava de tantos direitos como a semente que abrolhou em Lincoln. E a caridade, a filantropia, a assistencia publica em matéria de defesa social, não faziam senão despender enormes quantidades de dinheiro e esforço na criação de hospitais, asilos, hospícios, prisões, casas de congresso, repartições publicas, isto é, abrigos para os produtos lógicos da má origem. A ideia de seleção da semente, de há muito vitoriosa na agricultura e na pecuária, só não se via aceita no campo que mais deveria interessar ao homem. Uma velha ideologia mística vinda da Asia hebraica, e um falso conceito de liberdade vindo do 89 francês, a isso se opunham tenazmente. Quando em 2031 Owen propôs a lei espartana, a resistência ainda se mostrou forte; mas o alto progresso do espirito da América permitiu-lhe a vitoria. Pouco depois, quando o mesmo Owen formulou a lei da esterilização dos tarados, embora fosse colossal o numero dos atingidos, já se revelou menor a resistência e a lei venceu por esmagadora maioria.

Bastou um século de inteligente e sistemática aplicação dessas leis áureas para que o povo americano se alçasse a um grau de elevação física, mental e moral que nem o próprio Owen chegara a sonhar. Fecharam--se as prisões e com elas os hospitais, os hospícios e asilos de toda espécie. E os sociólogos da época entraram a assombrar-se da estupidez dos seus ancestrais...

— ... que passavam a vida lutando contra os produtos do mal sem terem a ideia de suprimi-lo com supressão da má semente.

Até a miséria, cancro julgado pelos velhos filósofos como contingência humana, viu-se gradualmente extinta á proporção que o progresso seletivo operava os seus lógicos efeitos. Com ela desapareceram automaticamente a prostituição e as formas baixas do crime.

O direito de reprodução passou a ser regido pelo Código da Raça, o mais alto monumento da sabedoria humana. Só quem apresentasse a serie completa de requisitos que a Eugenia impunha — requisitos que assegurassem a perfeita qualidade dos produtos, é que recebia o ministerio da Seleção Artificial o brevet de "pai autorizado".

— Mas realmente parece incrível, miss Jane, exclamei com horror, que ainda hoje tenha o direito de ser pai quem quer! Morfeticos há ali na roça que botam no mundo anualmente pequeninos lázaros. E ninguém vê, ninguém diz nada, todos acham que está tudo direito. ..

Eu sentia-me a ferver, com ímpetos de pular para a rua e berrar para todos os ventos:

— Burrada!...

Miss Jane acalmou-me a fúria e prosseguiu:

— E não parava aí a intervenção seletiva. Se um "pai autorizado" pretendia casar-se, tinha de apresentar-se com a noiva a um Gabinete Eugenometrico, onde lhes avaliavam o indice eugenico e lhes estudavam os problemas relativos á harmonização somática e psíquica. Caso um deles não atingisse o índice exigido, poderiam contrair núpcias mas sob a condição de infecundidade.

– Como é claro e inteligente isso! exclamei. Burrada!…

– Reproduzir a espécie tornou-se um ato de altíssima responsabilidade, já que era de altíssima relevância para o progresso da espécie. A ideia de exigir habilitações oficiais para certos atos da vida é velha — mas exclui o ato de dar vida á prole futura. Exige o estado de hoje habilitação brevetada para quasi tudo, para que um homem trabalhe no foro, construa uma casa, cure uma dor de barriga…

– enrole uma pílula …

– ...mas nada exige de quem pretende dar vida a um novo ser humano, elo inicial, muitas vezes, de uma cadeia sem fim de desgraçados ou criminosos.

– Burrada! Burrada... exclamei deveras revolta do contra a estupidez vigente. E como não ser assim, se qualquer Sá ou qualquer Pato dirige a opinião?

Depois que meu ímpeto de revolta serenou, voltei a interpela-la acerca de um ponto que andava a espicaçar a minha curiosidade.

– E o casamento, miss Jane? Já falou diversas vezes em casamento e estou curioso por saber se essa palavra em 2228 diz o mesmo que hoje.

– Diz e não diz, respondeu miss Jane. Nos casamentos em que o fim era a procriação, o estado intervinha com olhos de lince. Sendo o objetivo a prole sã de corpo e alma, compreende o senhor Ayrton que todo o rigor era pouco para evitar desvios funestos ao futuro da raça. As criaturas autorizadas a procriar constituíam uma espécie de nobreza. Todos as respeitavam como as eleitas da espécie, preciosas linhas diretrizes do amanhã. O supersticioso acato que mereciam outrora os duques, marqueses e barões por mercês arbitrarias de tronos e solios pontifícios, passou a caber aos pais pelo simples fato de serem pais. Ser pai valia por um diploma de superioridade mental, moral e fisica, conferido pela natureza e confirmado pelos poderes públicos.

Esse casamento aproximava-se do nosso em muitos pontos. Era tambem dissolúvel. Mas conquanto dissolúvel, raro se dissolvia: a harmonização pré-nupcial dos Gabinetes Eugenometricos quasi não dava oportunidade a erros.

Nos outros casos os cônjuges uniam-se e desuniam-se com a máxima liberdade e desembaraço. Nada tinha que fazer o governo em um contrato bilateral onde só valia a vontade dos contratantes.

– Quer dizer que o numero dos divórcios cresceu
espantosamente…

– Ao contrario, diminuiu como nunca se esperou. E diminuiu em virtude da única imposição que a lei fazia a esses contratos: as férias conjugais obrigatórias.

– ? !

– Sim, férias. A experiência psicológica demonstrou que o mal do casamento vinha mais do enfaro recíproco dos cônjuges do que da essência dessa forma de associação sexual. Instituiram-se as férias, como temos hoje as forenses, as colegiais, etc. E essa separação
periódica agiu com tamanha eficácia que os casais passaram a ter duas luas de mel por ano, luazinha após as férias pequenas e lua cheia após ás grandes. Não houve mais necessidade de recorrer-se ao violento drástico do divorcio, como o temos hoje. O suave laxante das férias limpava os cônjuges das toxinas do enfaro e renascia-lhes o amor ao petit-feu das saudades.

– Puro ovo de Colombo! exclamei. Estou vendo que tudo é ovo de Colombo na vida. ..

– Será, mas o Colombo deste ovo só apareceu no século XXIII. Foi Johnston Coolidge, autor do famoso livro Toxinas Conjugais, concluiu miss Jane.

Pela primeira vez fui eu quem pôs fim a um domingo. Estava ansioso por voltar á cidade e nos cafés, na rua, no escritório, pregar a eugenia e insultar a estúpida gente que não vê as coisas mais simples. A consequência foi que só dormi pela madrugada. E sonhei, agitado. Sonhei a cidade tão limpa dos seus aleijões que ficava reduzida unicamente a duas criaturas de mãos presas — eu e miss Jane...
---------------
continua… XX– A Convenção Branca

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

Nenhum comentário: