IV
O bobinho
O passeio que Narizinho deu com o príncipe foi o mais belo de toda a sua vida. O coche de gala corria por sobre a areia alvíssima do fundo do mar conduzido por mestre Camarão e tirado por seis parelhas de hipocampos, uns bichinhos com cabeça de cavalo e cauda de peixe. Em vez de pingalim, o cocheiro usava os fios de sua própria barba para chicoteá-los.
— lept! lept!...
Que lindos lugares ela viu! Florestas de coral, bosques de esponjas vivas, campos de algas das formas mais estranhas. Conchas de todos os jeitos e cores. Polvos, enguias, ouriços — milhares de criaturas marinhas tão estranhas que até pareciam mentiras do barão de Munchausen.
Em certo ponto Narizinho encontrou uma baleia dando de mamar a várias baleinhas novas. Teve a idéia de levar para o sítio uma garrafa de leite de baleia, só para ver a cara de espanto que dona Benta e tia Nastácia fariam. Mas logo desistiu, pensando: “Não vale a pena. Elas não acreditam mesmo...”
Nisto apareceu ao longe um formidável espadarte. Vinha com o seu comprido esporão de pontaria feita para o cetáceo, que é como os sábios chamam a baleia. O príncipe assustou-se.
— Lá vem o malvado! — disse ele. — Esses monstros divertem-se em espetar as pobres baleias como se elas fossem almofadinhas de alfinetes. Vamo-nos embora, que a luta vai ser medonha.
Recebendo ordem de voltar, o Camarão estalou as barbas e pôs os “cabecinhas de cavalo” no galope.
De volta ao palácio o príncipe deixou a menina e a boneca na gruta dos seus tesouros, indo cuidar dos preparativos da festa.
Narizinho pôs-se a mexer em tudo... Quantas maravilhas! Pérolas enormes aos montes. Muitas, ainda na concha, punham as cabecinhas de fora, espiavam a menina e escondiam-se outra vez. De medo da Emília. Caramujos, então, era um nunca se acabar. de todos os jeitos possíveis e imagináveis. E conchas! Quantas, Deus do céu!
Narizinho teria ficado ali a vida inteira, examinando uma por uma todas aquelas jóias, se um peixinho de rabo vermelho não viesse da parte do príncipe dizer que o jantar estava na mesa.
Foi correndo e achou a sala de jantar ainda mais bonita que a sala do trono. Sentou-se ao lado do príncipe e gabou muito a arrumação da mesa.
— Artes das senhoras sardinhas — disse ele. — São as melhores arrumadeiras do reino.
A menina pensou consigo: “Não é à toa que sabem arrumar-se tão direitinhas dentro das latas...”
Vieram os primeiros pratos — costeletas de camarão, filés de marisco, omeletes de ovos de beija-flor, lingüiça de minhoca – um petisco de que o príncipe gostava muito.
Enquanto comiam, uma excelente orquestra de cigarras e pernilongos tocava a música do fium, regida pelo maestro Tangará, de batuta no bico. Nos intervalos três vaga-lumes de circo fizeram mágicas lindas, entre as quais foi muito apreciada a de comer fogo.
Para lidar com fogo não há como eles.
Encantada com tudo aquilo, Narizinho batia palmas e dava gritos de alegria. Em certo momento o mordomo do palácio entrou e disse umas palavras ao ouvido do príncipe.
— Pois mande-o entrar — respondeu este.
— Quem é? — quis saber a menina.
— Um anãozinho que nos apareceu aqui ontem para contratar-se como bobo da corte. Estamos sem bobo desde que o nosso querido Carlito Pirulito foi devorado pelo peixe-espada.
O candidato ao cargo de bobo da corte entrou conduzido pelo mordomo, e logo saltou para cima da mesa, pondo-se a fazer graças.
Narizinho percebeu incontinenti que o bobinho não passava do Pequeno Polegar, vestido com o clássico saiote de guizos e uma carapuça também de guizos na cabeça. Percebeu mas fingiu não ter desconfiado de nada.
— Como é o seu nome? — perguntou-lhe o príncipe.
— Sou o gigante Fura-Bolos! — respondeu o bobinho sacudindo os guizos.
Polegar não tinha o menor jeito para aquilo. Não sabia fazer caretas engraçadas, nem dizer coisas que fizessem rir. Narizinho teve um grande dó dele e disse-lhe baixinho:
— Apareça lá no sítio de vovó, senhor Fura-Bolos. Tia Nastácia faz bolinhos muitos bons para serem furados. Vá morar comigo, em ar essa vida idiota de bobo da corte. Você não dá para isso.
Nesse momento reapareceu na sala a baratinha de mantilha, de nariz erguido para o ar como quem fareja alguma coisa.
— Achou o fugido? — perguntou-lhe o príncipe.
— Ainda não — respondeu ela — mas aposto que anda por aqui. Estou sentindo o cheirinho dele.
E farejou outra vez o ar com o seu nariz de papagaio seco.
Apesar de ser muito burrinho, o príncipe desconfiou que o tal Fura-Bolos fosse o mesmo Polegar.
— Talvez esteja — disse ele. — Talvez Polegar seja o bobinho que veio oferecer-se para substituir o Carlito Pirulito. Para onde foi? — indagou correndo os olhos em redor. — Estava aqui ainda agora, não faz meio minuto...
Procuraram o bobinho por toda a parte, inutilmente. É que a menina, mal viu entrar na sala a diaba da velha, disfarçadamente o tinha agarrado e enfiado na manga do vestido.
Dona Carochinha remexia por todos os cantos, até dentro das terrinas, sempre resmungona.
— Está aqui, sim. Estou sentindo o cheirinho dele cada vez mais perto. Desta feita não me escapa.
Vendo-a aproximar-se mais e mais, Narizinho perturbou-se. E para disfarçar gritou:
— Dona Carochinha está caducando. Polegar usa as botas de sete léguas e, se esteve aqui, já deve estar na Europa.
A velha deu uma risada gostosa.
— Não vê que não sou boba? Assim que desconfiei que ele andava querendo fugir, fui logo tratando de trancar suas botas na minha gaveta. Polegar fugiu descalço e não me escapa.
— Há de escapar, sim! — gritou Narizinho em tom de desafio.
— Não escapa, não! — retrucou a velha — e não me escapa porque já sei onde está. Está escondido aí na sua manga, ouviu? – e avançou para ela.
Foi um rebuliço na sala. A velha atracou-se com a menina, e certamente que a subjugaria, se a boneca, que estava na mesa ao lado de sua dona, não tivesse tido a bela idéia de arrancar-lhe os óculos e sair correndo com eles.
Dona Carochinha não enxergava nada sem óculos, de modo que ficou a pererecar no meio da sala como cega, enquanto a menina corria a esconder Polegar na gruta dos tesouros, bem lá no fundo de uma concha.
— Fique aqui bem quietinho até que eu volte, recomendou-lhe.
E regressou à sala, muito lampeira da sua façanha.
–––––––
continua…
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
O bobinho
O passeio que Narizinho deu com o príncipe foi o mais belo de toda a sua vida. O coche de gala corria por sobre a areia alvíssima do fundo do mar conduzido por mestre Camarão e tirado por seis parelhas de hipocampos, uns bichinhos com cabeça de cavalo e cauda de peixe. Em vez de pingalim, o cocheiro usava os fios de sua própria barba para chicoteá-los.
— lept! lept!...
Que lindos lugares ela viu! Florestas de coral, bosques de esponjas vivas, campos de algas das formas mais estranhas. Conchas de todos os jeitos e cores. Polvos, enguias, ouriços — milhares de criaturas marinhas tão estranhas que até pareciam mentiras do barão de Munchausen.
Em certo ponto Narizinho encontrou uma baleia dando de mamar a várias baleinhas novas. Teve a idéia de levar para o sítio uma garrafa de leite de baleia, só para ver a cara de espanto que dona Benta e tia Nastácia fariam. Mas logo desistiu, pensando: “Não vale a pena. Elas não acreditam mesmo...”
Nisto apareceu ao longe um formidável espadarte. Vinha com o seu comprido esporão de pontaria feita para o cetáceo, que é como os sábios chamam a baleia. O príncipe assustou-se.
— Lá vem o malvado! — disse ele. — Esses monstros divertem-se em espetar as pobres baleias como se elas fossem almofadinhas de alfinetes. Vamo-nos embora, que a luta vai ser medonha.
Recebendo ordem de voltar, o Camarão estalou as barbas e pôs os “cabecinhas de cavalo” no galope.
De volta ao palácio o príncipe deixou a menina e a boneca na gruta dos seus tesouros, indo cuidar dos preparativos da festa.
Narizinho pôs-se a mexer em tudo... Quantas maravilhas! Pérolas enormes aos montes. Muitas, ainda na concha, punham as cabecinhas de fora, espiavam a menina e escondiam-se outra vez. De medo da Emília. Caramujos, então, era um nunca se acabar. de todos os jeitos possíveis e imagináveis. E conchas! Quantas, Deus do céu!
Narizinho teria ficado ali a vida inteira, examinando uma por uma todas aquelas jóias, se um peixinho de rabo vermelho não viesse da parte do príncipe dizer que o jantar estava na mesa.
Foi correndo e achou a sala de jantar ainda mais bonita que a sala do trono. Sentou-se ao lado do príncipe e gabou muito a arrumação da mesa.
— Artes das senhoras sardinhas — disse ele. — São as melhores arrumadeiras do reino.
A menina pensou consigo: “Não é à toa que sabem arrumar-se tão direitinhas dentro das latas...”
Vieram os primeiros pratos — costeletas de camarão, filés de marisco, omeletes de ovos de beija-flor, lingüiça de minhoca – um petisco de que o príncipe gostava muito.
Enquanto comiam, uma excelente orquestra de cigarras e pernilongos tocava a música do fium, regida pelo maestro Tangará, de batuta no bico. Nos intervalos três vaga-lumes de circo fizeram mágicas lindas, entre as quais foi muito apreciada a de comer fogo.
Para lidar com fogo não há como eles.
Encantada com tudo aquilo, Narizinho batia palmas e dava gritos de alegria. Em certo momento o mordomo do palácio entrou e disse umas palavras ao ouvido do príncipe.
— Pois mande-o entrar — respondeu este.
— Quem é? — quis saber a menina.
— Um anãozinho que nos apareceu aqui ontem para contratar-se como bobo da corte. Estamos sem bobo desde que o nosso querido Carlito Pirulito foi devorado pelo peixe-espada.
O candidato ao cargo de bobo da corte entrou conduzido pelo mordomo, e logo saltou para cima da mesa, pondo-se a fazer graças.
Narizinho percebeu incontinenti que o bobinho não passava do Pequeno Polegar, vestido com o clássico saiote de guizos e uma carapuça também de guizos na cabeça. Percebeu mas fingiu não ter desconfiado de nada.
— Como é o seu nome? — perguntou-lhe o príncipe.
— Sou o gigante Fura-Bolos! — respondeu o bobinho sacudindo os guizos.
Polegar não tinha o menor jeito para aquilo. Não sabia fazer caretas engraçadas, nem dizer coisas que fizessem rir. Narizinho teve um grande dó dele e disse-lhe baixinho:
— Apareça lá no sítio de vovó, senhor Fura-Bolos. Tia Nastácia faz bolinhos muitos bons para serem furados. Vá morar comigo, em ar essa vida idiota de bobo da corte. Você não dá para isso.
Nesse momento reapareceu na sala a baratinha de mantilha, de nariz erguido para o ar como quem fareja alguma coisa.
— Achou o fugido? — perguntou-lhe o príncipe.
— Ainda não — respondeu ela — mas aposto que anda por aqui. Estou sentindo o cheirinho dele.
E farejou outra vez o ar com o seu nariz de papagaio seco.
Apesar de ser muito burrinho, o príncipe desconfiou que o tal Fura-Bolos fosse o mesmo Polegar.
— Talvez esteja — disse ele. — Talvez Polegar seja o bobinho que veio oferecer-se para substituir o Carlito Pirulito. Para onde foi? — indagou correndo os olhos em redor. — Estava aqui ainda agora, não faz meio minuto...
Procuraram o bobinho por toda a parte, inutilmente. É que a menina, mal viu entrar na sala a diaba da velha, disfarçadamente o tinha agarrado e enfiado na manga do vestido.
Dona Carochinha remexia por todos os cantos, até dentro das terrinas, sempre resmungona.
— Está aqui, sim. Estou sentindo o cheirinho dele cada vez mais perto. Desta feita não me escapa.
Vendo-a aproximar-se mais e mais, Narizinho perturbou-se. E para disfarçar gritou:
— Dona Carochinha está caducando. Polegar usa as botas de sete léguas e, se esteve aqui, já deve estar na Europa.
A velha deu uma risada gostosa.
— Não vê que não sou boba? Assim que desconfiei que ele andava querendo fugir, fui logo tratando de trancar suas botas na minha gaveta. Polegar fugiu descalço e não me escapa.
— Há de escapar, sim! — gritou Narizinho em tom de desafio.
— Não escapa, não! — retrucou a velha — e não me escapa porque já sei onde está. Está escondido aí na sua manga, ouviu? – e avançou para ela.
Foi um rebuliço na sala. A velha atracou-se com a menina, e certamente que a subjugaria, se a boneca, que estava na mesa ao lado de sua dona, não tivesse tido a bela idéia de arrancar-lhe os óculos e sair correndo com eles.
Dona Carochinha não enxergava nada sem óculos, de modo que ficou a pererecar no meio da sala como cega, enquanto a menina corria a esconder Polegar na gruta dos tesouros, bem lá no fundo de uma concha.
— Fique aqui bem quietinho até que eu volte, recomendou-lhe.
E regressou à sala, muito lampeira da sua façanha.
–––––––
continua…
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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