III
No palácio
O príncipe consultou o relógio.
— Estou na hora da audiência — murmurou. — Vamos depressa, que tenho muitos casos a atender.
Lá se foram. Entraram diretamente para a sala do trono, no qual a menina se sentou a seu lado, como se fosse uma princesa. Linda sala! Toda dum coral cor de leite, franjadinho como musgo e penduradinho de pingentes de pérola, que tremiam ao menor sopro.
O chão, de nácar furta-cor, era tão liso que Emília escorregou três vezes.
O príncipe deu o sinal de audiência batendo com uma grande pérola negra numa concha sonora. O mordomo introduziu os primeiros queixosos. Um bando de moluscos nus que tiritavam de frio. Vinham queixar-se dos Bernardos Eremitas.
— Quem são esses Bernardos? — indagou a menina.
— São uns caranguejos que têm o mau costume de se apropriarem das conchas destes pobres moluscos, deixando-os em carne viva no mar. Os piores ladrões que temos aqui.
O príncipe resolveu o caso mandando dar uma concha nova a cada molusco.
Depois apareceu uma ostra a se queixar dum caranguejo que lhe havia furtado a pérola.
— Era uma pérola ainda novinha e tão galante! — disse a ostra, enxugando as lágrimas. — Ele raptou-a só de mau, porque os caranguejos não se alimentam de pérolas, nem as usam como jóias. Com certeza já a largou por aí nas areias...
O príncipe resolveu o caso mandando dar à ostra uma pérola nova do mesmo tamanho.
Nisto surgiu na sala, muito apressada e aflita, uma baratinha de mantilha, que foi abrindo caminho por entre os bichos até alcançar o príncipe.
— A senhora por aqui? — exclamou este, admirado. – Que deseja?
— Ando atrás do Pequeno Polegar — respondeu a velha. – Há duas semanas que fugiu do livro onde mora e não o encontro em parte nenhuma. Já percorri todos os reinos encantados sem descobrir o menor sinal dele.
— Quem é esta velha? — perguntou a menina ao ouvido do príncipe. — Parece que a conheço...
— Com certeza, pois não há menina que não conheça a célebre Dona Carochinha das histórias, a baratinha mais famosa do mundo.
E voltando-se para a velha:
— Ignoro se o Pequeno Polegar anda aqui pelo meu reino. Não o vi, nem tive notícias dele, mas a senhora pode procurá-lo. Não faça cerimônia...
— Por que ele fugiu? — indagou a menina.
— Não sei — respondeu dona Carochinha — mas tenho notado que muitos dos personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda a vida presos dentro delas. Querem novidade. Falam em correr mundo a fim de se meterem em novas aventuras. Aladino queixa-se de que sua lâmpada maravilhosa está enferrujando. A Bela Adormecida tem vontade de espetar o dedo noutra roca para dormir outros cem anos. O Gato de Botas brigou com o marquês de Carabás e quer ir para os Estados Unidos visitar o Gato Félix. Branca de Neve vive falando em tingir os cabelos de preto e botar ruge na cara. Andam todos revoltados, dando-me um trabalhão para contê-los. Mas o pior é que ameaçam fugir, e o Pequeno Polegar já deu o exemplo.
Narizinho gostou tanto daquela revolta que chegou a bater palmas de alegria, na esperança de ainda encontrar pelo seu caminho algum daqueles queridos personagens.
— Tudo isso — continuou dona Carochinha — por causa do Pinóquio, do Gato Félix e sobretudo de uma tal menina do narizinho arrebitado que todos desejam muito conhecer. Ando até desconfiada que foi essa diabinha quem desencaminhou Polegar, aconselhando-o a fugir.
O coração de Narizinho bateu apressado.
— Mas a senhora conhece essa tal menina? — perguntou, tapando o nariz com medo de ser reconhecida.
— Não a conheço — respondeu a velha — mas sei que mora numa casinha branca, em companhia de duas velhas corocas.
Ah, por que foi dizer aquilo? Ouvindo chamar dona Benta de velha coroca, Narizinho perdeu as estribeiras.
— Dobre a língua! — gritou vermelha de cólera. — Velha coroca é vosmecê, e tão implicante que ninguém mais quer saber das suas histórias emboloradas. A menina do narizinho arrebitado sou eu, mas fique sabendo que é mentira que eu haja desencaminhado o Pequeno Polegar, aconselhando-o a fugir. Nunca tive essa “bela idéia”, mas agora vou aconselhá-lo, a ele e a todos os mais, a fugirem dos seus livros bolorentos, sabe?
A velha, furiosa, ameaçou-a de lhe desarrebitar o nariz da primeira vez em que a encontrasse sozinha.
— E eu arrebitarei o seu, está ouvindo? Chamar vovó de coroca! Que desaforo!...
Dona Carochinha botou-lhe a língua. uma língua muito magra e seca. e retirou-se furiosa da vida, a resmungar que nem uma negra beiçuda.
O príncipe respirou de alívio ao ver o incidente terminado.
Depois encerrou a audiência e disse ao primeiro-ministro:
— Mande convite a todos os nobres da corte para a grande festa que vou dar amanhã em honra à nossa distinta visitante. E diga a mestre Camarão que ponha o coche de gala para um passeio pelo fundo do mar. Já.
–––––––
continua…
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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