domingo, 23 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XXII– Amor! Amor!


CAPITULO XXII
Amor! Amor!

Miss Jane continuou:

— Depois de sua espaventosa adesão ao Homo, a líder do partido feminino caiu em si. Percebeu que o desvairamento no dia da vitoria negra lhe quebrara a soberba linha das belas atitudes e a transformara numa perfeita louca á moda das velhas sufragistas britânicas. E envergonhou-se. Que pensaria dela o Presidente Kerlog? Como teria o lider branco, lá no intimo, recebido aquele arroubo de sinceridade explosiva?

Miss Astor amava a Kerlog. A nobre figura do Presidente, sua firmeza no governo, sua agilidade de espirito e sua serenidade de força construtiva, seduziam-na de modo incoercível. E talvez até que no fundo toda a atuação política de miss Astor não visasse outro fim além de aproxima-la do lider branco, por emparelhamento num mesmo nivel de prestigio social.

– Por que então contrapos-se a ele nas eleições? perguntei sapatescamente.

– Porque a linha reta da mulher é sempre torta. Elvinismo, senhor Ayrton!... Matemática, ciência elvinista! Dois mais dois igual... ao que convém. Mas miss Astor errava, se acaso se supunha diminuída na opinião de Kerlog. O presidente era Homo e, apesar de todos os progressos da eugenia, um Homo tão sensível ao contacto feminino como... como o senhor Ayrton, por exemplo.

Corei forte. Momentos antes havia eu, sem o querer, está visto, tocado com o meu pé o mimoso pé de miss Jane, e não pude esconder a corrente elétrica que me percorreu o corpo. Seria que miss Jane, sempre tão desentendida, aludia a esse fato? Estava a minha amiga um tanto diferente naquela tarde. Menos impassível que de costume e assim como quem quer e não quer, como quem vai e não vai, como quem diz e não diz. Apesar de toda a minha pouca penetração feminina eu sentia isso, adivinhando nela os primeiros estremecimentos da mulher.

— E já que era assim sensível, continuou a jovem, o amplexo que no momento do perigo pôs miss Astor em contacto com Kerlog calou fundo nas células presidenciais e impregnou-as disso que os homens chamam desejo.

Tive vontade de perguntar a miss Jane como as mulheres chamavam isso que os homens chamam desejo — mas me faltou a coragem.

– E daí por diante, sempre que a razão do senhor Kerlog se punha a pesar os prós e contras relativos a miss Astor intervinham as células abraçadas, colocando na concha dos prós a tara da saudade — e lá se ia a frieza da razão do senhor Kerlog. Pobre razão humana. Pobre hoje, pobre em 2228!... E tanto era assim, que logo depois da invasão da sala pelas elvinistas arrependidas o senhor Kerlog comentou o fato nestes termos, dirigindo-se ao ministro da Equidade:

– "Miss Astor sempre se apresentou diante de mim envolvida em atitudes, belas, não resta duvida, porque há sempre beleza em todos os seus movimentos — mas atitudes que me chocavam como falsas. Nem uma só vez a vi ao natural. Foi preciso que o desastre sobre
viesse e o terror se apossasse de sua alma para que eu a conhecesse como sempre desejei conhece-la: mulher."

E lá consigo recordava a doçura do seu abraço.

Esse abraço ficou. Os dias se foram passando. Veio a Convenção Branca. Veio a dor de cabeça. Veio o omeguismo. Nada apagava das células cervicais do senhor Kerlog a impressão do doce contacto.

Certa vez, reunido o ministerio, os ministros perceberam que o Presidente olhava muito amiúde para o relógio. O assunto em debate era o progresso do desencarapinhamento dos negros, matéria de especial atenção para o chefe do estado. Especial e demorada — menos naquele dia. Naquele dia o Presidente atropelava os seus auxiliares como que desejoso de encerrar mais cedo a reunião.

As informações estatísticas apresentadas pela Dudley Uncurling Company deviam ser bastante favoráveis, a avaliar-se pelo sorriso com que o lider branco as recebera.

– "Estamos no fim," disse ele. A ciência resolveu de fato o grave problema étnico — e que magistral solução! Em vez de expatriar o negro ou dividir o país...

– "Desencarapinha-lo!" completou, piscando o olho, o ministro da Seleção.

Todos se entreolharam com certo ar de velhacaria. O da Equidade disse:

— "O binômio racial passa a monômio. Só o ariano é grande e Dudley é o seu profeta."

Eu cocei a cabeça num gesto muito lá do escritório.

— Mas, então, miss Jane, a solução é mesmo a que eu adivinhei — a igualificação das raças!...

Miss Jane tossiu uma tossezinha de encomenda e desconversou:

— O neologismo está bom, senhor Ayrton. Por mais rica que seja uma lingua, a expressão humana tem sempre necessidade de palavras novas. "Igualificação" — muito bem!

Encolhi-me no fundo da minha poltrona.

— Mas, continuou ela, o relógio do senhor Kerlog, consultado pela décima vez, marcava três horas. O Presidente ergueu-se e deu por finda a reunião. Os ministros saíram. Na escada disse o da Paz ao da Equidade:

— "Notou a impaciência de Kerlog?"

– "Notei sim. Estava inquieto..."

– "Cherchez..."

– "Não é necessário. Se ninguém resiste á ação catalitica de miss Evelyn, quem lhe resistirá ao contacto?"

Riram-se, e lá se foram cada qual para o seu lado.

Não erraram os dois ministros. Logo depois miss Evelyn Astor parava em frente da Casa Branca e ágil como as deusas — ou as amorosas — subia as escadas.

Foi introduzida incontinenti.

– "Benvinda seja a minha formosa rival", disse com o mais amável dos seus sorrisos o Presidente flecha do.

– "Ex, aliás, Presidente Kerlog!" respondeu a encantadora Circe com um sorriso que era outra flecha.

– "Abandona então a política? Não insiste na sua
candidatura?"

– "Abandono. Perdi a confiança nos meus nervos. Além disso, mudei de ideia a respeito de um homem..."

– "Fazia mau juízo dele?"

– "Mau não. Errôneo, apenas. Vejo hoje que esse homem está no seu lugar."

– "Obrigado, miss Astor", exclamou o Presidente. "Recebo a sua alta homenagem como ao prêmio dos prêmios."

– "Pague-me então com outra. Líder que ainda sou de um partido, creio merecer a confiança do lider branco. Não é justo que eu conheça o pensamento intimo do governo relativo á questão negra?"

O Presidente Kerlog sorriu com afetada diplomacia.

— "Segredos de estado, miss Astor!..."

— "E já houve algum segredo de estado que não fosse conhecido das... mulheres de estado?" retrucou a ex-sabina com vivacidade.

Kerlog, bom esgrimista, tinha fama de pronto nas replicas.

— "As rainhas, as favoritas de outrora, eram de fato cofres, lindos cofres de segredos. Hoje, porém, que não há mais rainhas nem favoritas, só podem conhecer os segredos de estado as..."

Parou. Embebeu os olhos nos de miss Astor. Viu neles o que procurava e concluiu numa gentil mesura:

— "... as Presidentas!"

Miss Astor fez ar de desapontada e armou bico de criança a quem negam doce.

— "Quer dizer que só conhecerei tal segredo quando for eleita Presidenta..."

Os olhos de ambos encontraram-se de novo e meteram-se pelas respectivas almas a dentro. Liam-se os dois amorosos como em livros abertos.

— "Crê então, miss Astor, que só as eleições fazem Presidentas?"

Nova cara de desentendida, novo bico de criança. A coitadinha não percebia coisa nenhuma e foi mister que o lider branco dissesse tudo:

— "Esposa do Presidente, Presidenta é..."

— Novo olhar... ia dizendo eu.

Miss Jane atalhou-me:

— Não. Desta vez os olhos ficaram em paz. As mãos de Kerlog é que se estenderam para miss Astor. As de miss Astor foram-lhes ao encontro. Uniram-se no eterno gesto das mãos amorosas que se unem — e... o silencio que diz tudo se fez entre aqueles dois admiráveis tipos de gorilas evoluídos.

A minha amiga parou, a olhar-me muito firme nas mãos, como Kerlog, mas não tive animo de declarar-me. A sua superioridade amedrontava-me ainda.

Miss Jane fez uma pausa de alguns segundos — essa pausa de quem espera e não vê chegar. Por fim disse, como que inconscientemente desapontada:

— Quer que continue ou prefere aqui uma linha de reticências?

Eu não queria coisa nenhuma. Eu só queria estender as mãos como Kerlog e embeber meus olhos nos de Jane e ficar assim a vida inteira. Mas os músculos me traíram miseravelmente. "Qual!" pensei furioso comigo mesmo. "Quem nasceu para empregado de Sá, Pato & Cia., não chegará nunca a esposo da filha do professor Benson..."

Miss Jane (pareceu-me) deixou escapar um imperceptível suspiro de despeito e rematou a história do duo presidencial com desinteresse evidente.

— O mais o senhor Ayrton imaginará, disse ela. O ano 2228 em matéria de amor não se distinguia dos anteriores. O dialogo de Adão e Eva é talvez a coisa única que não sofre grande influencia da evolução. Ás vezes até involui...

Tocou a campainha.

– Ponha o jantar, disse com certa secura ao criado que apareceu. E traga uma aspirina.

– Sente alguma coisa? indaguei com timidez.

– Um fio de dor de cabeça apenas, foi a sua breve resposta.

Que jantar frio e desenxabido aquele! Quando me vi fora do castelo, desabafei.

— És um animal de rabo, senhor Ayrton, e bem mereces o desprezo com que o senhor Sá te trata!...

E furioso dei vários beliscões nos músculos covardes que me falharam o movimento de mãos talvez mais oportuno da minha vida.

— Asno, asno, asno!... fui-me repetindo pelo caminho todo. Estúpido éter que não age nem quando interferido por uma interferência tão clara...

A semana que se seguiu foi a mais desastrosa da minha vida. Na segunda-feira briguei com vários amigos, atirei com uma xícara de café á cara dum garçom e cheguei a ir parar na policia.

Terça-feira pela manhã bebi três garrafas de cerveja e contra todos os meus hábitos fui assim para o escritório. O senhor Sá olhou-me de esguelha por varias vezes. Por fim, notando a má vontade com que eu fazia o serviço, piou:

— Comeu cobra?

Tive ímpetos de morde-lo. Mas era o patrão e recolhi os dentes. Sá insistiu:

– Comeu cobra, moço?

– Não comi coisa nenhuma. Eu lá como? Quem ama lá come? respondi de mau modo.

– Hum! fez ele. Percebo agora. De há muito venho notando que já não me é o mesmo. Não me dá atenção ao serviço, atropela-me tudo. O Pato me disse ontem...

Estourei a boiada.

— Importa-me lá o Pato! O Pato lá diz ontem! Patão choco é o que ele é! Patíbulo... Patíbulo de fraque!...

O assombro do senhor Sá chegou ao auge. Um empregado tratar assim ao comendador Manoel Pereira Pato, socio da firma, dono de cinco mil apólices, irmão do Santíssimo Sacramento, provedor da Santa Casa... E tamanho foi o seu assombro que o pobre homem engasgou

Continuei no meu estouro:

— Estou farto sabe? Isto por cá não passa de uma burrada. Mas a Lei Owen rompe aí qualquer dia e quero ver! E a lei espartana tambem! E outras leis terríveis, leis de dar cabo do canastro, entende? Seletivas!

O senhor Sá continuava mudo, de boca aberta, num estarrecimento de assustar um homem com menos cerveja no estômago. Olhei para ele firme e senti uma impressão cômica. Disparei na gargalhada.

— Parece o Presidente Kerlog quando soube da vitoria do Jim! Ah! Ah! Ah!... Não sabe quem é Jim? Sabe nada... Era um lider! O lider negro. Negro descascado. Despigmentado, entende? Omegado! Um bicho! Um...

Não pude continuar. Senti revolução no estômago e ignominiosamente destripei um "mico" de marcar época no austero escritório dos senhores Sá, Pato & Cia.

Não me lembro de mais nada, a não ser que fui posto no olho da rua violentamente.

Amor! Amor! Amor!
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continua… XXIII– A Derrocada de um Titã

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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