domingo, 16 de outubro de 2011

Julio Daio Borges (A Epopéia de Gilgamesh)


Qual é a história mais antiga do mundo? Para quem tem formação judaico-cristã, a Bíblia. Para quem cultiva o helenismo, os versos de Homero ou a Teogonia de Hesíodo. Mas, desde o século passado, sabemos que existe uma ainda mais antiga. Estamos falando da Epopeia de Gilgamesh, que a WMF Martins Fontes acaba de reeditar em formato pocket. Na introdução de N.K. Sandars (que estabeleceu a versão inglesa, a mesma que serve de base para a brasileira), ficamos sabendo que os primeiros autores da Bíblia deviam estar bastante “familiarizados com a história” de Gilgamesh e que esta, inclusive, “precede as epopeias homéricas em pelo menos mil e quinhentos anos”.

Como diria Nietzsche, Gilgamesh é uma história humana, demasiadamente humana, onde estão presentes “a busca pelo conhecimento, a mortalidade e a tentativa de escapar do destino do homem comum”. A epopeia se passa da Mesopotâmia, foi escrita pelos sumérios (que chegaram lá em 3000 A.C.) e está registrada nas mais antigas tábuas de Nippur. Historicamente, Gilgamesh surge como “o quinto monarca de dinastia pós-diluviana de Uruk”. Sim, há um dilúvio. Talvez o mesmo dilúvio bíblico. Pois, cronologicamente falando, a epopeia de Gilgamesh se situa no período entre Noé e Abraão, cujo único registro conhecido era o Livro do Gênesis.

Historicamente, mais uma vez, Gilgamesh foi “um rei que provavelmente comandou uma bem-sucedida expedição para trazer madeira das florestas do norte e que certamente foi um grande construtor”. Já na mitologia, Gilgamesh é dois terços deus e um terço homem, assim como Aquiles, cuja mãe era igualmente uma deusa. Aliás, os gregos já advertiam: “Aquele que se deita com uma deusa imortal perde para sempre a força e o vigor”. Qualquer semelhança com Adão e Eva, a maçã, a descoberta do pecado e a expulsão do paraíso não é mera coincidência. E, mesmo sem Guerras Mundiais como as nossas, reis como Gilgamesh já temiam que “os poderes do caos e da destruição escapassem ao seu controle”. O homem não comandava a natureza como hoje, e ela poderia se voltar contra a humanidade a qualquer instante, extinguindo o Homo sapiens.

Em termos de mitologia, mais uma vez, Gilgamesh habita “um mundo em que deuses e semideuses se confraternizam com os homens num pequeno universo de terra conhecida, cercado pelas águas desconhecidas do Oceano e do Abismo”. (Ruy Castro poderia chamar isso de Ipanema. E é bem por aí.) O texto em si é agradavelmente legível e muito melhor escrito que o de muitos autores da nossa própria época. Como tantos heróis conhecidos nossos, Gilgamesh “parte numa jornada”, “cansa-se”, “exaure-se em trabalhos”, “retorna”, “descansa” e “grava na pedra toda a sua história”. Gilgamesh é rei, e esse é seu destino. Mas Gilgamesh não viverá eternamente, e esse, também, é seu destino. Pois lhe é advertido: “Enche tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste sempre roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois isto também é o destino do homem”. “Não existe permanência”, antecipando Heráclito, a história registra. E antecipando, desta vez, o conceito grego de nêmesis e húbris: “Os heróis e os sábios, como a lua nova, têm seus períodos de ascensão e declínio”. Se a Bíblia, em suas múltiplas versões, serve de base para judeus, cristãos e muçulmanos, podemos dizer que Gilgamesh serve de base para toda a humanidade, assim como os gregos e os romanos transcenderam o chamado paganismo, pois escreveram a história ocidental, que é inescapavelmente a nossa História.

A Epopeia de Gilgamesh, assim como a Bíblia, os gregos e os romanos de nossa preferência, pode ser um livro de cabeceira, sim, pois, como Montaigne, que costumava se servir da filosofia, estamos sempre aprendendo a viver, e a morrer.
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Notas:
TEOGONIA =Teogonia (em grego, Θεογονία [theos, deus + genea, origem] - THEOGONIA, na transliteração), também conhecida por Genealogia dos Deuses, é um poema mitológico em 1022 versos hexâmetros escrito por Hesíodo no séc. VIII a.C., no qual o narrador é o próprio poeta.
O poema se constitui no mito cosmogônico (descrição da origem do mundo) dos gregos, que se desenvolve com geração sucessiva dos deuses, e na parte final, com o envolvimento destes com os homens originando assim os heróis.
Nesse mito, as deidades representam fenômenos ou aspectos básicos da natureza humana, expressando assim as idéias dos primeiros gregos sobre a constituição do universo.

NIPPUR =Nippur (sumério Nibru, acádio Niburu, "lugar de passagem") era uma importante cidade dos Sumérios onde estava o templo do seu deus principal, Enlil. Era abastecida com as águas do rio Eufrates através de um canal de irrigação conhecido como Quebar.

Segundo a mitologia, Enlil escolheu este "Local de Passagem" para a sua residencia quando foi expulso da sua primeira residência - O Edim - após ter cometido uma trangressão às ordens do deus Anu.

URUK
=Uruk era rodeada por uma muralha de aproximadamente 9km de extensão.(em sumério, Unug; o Erech bíblico; e o árabe Warka) foi uma cidade antiga da Suméria – posterior Babilônia – situada a leste do Eufrates, na linha do antigo canal Nil, numa região pantanosa, a cerca de 225 quilômetros sul-sudeste de Bagdá. O próprio nome moderno Iraque é derivado de Uruk.

Uruk foi uma das mais antigas e importantes cidades da Babilônia. Dizia-se que suas muralhas haviam sido construídas por ordem de Gilgamesh, que, diz-se, também mandou erguer o famoso templo de Eana, dedicado à Inana, ou Ishtar. Os extensos registros sobreviventes do templo, pertencentes ao período Neo-Babilônico, documentam a função social do templo como um centro de redistribuição social. Em tempos de fome, famílias podiam enviar crianças ao templo como oblato.
Uruk possuía um papel importante na história política do país desde tempos remotos, exercendo um poder hegemônico na Babilônia num período anterior a Sargão, o Acádio. Mais tarde desempenhou uma função de liderança nas batalhas nacionais dos babilônios contra o império Elamita até 2.000 a.C., quando sofreu severamente. A Epopéia de Gilgamesh apresenta relatos do conflito, sempre de forma literária e nobre.

NÊMESIS E HÚBRIS – A húbris ou hybris (em grego ὕϐρις, "hýbris") é um conceito grego que pode ser traduzido como "tudo que passa da medida; descomedimento" e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunção, arrogância ou insolência (originalmente contra os deuses), que com frequência termina sendo punida. Na Antiga Grécia, aludia a um desprezo temerário pelo espaço pessoal alheio, unido à falta de controlo sobre os próprios impulsos, sendo um sentimento violento inspirado pelas paixões exageradas, consideradas doenças pelo seu caráter irracional e desequilibrado, e concretamente por Até (a fúria ou o orgulho). A húbris é relacionada ao conceito de moira, que em grego significa 'destino', 'parte', 'lote' e 'porção' simultaneamente. O destino é o lote, a parte de felicidade ou desgraça, de fortuna ou desgraça, de vida ou morte, que corresponde a cada um em função da sua posição social e da sua relação com os deuses e os homens. Contudo, o homem que comete húbris é culpável de desejar mais daquilo que lhe foi concedido pelo destino. O castigo dos deuses para a húbris é a nêmesis, que tem como efeito fazer o indivíduo retornar aos limites que transgrediu.

Fontes:
Digestivo Cultural n. 482 – Quarta-feira, 14/9/2011
Wikipedia

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